2 - Nas estrelas
A primeira reação instintiva de Helen foi olhar para trás.
Para seu espanto, ainda estava sozinha no banheiro.
Lentamente, voltou a encarar o espelho.
— Mestra Siena...? — indagou incerta para o reflexo da senhora imponente, erguendo a guarda para se esquivar de qualquer ataque, mesmo sabendo que não havia mais ninguém ali além dela.
Tinha que se preparar para tudo. Mestre Siena, a líder do Santuário, era a mulher que queria sua cabeça em uma bandeja de prata.
Mas... Os lábios de Helen se entreabriram enquanto encarava o reflexo imóvel da antiga mentora. Por que ela apareceu em uma projeção para mim? Com exceção dos guardiões, ninguém é capaz de se projetar do Santuário dessa forma.
— O que está acontecendo? — perguntou para o reflexo da mestra.
Mestra Siena piscou.
Havia algo nos olhos dela. E não era raiva ou ameaça.
Parecia que ela queria lhe pedir algo. Helen inclinou o rosto em direção ao espelho, a mente girando em um milhão de pensamentos confusos. Parecia que ela estava desesperada para lhe contar algo.
Viu as mãos de Mestra Siena se movimentarem com dificuldade, como se estivessem tracejando desenhos no ar.
O primeiro desenho remetia a um triângulo normal.
— Um delta? — Helen arriscou, mirando o próprio pulso marcado. — O símbolo do Santuário?
Outro desenho. Um triângulo de cabeça para baixo.
Helen franziu o cenho.
— Um delta invertido?
O dedo de Mestra Siena se ergueu, apontando para cima. Mecanicamente, Helen fitou o teto cheio de mofo do banheiro, sem entender o que ela queria mostrar. Mestra Siena continuou apontando para o alto.
— O céu? Está se referindo ao céu, às estrelas?
Mas, ao volver o olhar para o espelho, a imagem de sua mentora já havia desaparecido.
*******************
Entregar-se aos braços do sono foi impossível.
Helen se revirou na cama, empurrando as cobertas para o lado. Tinha decidido dormir um pouco para recuperar as energias, em vão. Levantou-se e foi até a janela. O véu da noite cobria Madrid. A chuva havia parado há algumas horas, e o céu cobalto fulgurava em estrelas e luzes.
Tentou comer alguma coisa, mas o estômago rejeitou os restos da comida congelada. Escolheu uma latinha de chá gelado e sorveu a bebida em um gole só. O gosto extremamente doce fez a garganta dela coçar.
A imagem da projeção de Mestra Siena pulsava em sua mente.
Por que ela apareceu para mim, depois de quinze anos? Qual o motivo? Faz quinze anos que ela manda caçadores atrás de mim, que sou procurada por traição.
Aquilo não fazia sentido.
E o que Mestre Siena havia tentado dizer com aqueles desenhos? O delta normal e o delta invertido? E por que apontara para o céu?
E por que, entre todas as pessoas que a servem e a veneram, ela veio justo falar comigo, que deixei tudo para trás?
Quando percebeu, estava andando de um lado para o outro, entoando baixinho a única canção que tinha do seu passado.
Esticou a cabeça para a janela, para o céu noturno, para as estrelas.
Talvez... Talvez fosse melhor fazer uma leitura, apenas para acalmar o rugido que pulsava junto do sangue nas veias.
Girando nos calcanhares, foi até o armário e puxou uma caixa escondida embaixo de várias peças de roupa.
Ensaiou por alguns instantes, pensando se deveria fazer aquilo.
Só para tirar da dúvida. De qualquer forma, já me localizaram. Não vai ter problema deixar mais um rastro de Ethér.
Abriu a tampa, puxando para cima um fino objeto quadricular, de superfície espelhada, com coordenadas e ângulos marcados no vidro.
Fazia muito tempo que não utilizava o microcósmico.
Trocou de roupa e andou para fora do apartamento, checando se não havia nenhum vizinho bisbilhoteiro no hall. Tudo vazio. Satisfeita, seguiu para as escadas, subindo até o telhado do prédio, uma cobertura que os moradores utilizavam como área comum para o lazer.
O vento uivava em seus ouvidos. Dali, tinha uma vista panorâmica das luzes urbanas e dos prédios altos de Madrid.
Escolhendo um ponto do telhado, Helen se ajoelhou no chão e colocou o microcósmico na sua frente, posicionando-o para que refletisse um ângulo bom do céu. Posicionou o pulso com a marca do delta sobre o vidro, fechou os olhos e se concentrou.
Os caçadores que a rastrearam estavam parcialmente errados. Ela conseguia usar um pouco de Ethér ainda; não para uma batalha, mas o suficiente para uma leitura das estrelas.
O formigamento familiar esquentou primeiro o sangue, depois a pele. Ela sentiu a energia fluindo para o pulso direito. O delta queimou.
Helen abriu os olhos. As linhas do microcósmico brilhavam, formando um mapa do céu a um toque de distância. Ela mordeu o lábio inferior, realizando a leitura do alinhamento atual das estrelas.
Espere... Piscou várias vezes, para ter certeza de que estava fazendo a leitura corretamente. Não, não era possível.
Aquele alinhamento não poderia se repetir, poderia?
Apesar da diferença e da distância entre alguns astros, há muita similaridade com o alinhamento de quinze anos atrás.
Ofegou. Aquela merda já não havia sido encerrada?!
Helen precisou controlar o impulso de apanhar o microcósmico e atirá-lo do alto da cobertura.
Com os passos pesados, desceu as escadas e voltou para o apartamento. Ligou o notebook e, sem perder tempo, iniciou uma chamada de vídeo por web cam. Aguardou até que a imagem de uma moça de cabelos azuis, de vinte e quatro anos de idade, enchesse toda a tela.
— Oi, Helen! Fiquei surpresa com a sua chamada. Achei que me contataria só daqui duas semanas.
Olhou-a através da tela; pela luz da janela lateral que a web cam de Baby capturava, Helen calculou que ainda era dia ali.
— Você está mais bronzeada, Baby.
— Uma palavra para você: Jamaica.
— Vou anotar. Talvez seja meu próximo destino. Sinto que está na hora de empacotar tudo outra vez.
A expressão divertida de Baby deu lugar a feições preocupadas.
— Te localizaram? — Ela bufou quando Helen assentiu. — Que merda. Mesmo depois de quinze anos, eles continuam atrás de você?
— Nunca vão parar.
— Se quiser vir para essa Jamaica paradisíaca, tenho um quarto lindo sobrando. — Baby apontou para trás, como se Helen pudesse enxergar o espaço luminoso em volta dela. — Vai ser legal te ver pessoalmente, sem ter uma tela entre nós.
Helen meneou a cabeça.
— Agradeço, Baby, mas é mais seguro assim.
A garota fez um bico, tocando a trança lateral que prendia as mechas azuladas do seu cabelo.
— É muito solitário viver desse jeito, Helen.
— É o preço do meu crime.
— Credo, não fale assim. Parece até que você é uma condenada fugindo da cadeira elétrica.
Helen se afastou do notebook, apoiando as mãos no parapeito da janela do apartamento. Abriu o vidro. O vento úmido lambeu seu rosto, fazendo-a estremecer dos pés à cabeça.
— Para o Santuário, é quase isso.
— Odeio o Santuário. E nem conheço esse lugar. — Baby fungou. — E Barcelona? Nossas pistas estavam certas desta vez?
As unhas de Helen deslizaram no parapeito, rígidas, como se fosse possível arranhar o que a corroia por dentro.
— Não. Não foi desta vez que eu descobri quem sou, onde nasci e se tenho uma família.
— Vou continuar pesquisando e investigando para você, Helen. — A voz de Baby deu uma falseada, compadecendo-se por ela. — Não vou parar até achar algo. Alguma coisa sobre o seu passado tem que aparecer. O Santuário não pode ter apagado tudo. Ninguém tem esse poder!
— Viu, você pode arranjar um passaporte novo para mim? Com uma nova identidade? — Helen a cortou; fazer alguém sentir pena dela era a última coisa que desejava. — A que usei aqui foi comprometida.
— Você promete que não vai se meter em problemas?
— Eu até tento, mas os problemas é que me caçam.
Literalmente.
— Helen...
— Só preciso checar uma coisa. — Ela se sentou de novo diante do notebook, disfarçando a queimação que sentia no estômago. — Estava analisando o posicionamento das estrelas, e vi algo que me incomodou.
— O quê?
— Tem coisas que é melhor você não saber, Baby.
A garota bufou do outro lado da tela, esfregando o rosto.
— Queria entender como você faz essa leitura das estrelas. Quem sabe, um dia, você não me conta. Por ora, vou arranjar o passaporte para você. Em alguns dias, ele vai estar em suas mãos.
— Muita obrigada, Baby. Depositarei o dinheiro na sua conta.
— Não se preocupe com isso. E, Helen...
— O quê?
— Tome cuidado. Por favor.
— Pode deixar.
Assim que encerrou a conversa por web cam com Baby, Helen abriu o site de uma companhia aérea. Procurou pelas passagens de classe econômica, o cursor do mouse pairando sobre o botão de compra.
Puxou o ar, contraiu o pescoço, os dedos tamborilando pelo tampo da mesa, a perna esquerda balançando sem parar.
Apenas para tirar da dúvida. Depois, sumo outra vez.
E, com um clique, comprou uma passagem só de ida para o Brasil.
Prólogo, capítulo 1 e capítulo 2 postados!
Obrigada por me acompanharem em mais uma jornada ♥
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