1 - Caçada

QUINZE ANOS DEPOIS

Madrid, Espanha


Um pouco antes de chegar à estação, um arrepio estranho a cutucou, como se o universo estivesse tentando lhe dar um aviso.

Helen ergueu o banco reclinável e olhou através da janela do trem em alta velocidade, que lampejava através de uma chuva feroz de primavera, embaçando a área urbana de Madrid.

Estranho.

Seus dedos comprimiram o envelope cheio de papéis inúteis.

A viagem até Barcelona havia sido perda de tempo. Ela não tinha descoberto absolutamente nada. Apenas pistas vazias e becos sem saídas.

Como todas as outras vezes.

Fitou seu reflexo no vidro molhado, imaginando a água deslizando por sua pele escura, pelos cachos dos cabelos, pelas feições cansadas. Estava com trinta anos, mas a sensação era de que a alma era muito mais velha.

Um trovão ensurdecedor agitou o trem e os trilhos; pelo menos, Helen achou que fosse um trovão. Não sabia. E não tentaria descobrir. No segundo seguinte, estava em pé, guardando o envelope na mochila surrada e enfiando a capa de chuva embaixo do braço.

Avançou pelo largo corredor sem olhar para trás. O tempo parecia se distorcer à sua volta, acelerando e diminuindo a velocidade em um ritmo enervante, enquanto o trem-bala seguia seu rumo, como uma traiçoeira serpente tentando atravessar o vão entre duas rochas.

Boa tarde, passageiros — a voz em espanhol anunciou através do alto-falante. — Chegaremos à Estação Puerto de Atocha em alguns minutos.

O aviso foi dito em mais três idiomas; ela entendia todas as línguas.

Helen apertou o passo. O coração bombeava disparos gelados pelo corpo. Assim que as portas se abriram, saltou do trem, misturando-se à multidão que enchia a estação.

— Merda. Merda. Merda.

Sabia que ir até Barcelona seria arriscado. Sabia que poderia estar se colocando no radar dos caçadores outra vez. Mas abraçaria qualquer risco para encontrar a verdade. Por fim, a viagem não dera nenhum resultado. E ela decidira voltar para Madrid.

Vestiu a capa de chuva antes de deixar o local. A estação, ampla e arborizada, fazia parte de um grande terminal que se conectava com outros meios de transporte público da cidade.

Era o lugar perfeito para se camuflar e apagar rastros.

Bom, era com isso que Helen estava contando.

Cruzou a passagem da estação, recebida pela chuva típica do mês de abril. Suas pernas se moviam como se tivessem vida própria, guiando-a por entre as pessoas. Letreiros brilhavam pelos prédios. Ergueu a cabeça, sem parar de andar, lendo a propaganda chamativa de um outdoor que parecia rir da sua cara.

"Você não pode encontrar o futuro sem resolver as pendências com o passado".

Embaixo da capa de chuva, Helen exprimiu um riso amargo e mostrou o dedo do meio para o anúncio.

Seguiu seu caminho, dobrando uma esquina e se esgueirando por uma viela mais deserta, a passagem mais rápida para chegar na espelunca onde estava hospedada. O cheiro do lixo molhado nauseou seu estômago.

No passo seguinte, um novo sobressalto gelado a enlaçou.

Seus sentidos se apuraram, fazendo-a endireitar as costas.

Estão aqui. Há mais de um.

Antes que pudesse escolher o próximo passo, dois vultos saltaram do muro alto, um à sua frente, outro à suas costas.

Olhou de um homem para o outro. Caçadores do Santuário.

Merda, ela havia sido mesmo rastreada.

— Renda-se, guardiã! Você está detida por traição!

— Virá conosco, traidora! — o outro caçador bradou, mais incisivo. — Ordens da Mestra Siena!

Girando, Helen soltou a mochila no chão e puxou o nunchaku que sempre levava consigo; uma arma composta de dois bastões articulados por uma corrente. Água da chuva escorria por seus cabelos.

— Se quiserem me levar — Helen jogou a perna direita para frente, colocando uma base do nunchaku embaixo do braço e segurando a outra com firmeza —, vão ter que me pegar primeiro.

Os caçadores avançaram. Helen elevou o braço e circulou o pulso muito velozmente, atingindo um caçador, e depois o outro. Foram milésimos de segundos. Eles arquejaram. Percebeu que eles não esperavam que alguém como ela soubesse atacar daquele jeito.

Só que ela não era mais a mesma de quinze anos atrás.

Uma nova onda de ataques veio; não foi capaz de evitar todos os golpes. O corpo latejou de dor. Helen girou o nunchaku ao redor do corpo, trocando-o de mão para criar um escudo de defesa com a arma.

— A guardiã não consegue mais usar o Ethér de defesa. — O caçador mais alto estreitou os olhos, um sorriso frio subindo nos lábios. — É por isso que está nos atacando com uma arma comum.

Merda. Seu coração acelerou. Ele percebeu.

O movimento de defesa da arma havia entregado sua fraqueza.

— Uma guardiã que não consegue usar o Ethér? Isso vai ser fácil.

Ambos ergueram os braços direitos, puxando as mangas das jaquetas para baixo, revelando a marca que havia em cada pulso.

Num movimento voraz e ágil, aproveitando a guarda baixa deles, Helen saltou, largando o nunchaku e sacando duas pequenas facas do cinto. Trovões reverberaram no céu. Atirou uma em cada direção antes que os caçadores ativassem o Ethér de ataque.

As facas atingiram os alvos com precisão.

Os dois homens caíram para trás, com as gargantas rasgadas. O sangue se misturou à água torrencial da chuva.

Helen inspirou fundo, apanhando a mochila, o nunchaku e correndo para longe dali. Um guardião matar um caçador era um crime gravíssimo; apenas mais um que ela carregaria nas costas.

Não demorou muito, e estava cruzando a portaria do prédio velho que alugava há quase um mês. Praguejou ao ler o aviso "elevador enguiçado". Sem escolhas, subiu as escadas até o quinto andar, o ar entrando dolorido nos pulmões a cada inspirada.

Ela se arrastou para dentro do apartamento minúsculo, jogando a mochila e a capa encharcada em um canto. Depois arquivaria os papéis do envelope. Da porta de vidro da sacada, a água engolia o restante do entardecer em Madrid. Tinha a impressão de que a chuva pararia logo.

Gemendo de dor, entrou no banheiro e ergueu a camiseta. Manchas avermelhadas se espalhavam pela pele. O ataque dos caçadores era forte. Sua sorte foi que os dois que a rastrearam eram pouco experientes. Teria sido um problema se alguém mais habilidoso tivesse cruzado seu caminho.

Helen se curvou sobre a pia, o cabelo molhado caindo para frente.

Preciso ir embora daqui. Outros podem aparecer.

Se conseguisse agilizar as coisas, em alguns dias seria capaz de deixar Madrid para trás e recomeçar outra vez.

Com um suspiro, ergueu o braço direito e puxou a manga da camiseta para baixo, encarando a tatuagem em seu pulso. Um triângulo pequeno, ou "delta", como era chamado por aqueles que a marcaram quando ela ainda era uma criança.

Assim como os caçadores, os guardiões também carregavam aquele símbolo na pele. Para a maioria das pessoas, o triângulo era apenas uma tatuagem comum. Mas, para aqueles que eram diferentes, como ela e os outros, o delta canalizava algo muito maior.

Helen soltou o ar; e por causa daquela marca e das suas escolhas, seria caçada até o fim da vida.

De súbito, sentiu a garganta secar, os pelos eriçarem.

Como uma presa cercada, ergueu o rosto devagar.

E deu um pulo ao ver o reflexo de Mestra Siena, sua antiga mentora, no espelho do banheiro.

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