Capítulo 4 A Guerra das Marmitas

A ideia parecia genial. Se eu não podia vencer o Daniel Correia pelo lado racional, quem sabe eu conseguisse pela barriga? Cozinhar sempre foi uma das minhas poucas habilidades reconhecidas até por aqueles que viviam de cara feia comigo, e agora, eu ia usar essa habilidade com maestria.

Eu estava decidida a sabotar aquela construção infernal. A fábrica ainda nem tinha saído do chão e já causava confusão. O destino da minha bananeira estava em jogo. E os trabalhadores? Bem, eles eram apenas o obstáculo entre mim e a preservação daquele pedaço de memória do meu pai.

— Vou fazer marmitas pra aqueles homens! — declarei para Zezinho, que me olhava do poleiro com a sabedoria de um monge e a fofoca de uma comadre. Ele piscou, como se aprovasse a ideia. — Eles não vão resistir. Vou conquistar todo mundo pelo estômago!

Dei uma volta no mercado local, enchendo o carrinho com ingredientes frescos e uma variedade de temperos que fariam até o mais severo dos pedreiros se ajoelhar. Voltei pra casa com um sorriso que competia com o sol do Ceará. Preparei tudo com o maior cuidado: carne de sol, arroz soltinho, feijão bem temperado, macaxeira frita crocante e uma farofa que dava gosto só de olhar.

No dia seguinte, fui à obra com as marmitas. Cheguei cheia de confiança, equilibrando as vasilhas de plástico colorido que já prometiam conquistas. Os trabalhadores largaram os martelos e pregos no instante que sentiram o cheiro.

— Ô, dona, o que é isso aí? — um deles perguntou, a boca já cheia d'água.

— Isso aqui é pra vocês, rapazes. Uma comidinha caseira, feita com carinho. Só não comentem com o seu patrão, viu? — falei, com um sorriso conspiratório.

Eles se entreolharam, parecendo crianças ganhando presente. Um deles pegou uma marmita, abriu a tampa e inspirou profundamente, como se quisesse guardar o cheiro para a eternidade.

— Rapaz... isso aqui é de comer rezando! — disse o mais robusto deles, já enfiando uma garfada generosa na boca.

Conquistei o grupo de imediato. Ao final do dia, os risinhos de satisfação e os olhares cúmplices deixavam claro que eles estavam do meu lado. Só faltava me darem as chaves da obra de presente.

Porém, minha alegria durou pouco. No dia seguinte, quando voltei para repetir a estratégia, encontrei uma cena inesperada. Daniel estava lá, de avental, distribuindo pratos que faziam a minha humilde marmita parecer comida de hospital.

— Mas o que é isso? — perguntei, incrédula.

— Ah, Rafaela! — Daniel disse, com aquele sorriso de quem estava armando alguma. — Resolvi cuidar melhor dos meus funcionários. Nada melhor do que um camarão na moranga, não acha? Ou quem sabe uma lasanha de carne de sol com molho bechamel?

Eu não podia acreditar. O homem tava me desafiando naquilo que eu achava que era imbatível: a comida!

— Isso aqui é sabotagem! — falei, apontando pra uma travessa cheia de camarões suculentos.

— Sabotagem? Eu só tô cuidando dos meus trabalhadores, assim como você. Eles merecem o melhor, não acha?

Os trabalhadores estavam divididos. Alguns olhavam para o camarão de Daniel como se fosse uma revelação divina, mas ainda havia lealdade nos olhos de alguns que tinham provado minha carne de sol no dia anterior.

— É assim, é? — murmurei, estreitando os olhos.

Daniel apenas sorriu, vitorioso.

Voltei para casa furiosa, porém, não ia desistir. Se ele queria guerra culinária, ele ia ter. Naquela noite, eu preparei a minha arma secreta: baião de dois com queijo coalho derretido, paçoca de carne e, pra finalizar, um pudim de leite que ia desmanchar qualquer resistência.

No terceiro dia, fui à obra com meu carrinho de comidas reforçado. Daniel já estava lá, como eu esperava, com uma nova oferta. Dessa vez, era um cozido de carneiro que perfumava o ar, acompanhado de legumes tenros e um molho que brilhava no sol.

— Veio preparada hoje? — ele provocou, mexendo a colher no caldeirão.

— Você vai ver só, Daniel Correia. — Retruquei, enquanto abria a tampa do meu baião de dois, liberando um aroma que fez os trabalhadores largarem as ferramentas na mesma hora.

Os homens ficaram divididos entre o cozido de carneiro e o meu baião, contudo, a cereja do bolo foi quando tirei o pudim de leite, brilhante e perfeito, da sacola.

— Pudim! — um dos trabalhadores exclamou, com os olhos arregalados como se tivesse visto um milagre.

Era o golpe final. Os olhares se voltaram para mim, ansiosos, quase venerando o doce.

— Rapaz, esse pudim aí... vou te falar, hein? Isso acaba com qualquer briga! — disse o chefe da obra, enquanto enchia o prato com uma fatia generosa.

Daniel, vendo seu exército de trabalhadores fraquejar, tentou salvar a situação com um ataque inesperado.

— Ah, é? Pois hoje à noite vou trazer uma surpresa especial. Vamos ver se alguém ainda pensa em pudim depois de provar meu petit gâteau! — ele disse, como se estivesse lançando um desafio épico.

Tentei manter a compostura, mas petit gâteau? Em pleno sertão cearense? O homem tava apelando.

No final do dia, os trabalhadores estavam estufados e indecisos. Eu sabia que aquela batalha não terminaria tão fácil. Daniel, por outro lado, parecia se divertir com a situação. Era como se ele estivesse gostando da rivalidade, usando aquela guerra gastronômica como uma desculpa pra se aproximar de mim.

Enquanto voltava pra casa, cansada mas satisfeita, Zezinho me esperava no portão. Quando me viu, soltou um comentário que eu só podia acreditar ter vindo dos dias que ele passou ouvindo as fofocas de Dona Dulceneia:

Daniel tá te cozinhando em banho-maria, Rafaela!

Eu só consegui rir, imaginando o que viria no dia seguinte dessa inusitada guerra culinária.

Acordei decidida. Eu sabia que, se fosse seguir com essa guerra culinária, teria que dar tudo de mim. Daniel havia subido o nível trazendo aquela história de petit gâteau, no entanto, o que ele não sabia é que eu tinha uma carta na manga: minha famosa galinha caipira com pirão. Um prato que já tinha feito até a vizinhança inteira babar.

Logo cedo, fui ao mercado comprar a galinha mais gorda que encontrei. Depois, passei na banca de verduras e peguei o quiabo mais verdinho. Passei a manhã inteira na cozinha, mexendo o pirão com cuidado, deixando a galinha cozinhar até ficar no ponto. E, claro, preparei um bolo de milho como sobremesa. Queria que os trabalhadores ficassem tão satisfeitos que não conseguissem nem olhar para as ferramentas no final do almoço.

Zezinho, como sempre, ficou de olho na cozinha, esperando uma migalha de pão que fosse.

— Hoje eu venço, Zezinho. Hoje é o dia da minha vitória. — declarei com confiança.

Vamos ver, vamos ver... — ele respondeu, num tom enigmático que me fez pensar se ele sabia de algo que eu não sabia.

Quando cheguei à obra, os trabalhadores já estavam de olho nas marmitas que eu trazia. Daniel ainda não tinha aparecido, o que me deu uma pontinha de esperança. Quem sabe ele tinha desistido, reconhecendo que, no quesito culinário, ele nunca ia me vencer?

— A galinha de hoje vai dar o que falar! — eu disse, abrindo a tampa da panela e deixando o cheiro delicioso se espalhar.

Os homens praticamente salivavam. Um deles se aproximou e deu uma olhada no pirão.

— Rapaz, isso tá com uma cara boa demais! — ele disse, já com o prato na mão.

Eu sorri, triunfante. Já tinha vencido.

Mas aí, como num passe de mágica, Daniel apareceu, carregando caixas que eu não reconheci de imediato. Ele estava diferente, sem avental, sem panelas. Aquilo me intrigou.

— Hoje não tem comida? — perguntei, tentando disfarçar a curiosidade.

Daniel olhou pra mim com aquele sorriso de quem sabia de alguma coisa.

— Hoje decidi fazer algo diferente. — Ele respondeu com um tom misterioso, depois virou-se para os trabalhadores e, com uma expressão séria, começou a falar alto, para que todos ouvissem.

— Pessoal, antes de vocês decidirem o que vão almoçar, só queria lembrar uma coisa: eu sou o patrão de vocês. — Ele fez uma pausa, deixando a frase pairar no ar. — E eu sou o responsável por pagar cada centavo que vocês ganham aqui. Sem o meu dinheiro, nada disso aqui estaria de pé.

Os trabalhadores, que até então estavam animados com a minha comida, ficaram em silêncio. O clima mudou na hora. Aquele argumento era pesado demais, ninguém ali ia ter coragem de ir contra o patrão, por mais saborosa que a minha galinha caipira fosse.

Daniel continuou, com aquela tranquilidade irritante.

— Então, fiquem à vontade para escolher. Vocês podem almoçar o que quiserem. Mas só lembrem quem tá garantindo o pagamento de cada um de vocês, ok?

Eu olhei para os homens, esperando que, pelo menos, alguns resistissem àquele golpe baixo. Mas não. Eles começaram a trocar olhares e, um a um, foram se afastando das minhas marmitas. O cheiro delicioso da galinha com pirão parecia não ter mais efeito nenhum.

— A comida da senhora é boa, dona Rafaela, mas... trabalho é trabalho, né? — um deles disse, com um sorriso sem graça.

Aquilo me atingiu em cheio. Até o bolo de milho, que eu tinha tanto orgulho de preparar, ficou ali de lado, intocado. Eu podia quase ouvir o riso abafado de Daniel atrás de mim.

Eu sabia que tinha perdido. Ele não precisou fazer mais nenhum prato elaborado ou sofisticado. Bastou lembrar os homens que ele tinha o poder sobre os bolsos deles. Fui derrotada de uma forma que eu não esperava. No final das contas, o estômago deles não era o único que falava alto. O dinheiro também tinha sua voz, e ela parecia muito mais forte que a minha galinha caipira.

Daniel se aproximou de mim, ainda com aquele sorriso, e disse baixinho:

— Parece que a guerra acabou, hein, Rafaela?

— Você jogou sujo, Daniel. — resmunguei, enquanto começava a guardar minhas coisas. Meu orgulho estava ferido, e não era por causa da comida, mas pela forma como ele usou o poder contra mim.

— Não foi sujo. Foi apenas... necessário. — ele deu de ombros, como se a vitória não significasse tanto pra ele quanto significava pra mim.

— Você venceu hoje, no entanto, essa história ainda não acabou. — apontei o dedo na direção dele, já pronta para pensar numa nova estratégia.

Ele riu de leve.

— Não duvido, Rafaela. Com você, nada é fácil. Mas, por hoje, acho que é melhor aceitar a derrota. E quem sabe... — ele se inclinou, quase conspirando — ...eu te levo pra almoçar um dia desses, assim você pode relaxar dessa guerra toda.

Eu olhei para ele, surpresa. Aquilo parecia uma oferta de trégua. Todavia, eu não era do tipo que abaixava a guarda tão fácil.

— Não tô pronta pra me render ainda. — disse, tentando manter minha pose, mas meu estômago deu uma leve revirada, talvez pela ideia de um almoço com Daniel.

Ele riu de novo e acenou, saindo dali vitorioso enquanto eu terminava de recolher minhas marmitas. O papagaio Zezinho, que estava empoleirado no portão da obra, como sempre ele fugia de casa quando bem queria, soltou sua última observação sarcástica do dia:

Rafaela levou uma rasteira!

Eu suspirei, me perguntando se teria que aceitar o conselho do meu próprio papagaio. Afinal, aquela batalha estava perdida, mas a guerra, quem sabe, ainda podia ser virada a meu favor.

Afinal, eu não era do tipo que desistia fácil.

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