A base
Eu vivo e trabalho numa mega cobertura, no condomínio industrial do meu pai.
Essa afirmação vale alguns esclarecimentos importantes: Primeiro, a minha cobertura não é na cobertura, e sim no primeiro andar...
... No primeiro andar, porque tenho medo de altura.
Meu pai ficou muito contrariado e, mais ainda, quando não conseguiu me convencer a mudar de ideia. Por isso, ele teve que contratar uma grande firma de construção para reformar todo o primeiro andar da torre 1-A e tornar aquele ambiente, uma "cobertura" segura, com todos os meus estúdios de gravação- o maior, o Studio One e o menor, o Studio Two, a sala fitness, sala de cinema e com as comodidades que eu quisesse, para não ter que sair de casa. Sair de casa é uma perda de tempo. Pra quê, se a vida acontece na internet?
Eu vivo no paraíso, galera. Minha cobertura de primeiro andar, é como um shopping center pessoal. Recebo os meus amigos. Faço as minhas festas. Posto as minhas festas nas redes sociais. Enfim... Tá tudo dominado, como diria Daniel.
Uma coisa que qualquer influencer que se preze - mirando o sucesso -tem que entender... E aí vai o conselho de uma veterana! É que tudo o que você fizer, tem que ter os meios certos para postar.
Não quer dizer que você vai postar todo e qualquer lance. Mas tem que registrar todo e qualquer lance (filmar, fotografar o máximo possível), para então fazer uma seleção criteriosa do que vai bombar para o momento, na internet.
Seja você coçando a cabeça, seja você comendo um pedaço de bolo (com ou sem a bochecha lambuzada), seja você gargalhando para o céu, ou andando na rua... Como eu não saio de casa, uso cenário verde de fundo. Minha equipe trabalha os retoques no Photoshop, assim, eu sempre pareço estar no Havaí, no Sri-Lanka, em Copacabana, nos lençóis maranhenses... Enfim, onde e como deseje estar.
Mia Cyborg diz que minhas fotos são Fakes Fotos associando a sua veiculação com o mesmo peso das Fake News. Mas vou dizer uma coisa, e um dia farei isso pessoalmente por reunião virtual: se Mia Cyborg tem um volume razoável de seguidores, é graças a mim. Se eu sou o seu assunto preferido, ela deve o sucesso a mim.
E deve a mim, os seus seguidores...! Já que os meus haters a seguem para falar mal de mim.
Ponto.
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- Ei, flor, aonde vai dar essa porta? - Daniel pergunta, cheio de curiosidade.
- E eu que sei? Não faço ideia! A minha casa tem tantas portas! Ainda não explorei todas.
Daniel balança a cabeça, como quem diz: "Nossa... Está podendo!" Ele está louquinho para fuçar em toda a parte. Sabe que eu tenho uma coleção inacreditável de sapatos, em algum lugar; e sabe também que essa mesmíssima coleção não fica disponível para pés mortais... Só para os meus pés, naturalmente.
Essa é a primeira vez que eu e Daniel gravamos nossa parceria de maneira síncrona em relação aos nossos seguidores. Com os dois no mesmo ambiente, ao mesmo tempo. Eu quis dar uma agitada no "formato", por isso, o convidei para vir aos meus estúdios recém-revitalizados. Eles são novos, pois estou morando na "cobertura" há um ano e sete meses. Mas de lá para cá, fiz algumas mudanças. Sabe como é, a tecnologia não para de evoluir...
Nesse momento, meu pai aparece feito um fantasma. Quase me mata de susto! Ele está daquele jeito (circunspecto, mãos às costas). Jeito de quem está pronto para passar um sermão.
- Podemos falar... A sós? - Ele pede, após os cumprimentos de praxe. Papis relanceou o olhar pelo batalhão de pessoas ao meu redor: cabeleireiro, maquiadora, personal styler, segurança, personal trainer, e parou em Daniel Domina, com um franzir de cenho...
Daniel, que não é bobo, nem nada, logo entende a situação e o recado inequívoco. Meu pai não é do tipo que gosta de ser humilhado, não... Disso, eu tenho certeza.
- Tenho que fazer uma tatoo nova e postar - diz Daniel, afastando-se rápido. - Volto depois.
E lá se foi o meu cronograma organizado para o dia...
Indignada, eu cruzo os braços e pergunto:
- Que foi, pai?
- Você se lembra de quando pediu para estudar em casa?
- Eu não pedi, pai... Não consigo sair de casa. Logo: preciso estudar em casa.
-Você se lembra do que o seu psiquiatra recomendou? Que você começasse a sair um pouco a cada vez? Ao contrário, você se entrincheirou ainda mais.
- Pai... eu sou uma sobrevivente! Eu consegui fazer algo da minha vida arrombada, apesar das minhas limitações!
-Vida arrombada... Sei. Nossa! Quem escuta pensa que você passou fome e nem teve um teto sobre a sua cabeça.
- Direto ao ponto, pai! Não sei se você sabe, mas eu gerencio uma marca que vale milhões. Não tenho tempo a perder.
- Sei - Ele repete. - Você é uma sobrevivente e não tem tempo a perder. - Papis aponta para todos os equipamentos instalados no Studio One da "cobertura" de primeiro andar. - Está tão no controle de tudo, mas está prestes a reprovar porque não acessa as orientações online da escola.
Eu murcho um pouco. Esqueci daquela chatice. De novo.
- Merda.
- Só aviso uma coisa, senhorita independente. Se você reprovar, vou reinstalar você na mansão, onde podemos ficar de olho na sua "independência".
- Você nunca falou assim comigo.
- Pois esse foi o meu erro!
Ele se afastou.
Senti vontade de quebrar alguma coisa... Mas não o meu perfume Channel 5... Ou o meu Perfume Gabriela Sabatini... Nem as minhas sandálias Jimmy Choo... No final, acabei desistindo de quebrar coisas.
Mas a sede de sangue não foi aplacada!
- Ninguém. Manda. Em mim.
Pego o telefone e chamo a assistente.
-Fala com o advogado e diz que eu quero um especialista em emancipação.
Desligo e olho pela vista ampla e formidável da minha janela. A solução me deixa calma. Eu vou me emancipar e fazer da minha vida o que eu quiser.
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