3 - Reverberação

ATENÇÃO: RETIREI E REPUBLIQUEI O CAPÍTULO 3 PORQUE ALGUMAS PESSOAS ME FALARAM QUE ELE NÃO ESTAVA APARECENDO

Curitiba, Brasil


Lavínia piscou, sentindo uma pontada de enjoo quando seu pai fez uma curva brusca para entrar no Bairro Vila Izabel, conduzindo a caminhonete S10 pela rua tranquila, arborizada e familiar.

A ansiedade cresceu pouco a pouco, junto da noite que tingia o céu de cobalto e inquietações.

Ela estava com saudades de casa.

— Deixei o peixe curtindo o tempero desde ontem — sua mãe, Cecília, correu os dedos longos pelos fios castanhos. Estavam bem menos volumoso do que da última vez em que a vira, sinal de uma queda contínua. — Vou fazer seu prato preferido para o jantar. Temos que comemorar. — Do banco de trás do carro, com o auxílio do espelho retrovisor direito, Lavínia pôde ver a dica de um sorriso de contentamento crescer em dona Cecília Ferreti. — Afinal, você está de volta.

A adolescente entrelaçou os dedos; as mechas cor de carvão dos seus cabelos caíam ao lado do rosto e pelos ombros, as pontas roçando a altura dos seios. Pela janela do carro, a arquitetura histórica comungava com as residências tradicionais da região.

— Estou feliz por voltar. — Ela estava mesmo, embora... Embora... Mordeu os lábios, o coração acelerando diante dos flashes que pipocavam na memória. — E sobre tudo o que aconteceu no mês passado...

— Já conversamos sobre isso, Lav — foi seu pai, Leandro, quem a interrompeu, buscando seus olhos através do espelho retrovisor central. — Nós acreditamos em você. A polícia vai cuidar de tudo, você voltará para a escola. E isto se encerra aqui. A vida prosseguirá normalmente.

Ela assentiu.

Será mesmo?

Apertando o botão do controle encaixado no quebra-sol, Leandro abriu o portão eletrônico da casa, um sobrado simpático de cores pastéis. Manobrou a S10 na garagem, e quando o motor foi desligado, o coração de Lavínia saltou.

Ela estava em casa.

Os três desceram do carro; seus pais agiam normalmente enquanto ela se sentia perdida, um tanto desconectada de tudo.

Enquanto seus pais descarregavam suas coisas da caminhonete, Lavínia avançou para dentro da própria casa, sentindo todos os aromas familiares que lhe foram arrancados naquele último mês.

Foi até a escada que dava acesso ao segundo andar e subiu. Só percebeu o quanto havia sentido falta do seu quarto quando abriu a porta e se deparou com todos os objetos e cheiros familiares. A cama de solteiro, com uma colcha de estampa de animes, os livros organizados em ordem alfabética na prateleira, o notebook e o celular em cima da escrivaninha.

Ansiosa, apanhou o celular e entrou em suas redes sociais, correndo os olhos pelas mensagens e postagens dos amigos para ela.

Mas não havia nada.

Absolutamente nada.

Atirou o celular na cama; também não iria abrir as páginas de notícias, não queria saber o que os jornais e sites estavam falando sobre aquilo.

— Lav, venha jantar! — sua mãe gritou do primeiro andar.

— Já vou! Só quero trocar de roupa.

— Não demore, ou a comida vai esfriar!

Ofegou e não conseguiu responder.

Recostada à parede, Lavínia deslizou para o chão, abraçando as pernas e enterrando o rosto nos joelhos dobrados, permitindo que as lágrimas que fora proibida de chorar naquele mês rolassem livremente.


*********************


O voo entre Madrid e Curitiba, com uma escala em São Paulo, durou quase quinze horas.

Helen desembarcou no Aeroporto Internacional Afonso Pena, que ficava a dezoito quilômetros do centro da capital paranaense. O cansaço a corroía. Já havia anoitecido quando apanhou a bagagem e deixou o terminal.

Checou o celular enquanto deixava o interior do aeroporto; Baby lhe enviara diversas mensagens, passando todas as informações sobre o apartamento que alugara no nome de Helen.

Era uma noite fria e estrelada. O outono lançava sua cor e sua temperatura arisca sobre a região, forçando-a a vestir o moletom.

Sem perder tempo, comprou uma passagem de ônibus para o centro da cidade e embarcou. Quando viu, estava em pé no corredor do veículo, se segurando em uma barra superior, encalhada entre uma mulher cheia de sacolas e um garotinho que se agarrava em seu moletom toda vez que o ônibus arrancava.

Só preciso checar uma coisa, argumentou consigo mesma, e depois desapareço de novo. Não é bom ficar no Brasil por muito tempo.

A última coisa que queria era cair no radar dos caçadores.

Se não fosse pela maldita dívida que a assombrava, não estaria ali. Ela apenas queria...

E então, de súbito, sua mão começou a formigar aos poucos, e o ar que respirava ficou frio e seco. Helen sentiu a garganta fechar. Ruídos brotaram em sussurros diabólicos na orelha, e o burburinho das conversas dos passageiros se mesclou com aquele som agudo, soturno, invasor.

Seus sentidos apitaram feito uma sirene.

Sabia o que aquela sensação invasora e gelada significava; e não tinha nada a ver com os caçadores.

Era algo pior.

Helen ergueu o rosto, olhando para todos os lados. O coração martelava no peito em um ritmo frenético.

A visão foi tão clara que a fez estremecer.

O fundo do ônibus se distorcia apenas para os seus olhos treinados, abrindo um imenso e despedaçado buraco cercado por muco preto, do qual uma mão pálida surgia e abria caminho entre as pessoas.

Os espectros.

Invisíveis aos olhos humanos, só eram vistos por aqueles que carregavam a marca do delta.

Sempre que se deparava com um deles, em sua forma escura e espectral, feito vultos deslizantes, Helen se lembrava a contragosto da razão da existência do Santuário.

"São almas sugadoras e perigosas que não alcançaram a matriz original", a voz de Mestra Siena insurgiu em um recorte antigo da memória, "e vagam entra a dimensão física e metafísica".

Caçadores conseguiam eliminar totalmente os espectros; guardiões podiam apenas repeli-los.

O ônibus deu um solavanco, jogando Helen para cima do garotinho.

— Ai! — ele reclamou, com um olhar irritado.

Ela mal o ouviu. Toda sua concentração estava focada na reverberação emanada pelo espectro.

Um espectro de nível gama. O mais comum e mais fraco.

Trincou a mandíbula; fazia muito tempo que um daqueles não cruzava seu caminho. Não sabia se o pouco Ethér que conseguia usar seria suficiente para expulsar o espectro dali.

Mas não podia ficar parada. As pessoas comuns eram presas fáceis das atividades espectrais. E o ônibus estava lotado.

Merda.

Por mais que odiasse o que o Santuário havia feito com ela, no que a haviam transformado, velhos hábitos não eram facilmente abandonados.

Não pensou.

A mão espectral avançou mais um pouco para fora do buraco.

Helen fechou os olhos e focou toda sua energia no pulso direito; a onda repelente formigou o sangue.

Seu corpo protestou, reprimindo o uso do Ethér.

Ela lutou contra o próprio corpo e focou ainda mais a energia. Como aprendera nos treinos, ninguém conseguia ver o que estava fazendo.

O delta no pulso ardeu como se estivesse em brasas vivas.

O grito em sua garganta foi suprimido.

Helen sentiu a energia invisível fluindo das veias. A dor foi intensa. O ônibus sentiu o impacto. Os passageiros gritaram com o novo solavanco.

Tudo aconteceu muito rápido.

Quando Helen percebeu, caiu com tudo no chão.

— Meu Deus! — uma mulher indagou. — Você está bem, moça?

Atordoada, ergueu o rosto. O pulso direito latejava. O coração parecia prestes a sair pela boca. A sensação era de que desmaiaria a qualquer momento.

O espectro havia desaparecido; o buraco se fechara.

Por enquanto.

O pouco Ethér usado não o mandaria para muito longe.

— Moça?

Num pulo, ignorando os olhares confusos dos passageiros e batalhando contra a vertigem, Helen se levantou, agarrou sua pequena bagagem e saltou para fora do ônibus assim que ele parou em um ponto qualquer.

O ar da noite resvalou em seu rosto suado.

Puta merda. Combater uma atividade espectral não estava nos meus planos.

Avançou com passadas largas pela calçada do centro de Curitiba, a pulsação disparada na garganta, implorando às estrelas que seu Ethér não tivesse deixado nenhum rastro para trás.

E estamos começando a entrar na mitologia sombria da história ♥ Tem muita coisa vindo pela frente :D

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