Cap 16. Não confie em ninguém
Ah, não. Não tinha jeito pior de começar a noite de trabalho. A primeira pessoa que encontrei, ainda do lado de fora do The Heat, parada na porta dos fundos, foi Lola.
A garota tinha um cigarro na boca e enfrentava o frio de oito graus apenas com um blazer masculino aberto, deixando visível a lingerie vermelha e a tatuagem grosseira estilo gângster abaixo do umbigo. Trust no bitch* era o seu marketing pessoal na pele.
Lola fazia o tipo sujinha, sempre com um topete retrô e uma maquiagem estilo anos 1960. E, apesar de parecer uma prostituta datada, com o corpo um pouco mais flácido do que a maioria das garotas e lábios artificiais preenchidos com colágeno, fazia o maior sucesso entre os homens.
A prova disso era que mesmo ali perto das caçambas de lixo, despretensiosa e mal-acabada, Lola atraía toda a atenção de dois senhores na faixa dos 50 anos e também do segurança, que era tão antiprofissional que sequer se preocupava em disfarçar o quanto babava por ela.
Diante dessa cena, com todos muito entretidos em uma conversa, achei que conseguiria passar por Lola sem ser notada, mas isso, por motivos óbvios, foi impossível.
— Olhe só quem chegou... Se não é Penny Riot, que faz jus ao nome — ela disse alto, afastando-se dos homens e vindo me recepcionar.
Eu escolhera o sobrenome Riot, que eu escrevia RioT com T maiúsculo. Rio remetia ao Rio de Janeiro, minha cidade natal, e o T ao nome Taylor — eu sei, uma vergonha. Além disso, a palavra também significava tumulto, e as pessoas só conheciam esse último significado. Era essa definição a qual Lola se referira.
Eu não considerava um copo quebrado e vômito espalhado no chão algo que pudesse ser comparado a um quebra-quebra de gente raivosa protestando no meio da rua. Porém, como aquele tipo de comportamento alterado não costumava acontecer com tanta frequência no The Heat, pelo menos não entre as strippers, que eram muito bem controladas pela gerência, eu entendi o que ela quis dizer. Só não precisava ter jogado isso na minha cara.
— Nós temos umas continhas para acertar... — Lola me intimidou, soltando uma baforada perto do meu rosto, com certeza deixando fedido de cigarro o cabelo que eu tinha acabado de lavar.
Bem que Mirana havia me avisado que Lola cobraria pela ajudinha depois de me carregar moribunda até em casa. Porém, quando a vagaba começou a falar, ficou claro que não eram essas contas que ela queria acertar:
— Você adora dar um showzinho, não é mesmo, Peeenny? Eu fiquei sabendo que você saiu correndo da festinha organizada pelo Max.
Ai, não.
— O Max não é só um cliente, ele é quase um amigo... — continuou ela. — Não foi nada legal de sua parte deixá-lo na mão.
— Eu sei que não fui nada profissional, mas...
— Não tem "mas", garota tumulto — falou de maneira suave, mas impondo respeito. — Eu prezo muito pela qualidade dos meus serviços, e você deveria tê-la mantido.
— Agora não tenho como voltar no tempo. — Tentei manter a voz firme. — Eu só posso pedir desculpa a você...
— Ou ao Max. — Depois de me cortar, ela deu outra tragada. — Não acha que seria justo? Ir até lá, fazer um agradinho...
— Mas nem ferrando!
— Ele está bem decepcionado, e são... negócios — Lola continuou falando, ainda em um tom ameno, mas intimidador.
— Fui embora da festa de repente, sim, mas não cobrei nada. Pronto. Ninguém saiu no prejuízo.
— Não é bem assim que funciona, minha querida. — Ela deu uma leve encostada por debaixo do meu queixo com as suas unhas imensas, e para mim foi como uma ameaça com navalha. — Você pode até não ter cobrado nada, mas Max saiu no prejuízo porque não teve a festinha que planejara. E saí no prejuízo também... Porque se você não recebeu, consequentemente eu também não recebi.
Franzi a testa. Aonde ela queria chegar com aquele papo?
— Você me deve 30% do que ganharia — ela falou, com a maior naturalidade, jogando outra baforada na minha cara. — Pelos meus cálculos em cima do valor com as gorjetas, são aproximadamente 300 dólares. Não é assim taaanto dinheiro, não é mesmo?
— Nós não fizemos acordo nenhum! Pelo que eu lembre não teria que repassar nada a você.
— Talvez eu tenha me esquecido de deixar isso claro. Mas estou certa de que você não vai me desapontar... de novo. — Lola jogou o cigarro no chão e pisou com a ponta de seu sapato plataforma, fazendo bem mais pressão do que o necessário.
Eu lhe fiz um favor, e agora ela me vinha com essa?
— Quero esses 300 dólares até o final do expediente de hoje. Dê o seu jeito.
— Porra nenhuma, sua vaca!
Minha negação enérgica chamou a atenção do segurança e dos senhores que continuavam ali na saída, e os três viraram imediatamente em nossa direção. Aqueles pares de olhos fixados em meu rosto eram muito mais intimidadores do que qualquer palavra de Lola, e uma sensação desagradável tomou conta de mim.
— Serei bem clara: você vai me dar os 300 esta noite, por bem ou... por mal. — Ela voltou a enfiar as unhas debaixo do meu queixo, desta vez mais agressiva. — Se a senhorita não fizer tudo direitinho, quando passar por esta porta na saída, são eles que vão cobrar de você. Lavo minhas mãos.
Não. Não era possível que até um dos seguranças do The Heat estivesse envolvido no esquema de Lola.
— Está surpresa? — Uma risada maldosa saiu do fundo de sua garganta. — Quem você acha que acobertou sua saída daqui ontem?
Olhei para o segurança, e ele meneou a cabeça para mim, confirmando o que ela dissera.
— Já os meus amigos, os gêmeos, como são conhecidos, não costumam deixar a parte deles no negócio de cortesia para ninguém... — Os dois homens repetiram o gesto do segurança e reparei que, apesar de idênticos, em um deles uma cicatriz marcava seu rosto. — Resumindo: a senhorita vai entrar lá agora e trabalhar, e assim evitar descobrir a maneira bem peculiar que eles usam para cobrar de dançarinas caloteiras como você.
Se eu tivesse que lidar apenas com a Lola, daria conta do recado. Embora barracos com porradaria não fossem do meu feitio, eu arrebentaria a cara dela, e arrebentaria ali mesmo. Mas a piranha tinha um segurança troglodita na sua gangue, e sabe-se quem mais dentro do clube, e ainda por cima dois prováveis sócios que aparentavam ser nem um pouco amistosos.
— Darei um jeito. — Acabei me entregando, com certo medo de tudo aquilo.
O que todo mundo sabia é que Lola tirava um dinheiro por fora como prostituta, mas era bem possível que o negócio dela fosse muito maior do que imaginavam. E perigoso também.
— É bom mesmo, ou a sua dívida ficará cada vez maior — avisou-me Lola, puxando o maço de cigarros do bolso do blazer. — Ah, e é melhor deixar isso só entre a gente. Nada de compartilhar o nosso segredinho com aquela anã cubana. — A vagabunda se referiu à Mirana de forma pejorativa e depois riu. — Estamos entendidas?
Os três homens ainda me encaravam.
— Uhum — respondi, trincando os dentes, para reprimir a vontade de gritar na cara dela. — Agora você me deixa entrar? Preciso fazer dinheiro para pagar à cadela em que não se pode confiar.
— Vou manter meus olhos em você. — Ela levou dois dedos em "V" bem próximos dos próprios olhos e depois os apontou na minha direção. — Nada de dar vexame porque não vou ajudá-la a sair pelos fundos de novo.
Passei por Lola batendo os pés, tomada por raiva. Se já não estava com vontade de trabalhar quando saí de casa, agora que eu sabia que o dinheiro arrecadado na noite iria praticamente todo para uma dívida inventada, menos ainda.
*****
Fiquei quase uma hora me arrumando, e não era porque eu queria caprichar no visual, e sim porque não queria pisar no salão. A ideia de ter alguém acompanhando os meus passos era aterrorizante, o pior dos reality shows, um que no final, ainda por cima, eu perderia dinheiro.
Depois de receber um elogio inusitado da housemon, conferi o meu cabelo alisado, preso num rabo de cavalo, e praticamente saí correndo do vestiário. Ela apenas dissera, com sua voz rouca de ex-fumante idosa: "Está linda. Boa sorte, Riot girl". Mas como nunca havia me desejado boa sorte, nem me chamado de "garota tumulto" antes, desconfiei que ela pudesse fazer parte do esquema de Lola.
Socorro! Em pouco tempo no clube após a coação na porta dos fundos eu já estava paranoica. Precisava urgentemente encontrar um rosto conhecido e confiável, só para me sentir segura, e naquele lugar apenas Mirana entrava na lista.
Avistei minha amiga perto dos sofás do fundo, onde ficava o bar menor, que só servia drinques destilados. Ela conversava animada com um rapaz, e embora não fosse educado atrapalhar, não consegui evitar seguir em sua direção.
Assim que me notou encostada a uma pilastra ao lado do bar, seu sorriso sumiu e ela deixou o cliente em potencial para vir falar comigo.
Mirana não me disse boa noite, não me cumprimentou com dois beijinhos, não me perguntou se eu estava melhor da ressaca, nada. Nada para me acalentar. Apenas reagiu espantada à minha aparição:
— Mas que porra é essa? — perguntou, descendo e subindo os olhos, reparando em mim, arrumada totalmente fora dos padrões. Meus e do clube. — Você nunca usa preto aqui! E essa maquiagem? Olho escuro com batom roxo?
Desconfiei que o choque era mais pelo tipo de roupa que eu vestia do que pela combinação de cores nada convencionais. Diferente dos meus figurinos mais descontraídos, de cores intensas, cheios de babados e rendas, eu optara por algo bem mais agressivo, de acordo com meu humor naquela noite.
O vestido, se é que eu podia chamar aquilo de vestido, era todo feito com apenas sete tiras horizontais de vinil. Entre uma e outra havia um espaço de 15 centímetros, sendo que uma delas tapava exatamente os mamilos, e a última envolvia meu pescoço, onde no centro havia uma argola. Dessa circunferência saíam duas correntes finas que se prendiam a cada um dos punhos, em braceletes tipo algemas. As duas tiras verticais que estruturavam a roupa ajudavam a tapar os seios e terminavam em clipes do tipo usados em suspensórios, presos às meias arrastão sete oitavos.
— Menina, se a sua intenção é matar alguém hoje à noite, pode ter certeza de que vai conseguir.
Era sim. Mas quem eu queria matar era a piranha da Lola. E o que me impedia era saber que isso me faria praticar dança de colo na cadeira elétrica.
— Ainda falta muito para o halloween — Mirana continuou —, mas essa coisa vampira-sadomasô fará bastante sucesso. Já estou vendo a fila se formando atrás de você.
Eu nem precisava de uma fila. Se Nathan aparecesse no clube naquela noite, de imediato faria eu me sentir melhor. Financeira e emocionalmente. Depois de ter fantasiado com ele é que consegui perceber que estava envolvida além da conta. Se terminássemos em um dos quartos VIPs, poderíamos conversar, eu tentaria tirar minha dúvida quanto ao seu compromisso com Gigi e ainda ganharia dinheiro suficiente para pagar à Lola. Seria perfeito.
— Acha que Nathan gostaria desse visual dominadora? — perguntei.
— O amarradinho a la bondage? Ele gostaria de você mesmo que estivesse de burca, imagine assim toda dominatrix...
Só Mirana para arrancar um meio sorriso de mim àquela altura.
— Acha que ele vem? — Meu sorriso se abriu um pouco mais. — Estou precisando torturar um otário hoje. — Tive que chamá-lo de otário assim que percebi que estava me entregando.
— Otário, sei...
— Otário, sim — finalizei.
Mirana desenhou um coraçãozinho no ar, simulou uma chicotada e riu da minha cara.
— Enfim, vim dar um apenas um oi e avisar que cheguei. — Quis logo terminar o assunto. — Vou correr lá no DJ e marcar a hora da apresentação.
Ao falar de Nathan, consegui não transparecer à Mirana o meu nervosismo quanto à dívida e fiquei aliviada por isso. De maneira alguma eu poderia meter minha amiga naquela confusão com Lola e seus comparsas. Esperava resolver tudo sem maiores problemas e me livrar deles o mais rápido possível.
*****
Passei a maior parte da noite tentando administrar minha ansiedade entre duas situações: conseguir dinheiro para pagar à Lola, e olhar para a porta principal do clube, esperando que Nathan surgisse.
No entanto, ao contrário do que eu gostaria que acontecesse, Nathan não apareceu no The Heat. Bem, se ele não tinha dado as caras até então, duas da madrugada, concluí que não apareceria mais. O mais provável era que eu ficasse tão decepcionada quanto às crianças que iam ao Porta da Esperança pedir a coleção completa de Barbies. "Vamos abrir as portas da esperança...", falava Silvio Santos, e atrás do cenário cafona nada aparecia.
Como se a minha frustração com a ausência de Nathan não bastasse, a noite estava bem longe do rentável. Beeem longe.
Nas três horas que haviam se passado eu tinha conseguido apenas quatro danças de colo e uma dança privada, e isso somavam apenas 140 dólares. Talvez o estilo vampira-sadomasô não fosse assim tão popular. Ou talvez fosse a minha baixa vibração me impedindo de atrair alguém. Nossa. Isso era algo que Mirana diria, não eu. Mas a verdade é que a ausência de um sorriso no rosto poderia, sim, fazer diferença.
Então, depois de passar todo aquele tempo sem uma gota de álcool na boca, porque eu prometera a mim mesma que evitaria, de todas as formas, ficar alterada, pensei que um copinho de vodca não faria assim tão mal e seria o suficiente para relaxar antes de subir ao palco.
Em vez de ir ao bar principal como de costume, segui para o que servia somente destilados e pedi ao barman um Cosmopolitan. Para completar, peguei um energético, porque além da falta de um sorriso, também me faltava disposição, e eu precisaria de muita para fazer minha apresentação experimental — para não dizer aleatória — com as músicas que havia escolhido para aquela noite.
Depois de ter o copo decorado com uma casca de laranja, deixei o balcão do bar e me sentei em um dos sofás livres logo em frente. Apoiei os pés em cima da mesa de centro, pois tudo que eu queria era tomar a mistura de vodca, triple sec e suco de limão em paz e me preparar psicologicamente para as minhas danças alternativas dali a meia hora.
Fiquei uns vinte minutos naquele mesmo lugar, bebericando devagar o meu drinque, observando o comportamento das pessoas no clube, tentando controlar a mistura de tristeza e nervosismo, até que, do nada, vindo não sei de onde, Max apareceu.
O playboy sentou-se ao meu lado sem nem pedir licença e foi logo puxando um papinho nojento:
— Baby, baby, você está meio provocante demais hoje, não acha?
Um formigamento percorreu todo meu corpo, como se borbulhas de champanhe estourassem sob a minha pele. Ah, caramba, preciso sair daqui! Mais do que aturdida, fiz menção de me levantar, mas foi então que vi Lola apoiada no bar, olhando em nossa direção.
— Shhh, shhh, calminha aí. — Max enroscou os dedos no meu rabo de cavalo, e o formigamento praticamente me anestesiou depois do seu toque. — Você não vai a lugar algum... No dia que venho fazer uma visitinha você quer fugir? Pare de se esquivar, gostosa.
— Vou chamar um segurança — ameacei, murmurando entre os dentes. Eu não ia, mas precisava blefar.
— Ah, vai mesmo? — debochou. — Estou fazendo alguma coisa errada?
Virei o último gole do meu Cosmopolitan de uma só vez, peguei a lata de energético em cima da mesinha e deixei o sofá, decidida. Não me importava se Lola estava me observando, se mais alguém também tinha os olhos em mim, porque perto de Max eu não ficaria.
.......
[ Notas ]
*Não confie em cadela alguma.
Curiosidade: A Lana Del Rey usou a tatuagem Trust no bitch no curta Trópico.
Fotomontagem do visual dominatrix da Isabelle neste capítulo:
Porta da esperança - foi um programa de televisão brasileiro apresentado por Silvio Santos e exibido pelo SBT aos domingos, entre 1984 e 1996 para realizar (ou não) desejos dos telespectadores.
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