Cap 28. Fluindo
— Saia jeans, uma sandalinha de salto e regata branca. Básica. Não tem como errar.
A sugestão era um básico-piriguete, que eu piorei adicionando à minissaia de cintura baixa uma bota branca de cano longo e salto fino, afinal fazia frio do lado de fora. Por que não cobrir as canelas enquanto todo o resto estava à mostra? E, para dar o toque final, visto que o show era de glam metal, caprichei na maquiagem com brilho e enrolei uma echarpe de onça em tons de roxo no pescoço.
— Nos lábios só gloss, por favor! — Mirana me advertiu.
— Gloss gruda demais. Homens não gostam muito de gloss.
— Então você está considerando a possibilidade de beijar Nathan? — Ela não perdia uma oportunidade de me enquadrar.
— Ele me chamou para conversar, só isso. Não vai ter nada de beijo. Homens não gostam de gloss na boca de uma mulher, nem quando é só para conversar. Bate o vento, o cabelo gruda, é uma melequeira... — A emenda saiu pior do que o soneto.
— Caprichou na calcinha?
— Mirana! — chamei a sua atenção. — Se não vamos nos beijar, muito menos transar. Temos muito que colocar em pratos limpos antes de passar para o segundo nível. Se é que vamos passar. Não quero criar esse tipo de expectativa.
Tolinha. Era claro que, apesar de fingir que não, eu já tinha criado toda expectativa do mundo e colocado uma calcinha lilás de renda com alguns pontos de cristais aplicados.
— Eu preciso lembrar que você já teve um contato de segundo nível com o Nathan? Peitcholas na boca dele, inclusive.
— No The Heat, trabalhando, excedi-me um pouco. Mas aqui fora vai ser diferente.
— Sei... — Ela riu. — Perguntei só por perguntar. Vi quando vestiu sua lingerie mais cara para o encontro de hoje. — Arremessei a toalha molhada em cima dela. — Vou querer saber de tudo quando você voltar. Por favor, aproveite bem e não me decepcione.
******
Nathan tinha vindo direto do trabalho, mas vestia outra roupa, bem mais informal, e estava tão cheiroso quanto pela manhã. Talvez tivesse um banheiro completo no emprego, ou tinha tomado banho na pia. Não fazia diferença, o cheiro de sua pele com sabonete estava por todo carro. Senti logo que entrei e me sentei ao seu lado, perguntando-me se eu tinha exagerado no meu Angel.
— Boa noite, Penelope — cumprimentou-me ele, observando-me colocar o cinto. — Está tão bonita e cheirosa.
Meu estômago deu voltas, primeiro pelo elogio e depois por eu estar dentro do carro de Nathan, no banco de couro vermelho do seu BMW esportivo preto. O nervosismo era não só pelo encontro que iniciara em um veículo caríssimo, mas porque comecei a ter dúvidas se realmente eu tinha feito a coisa certa. Mesmo já tendo o encontrado algumas vezes, Nathan ainda era um estranho. E se ele fosse mesmo um psicopata e aquele fosse um dos meus últimos momentos viva? Era óbvio que esses pensamentos dignos de CSI eram apenas fuga para sabotar uma coisa boa em minha vida, mas minha tensão generalizada deve ter dado bandeira suficiente, porque antes de dar a partida ele falou:
— Relaxe, eu não mordo. Estou certo de que teremos uma ótima noite.
Ele esticou-se até o rádio e empurrou um CD para dentro do compartimento, colocando uma baladinha bem antiga do Bon Jovi para tocar.
— Fiz uma coletânea de favoritas de rock romântico, espero que goste. — Nathan repousou a mão levemente na minha coxa, para levá-la à marcha no segundo seguinte e dar a partida.
Eu mal conseguia falar. Rock romântico, leve toque falso-despretensioso na perna... Parecia que ele estava criando um clima. Então fiquei só olhando para frente, conversando com meu aparelho digestivo, para que não me pregasse nenhuma peça num carro fechado que, graças a Deus, continuava cheirando a perfume doce e sabonete de amêndoas. E que assim se mantivesse.
— Nos falamos tão rápido hoje cedo que acabei não perguntando como foi a sua experiência no 79 — disse Nathan, com os olhos atentos ao trânsito, referindo-se ao estúdio de tatuagem. — Foi a sua primeira, não? Não me lembro de ter visto uma em você antes...
— Foi sim, a primeira. Doeu quase nada. Fiz bem pequena.
Nathan parou em um sinal e estiquei a mão direita para ele, que, ajeitando os óculos, no escurinho do carro, fez força para ler.
— Fique firme?
— É. Fique infinitamente firme — reiterei.
Ele segurou minha mão delicadamente e passou o polegar sobre a cicatriz, para lá e para cá, sentindo o seu relevo. Aiii, estômago, aguente essa emoçãozinha.
— Isso também não estava aqui antes... — constatou.
— É recente. Me acidentei no banheiro, mas não foi assim tão grave. Só tomei uns pontinhos... — Tinham sido exatamente oito pontos, na verdade. Muito mais que meros pontinhos.
— Você caiu?
— Ah, não, não... Foi outra coisa... — respondi, vaga, tentando me esquivar da explicação para o corte.
Nathan era tão delicado que não insistiu para saber como tinha sido o acidente e nem qual era o motivo por trás da frase da tatuagem. Ele podia estar um pouco curioso, mas só continuou acariciando o local da minha cicatriz, até ter que voltar a mão ao volante para continuar o caminho para a casa de shows.
— E você? Fez outra tatuagem hoje? — perguntei.
— Modifiquei uma antiga. Estava perdida no meio de tantas outras... E achei que era o momento de transformar em algo mais atual.
Eu também não perguntaria qual desenho tinha sido modificado e onde ele ficava em seu corpo, para me fazer de comedida, mas eu estava louca para saber detalhes. Era hora de começar a conhecer um pouquinho mais do homem com o qual eu pretendia me envolver. Assim, aos poucos, ele deixaria de ser um possível psicopata. Ri sozinha e balancei a cabeça quando pensei nisso novamente.
— Legal ser assim tão desprendido. Fazer, desfazer...
— Se algo tem muito significado para mim, eu vou lá e faço uma tatuagem. Mas, se perde o sentido inicial, da mesma maneira; vou lá e transformo em outra coisa que tem um novo significado.
— Não poderia apagar em vez de transformar?
— Poderia apagar, mas é um procedimento mais complicado. Quem dera se fosse simples, como lápis e borracha... Mas também não é só por isso, não altero as tatuagens só porque é difícil apagá-las. É que muitas situações não morrem, se transformam mesmo. Eu diria que a maioria delas.
— Compreendo...
— Esses desenhos em conjunto, interligados, de certo modo são como o mapa da história da minha vida. — Parado em outro sinal, ele tirou a mão do volante e esticou um dos braços tatuados na minha direção. — Cada parte é uma coisa ou um momento importante que já vivi, ou que já deixou de ser importante, mas que, sabiamente, eu transmutei.
— Admiro sua coragem para fazer tudo isso — falei, observando as imagens misturadas, sem conseguir me prender a nenhuma delas especificamente —, não pela dor de ter se furado tantas vezes, mas por conseguir encarar tudo que tem significado para você. Porque nem tudo que tem significado é bom.
— De fato. — Ele respirou de maneira diferente, mais forte, e voltou sua mão ao volante. — Nem tudo lembra coisas que foram boas, mas algumas situações ruins têm que acontecer para que as boas possam surgir depois. Não acha? O que eu penso é: se estou vivo, se superei, então tudo bem, valeu a pena. Desde que se aprenda com a lição, a dor se transforma de algo negativo para algo positivo.
— Entendo o que quer dizer. — Desta vez, eu mesma acariciei a minha cicatriz. Transformar algo negativo em positivo era o que eu estava tentando fazer com aquela tatuagem no dorso da mão.
No meio daquele papo sobre tatuagens, coisas boas e coisas ruins, com uma breguice do Bryan Adams tocando no plano de fundo, tive um estalo e lembrei que havia me esquecido de avisar a Lola que não faria a apresentação daquela noite. Merda. Se eu fosse trabalhar, deveria encontrá-la em vinte minutos em uma residência na Mulholland Drive, mas eu não ia e sequer tinha uma boa desculpa para dar. Para evitar um bate-boca na presença de Nathan, que cantarolava Heaven, peguei o celular e, em vez de ligar, mandei uma mensagem de texto, que eu teria que torcer para que ela lesse:
Aconteceu um imprevisto. Febre alta. Não vou conseguir encontrá-la. Espero que não dê problema para você. Sinto muito.
"Espero que sua febre alta tenha um piru que valha a pena."
Eu segurei o riso. Ela tinha bola de cristal? E logo em seguida recebi outra:
"Não parece, mas estou irritada. Você tinha um compromisso comigo. Não gosto que furem. Vou dizer o que para o cliente?"
Perdão. Amanhã conversamos. Tenho certeza de que você arrumará uma ótima desculpa.
"Ou uma tão ruim quanto a que você arrumou para me dar. Sua irresponsável!"
Desliguei o celular e coloquei de volta na minha bolsinha rosa de vinil, com vergonha por ter trocado mensagens no meio da minha conversa com o Nathan.
— Desculpe ter interrompido nosso papo. Era muito importante. Me esqueci de cancelar um compromisso.
— Acontece. Como médico, às vezes também recebo ou tenho que fazer chamadas nas horas mais impróprias.
— É uma vida bem difícil, não?
— Bastante movimentada, mas não me imagino fazendo outra coisa. — Ele diminuiu a velocidade para entrar no estacionamento aberto atrás do Ambassador. — Sua amiga me disse que você saiu do ramo. Não trabalha mais como stripper?
— Trabalho. — Ai, como era péssimo admitir isso em voz alta. — Trabalho, sim, mas de maneira privada agora. Saí da vida dos clubes.
— Ah. Então agora você só atende em casa... É isso?
Não consegui decifrar o tom do seu comentário enquanto procurava uma vaga, mas não achei que suas palavras fossem uma crítica ou que tivesse ficado decepcionado por eu continuar sendo uma stripper. Pareceu apenas curiosidade para saber como eu ganhava a vida. Apesar de Nathan não ter o perfil machista e preconceituoso, achei melhor deixar bem claro o que eu fazia, antes que ele achasse que, por atender em casa, agora eu era stripper e puta.
— Exatamente. Agora só faço apresentações artísticas em festas, como aquela... aquela... — Apesar de quase ter falado, não queria ressaltar sua despedida de solteiro, então, ainda mais nervosa, continuei de qualquer jeito: — Ah, eu faço danças em empresas e residências, eventos grandes e pequenos... Clubes de strip não mais.
— Mas o The Heat era um bom clube. Não era? Tenho boas lembranças de lá...
— Já eu, não posso dizer o mesmo. — Vi que tinha soado mal, então tentei contornar: — Não tenho boas lembranças da administração e tal, nada com os clientes. Os clientes eram... são... é... Foi ótimo quando você esteve lá. — Enrolei-me toda e senti que tinha ficado da cor de um tomate.
— Foi ótimo, sim, especialmente da última vez que nos vimos... — Ah, a vez que você fugiu e me deixou sozinha com um enigma para decifrar? Tive vontade de dizer. Mas só corei novamente e mordi os lábios, olhando para baixo. — Não precisa ficar sem graça. — Nathan tirou a mão direita do volante e tocou a ponta do meu nariz de leve com o seu indicador. — Depois vamos falar melhor sobre o que aconteceu naquele dia. Sei que devo algumas explicações.
Ui. Sentença embrulhadora de estômago.
Nathan estacionou o carro e veio abrir a porta para mim. Mas eu, não muito acostumada a essas formalidades e cavalheirismos, já estava do lado de fora, ajeitando a minissaia e o cabelo, quando ele chegou. E, então, imaginei que ele apenas andaria do meu lado, talvez com um bom meio metro de distância, acompanhando-me até a porta principal, onde eu tinha visto um aglomerado numa fila. Mas ele chegou bem perto, segurou a minha mão, a mão da tatuagem, e, firme, com um sorriso lindo no rosto, conduziu-me para a porta dos fundos.
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[ Notas ]
Angel - perfume de Thierry Mugler lançado em 1992. Com uma mescla de notas sensuais e doces, harmoniza os aromas de tangerina, frutas vermelhas doces, baunilha, caramelo e patchuli. Sua embalagem é em forma de estrela de cristal.
Mullholland Drive - estrada ao leste das montanhas de Santa Mônica no Sul da Califórnia, repleta de mansões, endereço de ricos e famosos.
Música citada:
"Heaven" (BRYAN ADAMS, 1985)
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