I | um vislumbre do passado

Dizem que o primeiro coração partido a gente nunca esquece. Marcelo Avilar era a prova viva disso. Algumas pessoas nunca de fato chegavam a colocar no esquecimento o primeiro término desastroso de um relacionamento.

Mas também, como ele haveria de esquecer? A coisa toda foi realmente traumática quanto parece.

Sabrina Duarte Ribeiro — era este o nome da pessoa que, por muito tempo, fora seu algoz. A garota que alavancara sua autoestima, levara-o às nuvens e trocara com ele juras de amor. A menina que o acompanhara em parte de sua infância e adolescência e que vivenciara, a seu lado, fatos que marcaram suas vidas profundamente. Os dois tinham uma longa história juntos, repleta de lembranças que não se apagavam.

Enquanto guiava o carro pelas ruas, Marcelo se deixou levar pelas reminiscências que rondavam seu histórico familiar.

A cidade de Boa Vista significara oportunidades de vida para a família Avilar. Na época em que Amanda e Roberto Avilar haviam chegado ao estado com o filho de 10 anos e a filha de 8 anos, em meados da década de 90, a área onde atualmente moravam não passava de um amontoado de terrenos baldios que gradativamente foram sendo vendidos e ocupados. Foi necessário algum tempo até que os pais de Marcelo conseguissem se estabelecer com os empregos que tinham arranjado.

Apesar das dificuldades iniciais, sempre fizeram questão de que os filhos recebessem uma boa educação escolar. Marcelo e sua irmã mais nova foram a razão para seus pais terem se mudado do Rio Grande do Sul para Roraima, afinal de contas. Tentar um recomeço no extremo norte do Brasil fora uma escolha que, com o passar do tempo, revelou-se frutífera e compensadora.

Quando Amanda passou em um concurso público e conseguiu uma vaga bastante concorrida em um órgão judiciário, Roberto lançou-se em um ambicioso projeto de fundar uma inovadora companhia de brinquedos em Boa Vista. Fora um planejamento meticuloso que levou cerca de dois anos para ser efetivamente concretizado. Nesse meio tempo, Marcelo conheceu Sabrina, a garota que seria sua primeira namorada.

Sabrina Ribeiro era a vizinha da frente e sua família possuía uma história similar à da família Avilar, já que também haviam se mudado para Boa Vista em busca de oportunidades que sua cidade natal não era capaz de lhes oferecer. Ao mesmo tempo que os Avilar erguiam um império do zero, a família Ribeiro lutava por um lugar no comércio. Através de muito investimento, esforço e dedicação, Lúcia e Antônio, pais de Sabrina, conseguiram construir e gerir um supermercado que fora sucesso entre os habitantes da cidade.

A amizade entre as duas famílias vizinhas fora inevitável. Havia um clima de companheirismo e simplicidade que regiam suas relações uns com os outros. Marcavam almoços e passeios para fazerem juntos, ocasiões em que Marcelo brincava com Sabrina, seus irmãos e irmãs.

Para além das brincadeiras na rua, Sabrina estudava na mesma escola e turma de Marcelo. Estar no mesmo ambiente que ela por tanto tempo fê-lo se dar conta de como gostava de sua companhia, de seu sorriso, de sua esperteza. Tornaram-se amigos, parceiros de trabalhos escolares. Eventualmente trocaram confidências, de modo tal que os laços entre os dois se fortaleciam cada vez mais.

Marcelo munira-se de coragem. Aos 13 anos, confessou estar apaixonado por ela. O episódio ocorrera num dia em que ele a acompanhara até a porta de casa, depois de um dia de colégio. A garota ficara perplexa com o que ouvira dele. Mas ao contrário do que esperava, Sabrina correspondeu aos seus sentimentos e também declarou estar interessada nele romanticamente. Naquele mesmo dia, deram o primeiro beijo, após Marcelo ter conseguido permissão dos pais dela para namorá-la.

O período de namoro durou cerca de cinco anos. Chegaram ao ensino médio se mantendo firmes com o que tinham um com o outro. No ponto de vista dele, Sabrina era uma ótima namorada. Agia como se fosse capaz de fazer qualquer coisa para continuar com ele, especialmente depois de testemunhar a maneira como Marcelo fazia sucesso entre as garotas que não paravam de suspirar por sua beleza, charme e o sotaque sulista que carregava.

Ciente do poder que tinha sobre as garotas da escola, ele as usava para causar ciúmes em Sabrina, só por diversão. Uma vez ela havia lhe contado que se sentia sortuda por tê-lo como namorado e, somado a isso, sabia que ela o admirava grandiosamente, então não ficou preocupado em fazê-la sofrer um pouco quando viu que isso divertia seus amigos e o tornava ainda mais popular.

Marcelo adorava ter aquele poder único em suas mãos. Dava-lhe a sensação de que tinha tudo a seu alcance, quando, no fundo, não passava de um garoto assustado com o rumo dos eventos sob os quais não podia exercer controle algum, como o divórcio nada pacífico dos pais e a briga na justiça sobre quem ficaria com sua custódia.

Por dentro, estava extremamente fragilizado e desiludido com o amor. Sua dor lhe parecia maior do que a de todo mundo. Sabrina era a única pessoa capaz de levantar seu astral e convencê-lo do contrário. Ela tinha fé nele. E continuou tendo mesmo após ter se mudado para ficar por um tempo na casa da tia, quando sua mãe, Lúcia, tivera de ser internada no hospital às pressas.

Mesmo com tudo pelo que passava, Sabrina se esforçou para não deixar que o relacionamento com Marcelo entrasse em falência. A distância e o decorrer dos meses de estadia na casa da tia, no entanto, fizeram-na rever valores e velhas crenças arraigadas que lhe faziam mal.

Nesse processo de autoconhecimento, acabou percebendo como o namoro sugava tudo de si e lhe trazia mais infelicidade do que alegria. Concluíra que o romance era unilateral, uma vez que ela era a parte que mais se desdobrava para fazer com que tudo desse certo. Quando o acúmulo de sofrimento atingiu seu ápice, Sabrina explodiu como nunca lhe acontecera na vida.

Aos 18 anos, Marcelo entendeu o que era perder um grande amor.

— O que disse?

— Quero terminar o namoro com você.

Ele olhou para o carro branco estacionado junto ao meio-fio em frente à sua casa, sem acreditar no que tinha escutado.

— Não — disse ele, usando um tom autoritário. — Que coisa mais sem cabimento. Tu não podes fazer isso!

— Não estou pedindo sua permissão, meu querido.

Marcelo piscou ante a resposta cínica. Sabrina estava irreconhecível!

— São cinco anos de namoro! Vais jogar isso na lata de lixo, sem mais nem menos?

— É claro que vou. Esse relacionamento não está acrescentando nada em minha vida. Não era assim, mas você mudou muito. Ficou arrogante, presunçoso e se acha demais. Agora só sabe reclamar e tirar proveito dos sentimentos que tenho por você. Cansei de ser seu burro de carga. Essa relação sanguessuga não é para mim. — Olhando para o lado, ela suspirou cansadamente. — Não se preocupe caso esteja achando que teremos de ficar nos vendo, dia após dia, por sermos vizinhos. Minha tia me convidou para morar com ela por tempo indeterminado e eu aceitei. — Sabrina tirou os óculos escuros da gola da camisa e os colocou no rosto, antes de dar as costas para Marcelo. — Até nunca mais.

— Sabrina! — Segurou-a pelo antebraço. — Não achas que mereço uma explicação?

— Acabei de te dar uma.

— Uma melhor do que essa.

— Marcelo, olhe nos meus olhos e me diga a verdade sobre como se sente em relação a mim. A nós. — Ela tirou os óculos de sol e o encarou com firmeza. — Apenas olhe. Será que realmente ainda sente alguma coisa por mim?

— É claro que sinto! — afirmou ele, desesperado. — Gosto de você. A turbulência em nosso relacionamento me fez ver que eu te amo e que morro de medo de te perder...

— Que me ama? — repetiu ela, incrédula. — Isso é piada? Você teve cinco anos para me dizer isso, e justo no dia em que vim para terminar o namoro, quer me fazer acreditar que me ama?

— Eu amo você. — E era verdade, mas sabia que o fato de ter deixado isso escapar em um momento de pressão não tornava sua confissão nem um pouco verdadeira. — Amo cada pedacinho teu. Amo tua risada, teu humor, tua inteligência. Amo o tempo que compartilhamos um ao lado do outro.

— Ama coisa nenhuma. O que você quer é alguém que te venere como se fosse um deus. Quer uma pessoa para te bajular e envaidecer. Deseja uma garota que esteja disposta a abrir mão de muitas coisas para dar atenção a você e ceder aos seus caprichos. Infelizmente eu fazia esse papel de boba, mas graças a Deus descobri algo chamado amor-próprio e recuperei o bom senso.

— Compreendo tuas angústias. Sei que fui um babaca e reconheço que falhei muito em nossa relação. Me desculpe se tenho sido egoísta todo esse tempo, mas... será que... não podes me dar uma outra chance e me amar também? Ou seria pedir demais?

Amar você? Como diabos eu conseguiria amar alguém como você? — Sabrina se desvencilhou da mão que a segurava. — Não consegue nem mesmo levantar a bunda do sofá para pegar água quando está com sede! Já reparou no monte de coisas que sua mãe faz por você? E o que é que você faz por ela, hein? Você é um idiota e sua forma de pensar é ridícula! Garoto mimado! No dia em que aprender que fazer coisas por uma mulher não significa que seja gay, vai chover milhões de garotas na sua horta, Marcelo. Mas até lá, enquanto não aprender isso, ficarei ignorando sua existência com sucesso. A propósito, sinto muito que seus pais tenham se separado, mas coisas assim acontecem o tempo todo. E sabe o que as pessoas normais fazem? Elas superam.

Sabrina caminhou até o Gol branco, abriu a porta e entrou calmamente. Depois de recolocar os óculos escuros, girou a chave na ignição.

Marcelo a observava da calçada em estado de choque. Sentia as faces arderem como se tivesse levado uma série de bofetadas. Jamais imaginou que essa era a dor de ter um coração partido e duvidava que fosse se esquecer da terrível sensação de se estar caindo em um abismo sem fim.

Acabara de levar um fora colossal, porém sentia-se incrivelmente revigorado. Transformado. Como se tivesse recebido um tratamento de choque. O que acontecia com ele, pelos céus?

Adiantou-se até o carro branco, parando em frente à janela aberta do motorista.

— Anote o que vou dizer: tu ainda vais ser a mãe dos meus filhos, guria — declarou ele em tom profético.

— Ah, puxa vida, estou sem papel e caneta. Quem sabe na próxima? — Sabrina perguntou, com uma expressão descarada. — Agora saia da frente, senão passo por cima. — E arrancou com o carro, mal dando chance para ele recuar.

De volta ao tempo presente, Marcelo continuava manobrando seu veículo pelo tráfego de Boa Vista a caminho do trabalho. Quinze anos haviam se passado desde aquele calamitoso término com sua primeira namorada. Apesar da tristeza que recordava ter experimentado na tenra idade de 18 anos, não conseguiu conter o leve sorriso que lhe tomou o canto da boca.

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