Capítulo 1 - parte 1 (não revisado)

A Terra era um mundo lindo e próspero que desconhecia as guerras, desaparecidas há quase oitocentos anos. O governo universal tornou-se uma realidade e hoje ela sediava um Império Estelar formado por cinquenta planetas. O governo imperial era constituído por um Imperador, um primeiro-ministro e um representante de cada mundo colonizado, conhecido como governador planetário. Os planetas eram autárquicos com as suas próprias administrações internas cujos governadores planetários eram as autoridades maiores e, abaixo, havia os ministros e governadores menores. Tinham as leis locais, que jamais poderiam ir contra a Carta Magna Imperial, mas, fora isso, eram independentes.

A Terra, por ser a sede do Império, tinha o governo planetário controlado pelo representante eleito tal como todos os outros mundos e, o governo imperial. O regime era de padrão democrático e, a constituição, ultraliberal, consequência da grande evolução do homem perante a sociedade. O governador planetário e o primeiro-ministro eram eleitos por sufrágio direto que, por sua vez, elegia os demais ministros. O cargo do Imperador podia ou não ser vitalício e representava o equilíbrio, pois ele só tinha o poder de veto e da dissolução do parlamento. Em casos excepcionais, podia dispor de poderes absolutos, conforme ditava a Carta Magna.

Assim como as guerras desapareceram, também não existia mais fome ou miséria. O programa de colonização interplanetária promovido pela Cybercomp através do seu então fundador e presidente, Daniel Moreira (2079-2635), eliminou de vez todos os problemas sociais. Centenas de milhões de seres humanos emigraram para os atuais cinquenta mundos do Império do Sol, onde a maior parte destes planetas provia matérias primas e alimentos para toda a humanidade. Não havia crimes, nem exércitos ou armas, a não ser as pequenas que eram usadas na caça ou desportos. Apesar disto, o porte de armas era permitido por lei e muitos seres humanos, especialmente dos mundos mais primitivos usavam-nas frequentemente e à vista, como era nos séculos XVIII e XIX. A humanidade, neste início de século, contava cerca de cinquenta bilhões de almas.

Quase todas as doenças conhecidas estavam erradicadas, embora aparecessem novas enfermidades, em especial nos sistemas mais afastados. Os cientistas da Cybercomp e da Megadrug, empenhavam-se em uma dura luta titânica para manter a humanidade a salvo desses males, tendo, até ao momento, obtido sucesso total e mantendo a espécie humana saudável.

Embora não fossem as únicas organizações nesse serviço, eram as maiores e mais importantes.

Cerca de trinta por cento da população da Terra, que hoje contava com apenas dois bilhões de habitantes, ainda sendo o mundo mais densamente povoado do Império do Sol, era da nova geração de homens, cientificamente designada como Homo-Superior devido ao gene mutante.

A família Moreira, toda ela portadora do gene, continuava no controle do maior complexo industrial, tecnológico e de pesquisas do planeta Terra e de todo o Império do Sol, com filiais espalhadas em vários mundos, com ênfase nos planetas onde residiam, oito deles governados pelos Moreiras.

Quanto maior a expectativa de vida dos portadores do gene, tanto nais tarde tinham filhos. Por isso, os descendentes daquele primeiro Daniel Moreira, encontravam-se apenas na terceira geração, apesar de se ter passado mais de setecentos anos desde que ele nasceu. As mulheres da nova espécie, depois da segunda geração tinham o seu ciclo reprodutivo modificado de vinte e oito dias para um ano. Essas crianças que nasciam com o gene, em especial a partir da segunda geração tinham, em média, a maturidade física e sexual completa aos treze anos, bem como um amadurecimento muito mais rápido. Nessa idade, tornavam-se maiores perante a lei e era usual um comportamento equivalente a jovens normais de vinte anos.

Em onze de Março, de 2803, Daniel Gregório Moreira, neto do primeiro presidente da Cybercomp, Daniel Moreira, acompanhava o nascimento do seu primeiro filho. Como era tradicional na família dele, o primogênito chamar-se-ia Daniel.

Alexandra, a sua esposa, estava tranquila, mas ele sentia-se por demais nervoso.

– "Acalma-te, meu amor!" – Era o pensamento emitido por ela para o marido pela enésima vez, que, outra vez, não obtinha sucesso algum.

O pequeno Daniel nasceu e ele conseguiu relaxar pela primeira vez. O menino era saudável e, como de praxe, levaram-no para um scanner e coletaram sangue para os exames e avaliações. Uma hora depois, o médico chamou o pai da criança para o seu gabinete e convidou-o a sentar-se.

– Há algo errado com o meu filho, doutor? – perguntou, apreensivo.

– Senhor Moreira, tenho sido médico da sua família há mais de trezentos anos e nunca vi uma criança tão saudável, mas o seu filho tem a contagem do gene mais elevada que já vi.

– Elevada?

– Sim, elevada. A maior contagem que jamais foi medida até hoje, era de noventa e seis, a do seu avô e, em segundo lugar, noventa e dois por cento, a sua avô Jéssica, bem como o seu pai e sua tia mais velha. Você tem noventa, uma das mais altas do Império. O seu filho, tem cem, ou seja, o gene nele é cem por cento ativo.

– Meu Deus – o pai soltou um assobio, imaginando que tipo de implicâncias isso poderia gerar – essa criança deverá ficar em observação temporária!

― ☼ ―

Nesse mesmo período e dia mas do outro lado do planeta, o doutor Nelson Chang, em Hong Kong, aguardava o nascimento da sua primeira filha.

"Afinal, que nome queres lhe dar?" – perguntou a esposa.

– "Sabes, querida, o meu nome é uma homenagem a um tio-avô meu, que foi um dos responsáveis pelo grande sucesso da Cybercomp e era tão amado pelo seu fundador, que o chamava de pai. Acho que entrei para a medicina por incentivo do meu nome e por me identificar tanto com ele, que teve uma filha muito especial e foi noiva do primeiro Daniel Moreira. Eu gostaria de dar o mesmo nome para a minha filha. Daniela Chang."

– "Assim seja, meu amor, mas, o próximo, eu escolho. Afinal, teremos ainda uns oitocentos anos de vida pela frente, no mínimo!"

– "Claro, por que não?" – Ele beijou a mulher com ternura.

O pediatra entrou no quarto e chamou o doutor Chang para o seu gabinete. A sua fisionomia oriental nada transparecia, mas o médico sentia que havia algo errado, preocupando-se.

– Sente-se, doutor – disse o pediatra –, precisamos de conversar.

– Há algo errado com a minha filha ou esposa?

– Não, mas a sua filha tem uma contagem anormal. Queremos que ela fique em observação por algum tempo.

– Qual é a contagem?

– Cem por cento.

– Está certo disso? Não há erros na análise? Eu sei que ela é delicada de se fazer, ainda hoje.

– Medimos trinta vezes. – Insistiu o médico. – Em vinte e oito, marcou cem.

– E nas outras duas?

– Uma noventa e oito e a outra cento e cinco, ou seja, fora do desvio padrão.

– É realmente um fenômeno!

– Precisamos de a manter sob observação por cerca de um ano.

– Doutor, todos sabem que a partir da segunda geração de genes ativos, não há óbito. Não vejo motivo para tanta preocupação, mas estou disposto a cooperar, considerando que ela é, presumivelmente, o primeiro cem.

– Até ao presente momento é o único cem e gostaríamos de acompanhar a sua evolução, se não se importar.

– Claro que não me importo. Eu mesmo farei questão disso, doutor, já que sou especialista em genética.

― ☼ ―

O pequeno Daniel era saudável e as preocupações do pai infundadas. Aos seis meses, ensaiava as primeiras palavras, assim como os primeiros passos. A criança era demasiado precoce, até mesmo para um portador. Ainda não havia qualquer manifestação de alguma habilidade especial, exceto a força elevadíssima e a inteligência muito aguçada, embora a criança pudesse esconder os seus dons ou apenas desconhecê-los até que se manifestassem espontaneamente ou por uma oportunidade. Os pais dele, entretanto, notavam que, apesar da pouca idade, tinha um bloqueio mental natural forte demais e inexpugnável. Nem eles conseguiam penetrar na sua mente, apesar de sentires os rudimentos da telepatia do filho através das emoções que ele emanava, mesmo com o cérebro bloqueado, algo impossível até ele nascer.

Do outro lado do planeta, o mesmo ocorria e os pais da pequena Daniela não entendiam muito bem a profundidade do poder da filha.

Apesar dos temores, nada de mal aconteceu com a pequena chinezinha que, como o menino de nome similar, teve uma evolução vertiginosa onde, aos seis meses, já falava um pouco e andava por todo o lado. Outra coisa que espantava os pais, era a memória da criança, que jamais se esquecia de algo.

Como todos os bebês, este par dormia muito.

– "Alexa" – transmitiu o marido – "já notaste que o pequeno Dan tem uma barreira mental intransponível, até quando dorme?"

– "Ele assusta um pouco" – disse a mãe. – "Jamais vi algo deste gênero, Daniel!"

Embalada pelos braços da mãe após mamar a criança adormeceu. A mente do pequenino estava bloqueada, mas o seu espírito era muito ativo. Pairou sobre o corpo, rodeado por uma forte aura dourada, mostrando que estava em um estágio muito avançado da sua evolução. Neste estado incorpóreo, não se limitava ao cérebro de bebé e pensou em um local para, encontrar-se lá no mesmo ato. Aguardando por ele, estava a sua alma gêmea mais querida.

– "Oi, amor, já estava com saudades!" – disse ela. – "Agora estamos tão longe!"

– "É, e nossos corpos são tão frágeis e inacabados" – aquiesceu ele, aproximando-se e fundindo-se ao seu espírito. – "Em breve perderemos esta capacidade e a lembrança um do outro."

– "Sim. E teremos de aguardar o tempo certo até nos reencontrarmos. Achas que este Plano será capaz de salvar a espécie humana?"

– "Acho, pois eu previ a possibilidade de isso acontecer e tomei providências na minha vida anterior!" – respondeu ele.

– "Não achas engraçado termos renascido nas mesmas famílias e com os mesmos nomes?"

– "Em relação aos nomes, talvez sejam lembranças das vidas anteriores que os nossos pais tiveram. Mas teria de ser nas mesmas famílias, porque eu preciso deles para completar o nosso plano de salvação. Diz-me uma coisa, o que foi feito da Jéssica? Fizeste tanto mistério! Ela saiu antes e já deve estar perto da adolescência."

– "Ela está mais perto do que imaginas. Quero ver como vais lidar com ela já que o nosso destino é nos unirmos."

– "Fácil, ficamos juntos os três, como é aqui!"

– "Bem sabes que, na Terra, isso não é aceite ainda hoje."

– "Estava brincando, minha linda."

– "Eu sei. Tenho de ir, amor, pois logo terei de acordar para mamar."

– "Uma pena que estejas do outro lado do planeta. Por causa dos fusos horários sobra tão pouco tempo!"

– "Eu sei, até mais..."

Em Hong Kong, um bebê acordou chorando, cheio de fome. Enquanto isso, o outro ficou perambulando ao acaso.

― ☼ ―

O pequeno Daniel cresceu rápido e com muita saúde, como era de se esperar em um portador, sendo uma criança alegre e extrovertida, sempre com ar sonhador. Aos dois anos, começou a descobrir as suas habilidades; mas, como fora previsto, perdeu a capacidade de sair do corpo e de se encontrar com a sua Daniela de tantas vidas.

Como todos os Moreiras, a partir dessa idade era enviado ao templo shaolin para aprender coisas que em geral não se aprendiam nas escolas, nem mesmo nas especiais para os portadores. Quando o puseram de frente para o seu futuro mestre, o garoto estacou, olhou surpreso para o homem, um chinês muito alto, de cabeça raspada, com olhos profundos, penetrantes e uma expressão de muita paz. Abrindo um grande sorriso, Daniel disse, atirando-se aos seus braços:

– Mestre Lee, o senhor voltou!

– Como sabe o meu nome, filho?

– O senhor foi o meu professor na minha vida anterior, mestre. Eu sou o Grande Dragão Branco, o primeiro. – Sem pensar no que fazia ou dizia, continuou em hakka. – O senhor não se lembra de mim? – Ao ver a negação estampada nos olhos do monge, ficou triste.

Lee, sorrindo muito para a criança, falou, apaziguador:

– É uma pena, filho, mas muito poucas pessoas têm memórias da vida anterior. Já vi que nos vamos dar muito bem. Onde aprendeu hakka? – Questionou Lee, falando no mesmo dialeto. Ele estava impressionadíssimo com a criança, que falou sem sotaque algum.

– Eu sempre soube, mestre, o senhor me ensinou! Da mesma forma que cantonês, xangaiês e mandarim. Eu lembro e falo. – Daniel encolheu os ombros, erguendo as mãozinhas com as palmas para cima.

– Por Buda... – disse Lee de si para si, espantado com o que ouviu.

Uma das primeiras lições do monge shaolin para os pupilos, além do Kung-fu, Ioga e Tai-chi é a meditação. O garoto empenhava-se de corpo e alma, sempre alegre e prestativo.

Impressionado, Lee notava que não havia nada que o menino não fosse capaz de assimilar. Após um mês no templo, o pai veio falar com o tutor para saber sobre o desenvolvimento do garotinho.

– Então, mestre Lee, como vai o meu filho? – perguntou. Deu uma risadinha e continuou. – Suponho que eu dava mais trabalho que ele.

– Senhor, jamais vi alguém aprender assim! O seu filho é um fenômeno, agindo como se estivesse apenas se lembrando das coisas após uma curta amnésia. Durante os treinos de Kung-fu, por mais de uma vez usou movimentos de um Grande Dragão que eu nunca ensinei por serem demasiado avançados. Apenas o corpo dele ainda não responde à altura, o que o deixa bastante frustrado. Prevejo nele o maior dos Dragões.

– Bem, todos nós que temos o gene a mais de noventa e temos memória fotográfica. Ele não seria uma exceção, já que é cem, o senhor não concorda, mestre?

– Não, senhor, não se trata disso; não me entendeu. Ele faz coisas que ninguém lhe ensinou! E há outra coisa: ele tem memória eidética, muito mais precisa do que a memória fotográfica. Fala quatro dialetos chineses que ninguém lhe ensinou aqui. Vocês ensinaram-no? Ele alega que fui eu que o ensinei, em outra vida.

– Minha nossa, isso vai ser bem complicado! – Disse, assombrado. – Diga-me, mestre, o senhor nota algum interesse especial que ele tenha demonstrado?

– Interessa-se por tudo o que vê, senhor, ele é como uma esponja que absorve o que está pela frente, mas noto que a maior curiosidade dele está na matemática, física e afins. Observa tudo e faz diagramas. Vi-o a estudar dois jovens treinando e, enquanto eles faziam um simulado, ele pôs-se a analisar os dois, desenhando um diagrama de vetores correspondente às direções dos golpes. Sugiro aumentar o foco nessa área. Deve ir para a escola e já, mas não qualquer escola. Tem dois anos e já lê com perfeita fluência bem como também escreve, não só em português. Olhe. – Diz o mestre tirando um papel escrito em chinês!

– Santo Deus, como lidar com isto?

– Com muito tato e compreensão. Ele é único no mundo, talvez a prova viva de que existe a reencarnação. Acredito que venha a ser o maior homem de todos os tempos, senhor, e estou muito contente de ter a honra de ensinar este pequeno. Jamais vi uma criança assim. No entanto, o risco dele sentir-se deslocado é demasiado alto.

A caminho de casa, o pai dirigia em silêncio, pensando na palestra com o monge. Após um tempo, perguntou:

– Filho, onde tu aprendes as coisas que o mestre Lee ainda não te ensinou?

– Eu lembro, pai, não lembro tudo, mas lembro muita coisa. Só que muitas delas eu não entendo.

– Mas lembras o quê? – Perguntou, desconfiado. – Quando foi que aprendeste?

– Ora, antes de eu nascer era aquele homem que está no templo. Eu lembro o que ele sabia, mas não tudo, infelizmente.

– Que homem, filho?

– Aquele que está em uma caixa de vidro.

– O teu bisavô!? – Olhou para o filho, incrédulo. – Tu dizes que eras o teu bisavô Daniel?

– Isso – anuiu a criança – eu era ele. Tenho a certeza e lembro de muitas coisas, pai, mas não tudo, como já disse.

– Caramba, era só o que faltava! Aquele testamento é real!

– Pai – disse o garoto, mudando de assunto com uma velocidade impressionante – acho que devíamos parar com essa história de pôr Daniel no primeiro nome de cada um de nós. Com a longevidade da nossa família, em breve teremos quinze ou vinte Daniéis vivos, um de cada geração, no sentido vertical e horizontal!

O pai não aguentou e deu uma gargalhada explosiva porque o garoto era demasiado experto.

– Sabes, filho, eu pensava assim; mas, quando tu nasceste, quis dar esse nome em homenagem ao teu bisavô que eu amei tanto. Sem falar que virou uma tradição na família. E agora dizes que és ele!

– Sou sim, pai. E tu eras um amigo meu que não tinha o gene ativo, mas eu não lembro do nome dele, pelo menos por enquanto. Também não me lembro da minha morte. Sabes alguma coisa a respeito?

– Sim, filho. O teu bisavô e a tua bisavó eram os únicos com o gene tão ativo que viveriam muito mais de mil anos. Eles não quiseram, porque todos os seus amigos morreram cedo. É o preço de ser o pioneiro. Quando a última amiga deles, Bianca Fonseca, morreu com quase trezentos anos porque era a única que tinha o gene a trinta e cinco por cento, eles ficaram muito solitários, porque só tinham um ao outro.

– Mas e o vovô e tu e os outros tios avós?

– Não era a mesma coisa, meu filho. Nós eramos jovens demais para eles que tinham mais de quinhentos e cinquenta anos. Eu custei para entender, talvez porque nunca fui muito dado a meditações. Então, eles começaram a viver para o interior. Meditavam muito, exploravam a vida fora do corpo. Um dia, o meu pai e os irmãos foram chamados à casa da praia, onde encontraram os teus bisavós tal como os viste no templo, vestidos com quimonos brancos em posição de Lótus. Eles despediram-se com uma carta e "desligaram". Não morreram, apenas desligaram! Cento e cinquenta anos depois, os corpos continuam assim.

– Então, pai – disse o garoto com um suspiro – ainda tenho muita coisa para aprender.

― ☼ ―

Ver Dragão Branco I – O Despertar de um Herói.

Dialeto chinês.

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top