7 - Vapor de lágrimas

Quinze anos atrás


Ela afundou, e o mundo adensou com o desmaiar da lua na escuridão. Os sons e os cheiros morreram. Havia apenas o vazio, o serpentear da água que embalava seu corpo.

O oco da mente ficou ainda mais palpável; somente vultos mortos das lembranças roubadas.

O ar começou a faltar, mas ela não cedeu.

Há muitos anos, a água roubara suas memórias. De um jeito ou de outro, a água teria que devolvê-las. Pelo menos, uma parte. Pelo menos, alguma coisa.

Esperou mais um pouco. Um pontinho de luz atravessou uma ranhura do passado apagado. Uma voz. Uma canção. A mesma canção que deslizava por seus sonhos.

Quando não foi mais possível ficar embaixo da água, Helen buscou a superfície, tragando o ar silencioso da noite. Afastou os cachos escuros do rosto, que caíam pesadamente pelas costas. Ao abrir os olhos, viu a lua brilhando no céu outra vez.

Helen nadou, chegando na borda da piscina natural que havia se formado em uma parte do terreno alto e irregular. Muito abaixo, escutava o rugido do mar.

Ela apoiou os braços na terra, mantendo o corpo dentro da água. Um calafrio percorreu seus braços, seu pescoço, seu rosto; uma certeza de que a noite estava desolada demais, inanimada demais.

Como todas as suas lembranças do passado.

Estava com quinze anos. Há oito anos vivia no Santuário, treinando o uso do Ethér desde que fora marcada com o delta. Sua aptidão era para defesa, para ser uma guardiã. Aquele era seu mundo. Aquele era seu propósito. Aquela era a lei que regia sua vida e que não podia ser questionada.

Então por que, apesar do vale negro que cobria sua vida antes do Santuário, ela não conseguia parar de pensar no passado? Talvez porque quisesse respostas. Queria saber por que seus pais a entregaram para Mestra Siena, conforme a líder do Santuário havia dito para ela e para todas as outras crianças, anos atrás.

"Por que eles não me quiseram? Por que eles aceitaram me dar esse destino? Por que eles colocaram o Santuário acima da nossa família?".

Perguntas sem respostas. As memórias jamais voltariam. E se algum dos mestres ou guardiões descobrisse que ela estava tentando acessá-las, a puniria severamente.

Helen fechou os olhos, deixando algumas lágrimas silenciosas se acumularem ali. Odiava chorar por algo que não se lembrava. Odiava chorar enquanto se perguntava o motivo dos seus pais terem permitido que ela fosse levada para tão longe, que tivessem aceitado que seus rostos fossem apagados da memória dela.

Deixou a concentração vagar para a canção que sempre ouvia nos sonhos.

Os lábios se abriram, trêmulos, enquanto a voz buscava cantar a melodia para as folhas da mata, para o céu estrelado e para o luar. Só eles poderiam ouvi-la. Se cantasse no Santuário algo que arrancara do passado, também seria punida. Talvez mergulhada nas águas do esquecimento outra vez.


"E a chama da minha memória foi consumida

E da paixão vivaz fez-se o triste vazio

Luz do outono, mera reminiscência

De um antigo inverno que geava o bloqueio

Do meu eu esquecido forçado a esquecer"


Deixou que a letra ganhasse força em sua voz, tremulando a água à sua volta, que refletia o tapete estrelado do céu.

As leis jamais permitiriam que ela fosse embora dali. E Helen tinha medo de quebrá-las. Pertencia ao Santuário, corpo, alma e mente. Era o fardo de nascer sob a Constelação de Delta. Entretanto, não queria abrir mão da canção.


"Fiz um rabisco na areia da primavera

Perdida na tormenta de pensamentos deslembrados

Era a saudade do vivido ocultado

Que para longe de meu coração fora tragado

Em um frêmito esboço de seus olhos defronte aos meus"


Helen se perguntava quem havia cantado aquilo para ela, de quem era aquela composição que não a abandonava. No vapor das lágrimas, não conseguia enxergar nada, somente ouvir e transformar em melodia.


"Suave, estendo a mão

Deixe-me sentir

Deixe-me recordar..."


Helen se calou ao escutar uma movimentação próxima à piscina natural. Girou na água, olhando para os lados, captando um Ethér intruso no ar.

Por entre as folhagens, viu a silhueta de um rapaz surgindo. Reconheceu-o quase de imediato; era impossível não se lembrar de cada um daqueles traços marcantes. Lúcio Svetloba. Tinham a mesma idade e haviam feito parte do mesmo grupo que chegara ao Santuário anos atrás. Só que ela fora colocada para treinar com os guardiões, enquanto ele praticava para ser um caçador. Pelo que escutava dos mestres, Lúcio era um dos mais jovens prodígios, e dominava o Ethér de ataque com uma habilidade assustadora.

Mesmo sabendo de tudo isso, não acuou. Foi a surpresa de ter sido flagrada que não a fez recuar. Foi a súbita e inesperada prova de poder do olhar dele que a fez manter os olhos abertos. Foi o desejo de não mostrar fraqueza ou medo que a fez erguer o queixo, encarando-o de volta.

A lua brilhava, delineando os contornos fortes do rosto dele.

— O que você quer, caçador?

Lúcio não respondeu, parecendo perscrutar o caminho das lágrimas dela. O corpo de Helen se arrepiou. Será que ele a escutara cantar?

Então, antes que ela pudesse fazer qualquer coisa, ele avançou pouco a pouco, entrando na piscina, sem ao menos tirar as roupas de treino. Helen franziu o cenho, mas a prisão firme que o olhar dele impunha ao seu impediu-a de se mover.

As águas se movimentavam com ele, em uma cadência arrepiante. Helen prendeu o ar quando Lúcio se colocou à sua frente. Os cabelos dela flutuavam nas costas.

Lúcio ergueu a mão direita, e ela pôde ver o delta marcado em seu pulso. A aura dele emanava um Ethér muito forte, incomum para a idade que tinha.

"Se ele me atacar, ataco de volta".

O vento sibilou baixo entre eles. A mão de Lúcio tocou o rosto dela, lenta, vagarosa, o polegar tracejando o caminho das lágrimas. A pele dele era quente e seus olhos eram uma faixa estreita da cor azul escura.

— Não chore.

O toque inesperado da mão dele a fez estremecer.

— Por quê? — sibilou, não desejando baixar a guarda, atônita com o gesto. — Nem esse direito eu tenho mais?

— Não é isso. — A voz de Lúcio era rouca, baixa, como se ele estivesse perdendo uma batalha contra seus próprios impulsos. O colarinho e a frente da camisa branca dele estavam ensopados, grudando o tecido na pele e exibindo os contornos do corpo, as proeminências de músculos fortes, a clavícula marcada. — É que... Por algum motivo, isso quebra o meu coração.

Helen piscou, não conseguindo mascarar a surpresa ou processar aquela fala. Lúcio limpou a garganta e recolheu a mão, parecendo perceber somente naquele instante o que havia feito.

A água oscilava em volta deles, beijada pelo vento marinho.

— Era você que estava cantando? — ele perguntou.

— Vai me entregar para os mestres? — rebateu, na defensiva. O coração batia de um jeito alucinado no peito. Em todos aqueles anos no Santuário, nunca ficara tão perto de um dos caçadores como estava agora.

Lúcio balançou a cabeça; os fios dos cabelos dele caíam sobre os olhos. Embaixo da lua, pareciam muito mais claros e vívidos.

— Por que acha que quero te machucar?

"Porque aqui, nesse lugar, tudo o que fazemos é machucar uns aos outros".

A resposta ficou entalada na garganta dela.

Perante seu silêncio, Lúcio se moveu, afastando-se até a borda da piscina. Com um único impulso, se levantou, a água escorrendo pelas roupas molhadas. Helen observou cada um dos movimentos como se estivesse hipnotizada, como se toda a razão houvesse se evaporado com as lágrimas.

— É uma bela canção — Lúcio falou, e olhou por cima do ombro, buscando o cárcere de suas íris. — Gostaria de ouvi-la de novo qualquer dia.


******************


Atualmente


Mortos.

Durante a infinidade de todos aqueles anos solitários, ela tentou se convencer várias vezes dos motivos. Argumentou consigo mesma, dizendo que os pais a entregaram para Mestra Siena para que ela cumprisse seu destino, como todos aqueles que nasciam sob a Constelação de Delta. Falava para si mesma que seus pais desejavam um mundo livre dos espectros, que eram pessoas que abriam a mão da própria filha para proteger o mundo. E que ela os perdoaria quando os reencontrasse.

Céus, somente as estrelas sabiam o quanto ela tentara se convencer.

E agora, como um cristal fino chocando-se com o chão ríspido, os devaneios se estilhaçavam e a cortavam.

As pernas de Helen bambearam, fraquejaram, e ela caiu de joelhos diante dos dois túmulos.

"Descanse em paz, Marcos Santin".

"Descanse em paz, Nívia Santin".

— Marcos Santin — murmurou num fio de voz. — Nívia Santin.

Aqueles eram os nomes dos seus pais, roubados das memórias. Marcos Santin. Nívia Santin. Isso significava que, durante os primeiros sete anos de sua vida, ela havia sido Helen Santin, antes de virar Helen Helderheid?

Eles estão mortos. Eles estão mortos. Eles estão mortos.

Seus pais nunca a entregaram para o Santuário. Ela havia sido tomada a força. Eles tentaram impedir e foram brutalmente assassinados.

Lutando contra o torpor, Helen ligou o celular. Dezenas de ligações de Baby piscavam na tela. Ignorou-as e abriu os arquivos enviados em seu e-mail. Manchetes de jornais antigas, que Vivi encontrara.

O pulso tremeu.

"Casal assassinado em Antonina, interior do Paraná".

"Crime brutal choca moradores de Antonina".

"Filha do casal, Helen Santin, de apenas sete anos, continua desaparecida".

"Autoridades arquivam o misterioso caso de Antonina. Menina desaparecida nunca foi localizada".

Assim que Baby relatara as descobertas de Vivi, Helen não pensara duas vezes. Largou o colégio, alugou um carro e dirigiu por mais de uma hora e meia sem parar, atravessando a distância que separava Curitiba da histórica Antonina.

Porque ela não podia acreditar. Porque ela não queria acreditar.

A verdade veio como um tapa ardido na cara.

Eles estão mortos. O Santuário os matou e me levou à força.

Seus pais nunca abriram mão dela. Helen ofegou. Eles haviam lutado, tentado impedir que os caçadores do Santuário a levassem. Mestra Siena mentira por todos aqueles anos.

As correntes do seu autocontrole arrebentaram, e Helen enterrou o rosto na mão, deixando que as lágrimas que segurara por quinze deslizassem pela pele. A dor era semelhante a ter uma faca revirando suas entranhas. O ar que respirava era ácido e metálico.

Desde que fugira do Santuário, após a morte de Aurora, havia se agarrado a um único propósito: vagar pelo mundo e encontrar sua família perdida, resgatar um pedaço do passado e diminuir o vazio, a solidão.

E agora o propósito estava morto, assim como seus pais.

O sangue ferveu. O peito ardeu. Ela queria reduzir cada pedacinho do Santuário às cinzas. Ela queria fazer ruir cada coluna e...

De súbito, uma onda invisível a golpeu; era a presença de um Ethér intenso resvalando no seu próprio Ethér.

Tem alguém aqui.

Estremeceu; ela reconhecia aquela aura.

Helen se ergueu vagarosamente, esquecendo-se dos resquícios dos rastros das lágrimas enquanto encarava o homem parado a alguns passos de distância. Poderia haver dez mil pessoas ali; ainda assim, ele teria se destacado. O mesmo rosto marcante, os olhos de um azul frio e impenetrável.

Uma força maior do que a sua vontade de fugir a manteve no lugar, sem piscar nem desviar o olhar, num interminável caleidoscópio dos borrões dos anos.

— Lúcio.

Eu estava ansiosa para chegar a esse momento xD

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top