6- EU COLOQUEI UM FEITIÇO EM VOCÊ
"Eu coloquei um feitiço em você
porque você é meu
É melhor você parar as coisas você faz
eu não estou mentindo."
I put a spell on you- Screamin Jay Hawkins
Há duas semanas, eu trabalhava na lavanderia dos Herveaux no turno da noite. E quando não estava atendendo aos poucos clientes, em sua maioria humanos, trocando as notas por moedas ou completando os recipientes vazio de sabão em pó, tirava longos cochilos no colchonete fino que ficava bem embaixo do balcão. E sempre que deitava coberta com apenas um lençol e fazendo a jaqueta de travesseiro, agradecia por ser verão.
E também por ser pequena já que uma pessoa de estatura média para alta nunca caberia naquele cubículo. Era confortável? Não. Mas era seguro. Pelo menos, parecia seguro.
Desde do dia que cheguei na cidade, a minha mente dava voltas e voltas com a descoberta de que outros seres não-humanos vagavam por essa terra. Como não percebi algo tão óbvio? Talvez, assim como a maioria das pessoas, eu apenas não tinha assimilado tão bem a existência dos vampiros a ponto de cogitar outras possibilidades. Ou só era meio lerda mesmo.
Também quebrava a cabeça pensando em como sobreviveria caso a gnosis, que aparentemente conheci quando criança e não fazia ideia do que tinha feito para ferrar com a vinda dela, voltasse e terminasse o serviço.
Ou qualquer outro ser que de alguma forma eu possa ter prejudicado. Porque, pelo jeito, eu tinha talento para me envolver com seres sobrenaturais, um talento bem nocivo. Talvez fosse meu sangue, a gnosis insinuou que ele era maldito, contudo ela também falou de Deus como seu eu fosse culpada pelos mandamentos Dele. Não, não dava para levar a sério o que ela falou, só se eu estivesse mais transtornada que ela.
A única coisa boa, era que eu havia tido mais lembranças com a minha mãe: ela cozinhando, me dando banho, lendo e cantarolando. Coisas que uma mãe faz para uma criança pequena. Talvez eu tivesse uns seis ou sete, não mais que isso, época que não sabemos chamar nossos progenitores de outra coisa além de mãe e de pai. O que me deixava sem um nome, um local onde começar a procurar. Será que meus pais estavam me procurando? Será que estavam vivos? Queria ter essas respostas, queria minhas memórias de volta, mas, como os médicos alertaram, elas poderiam voltar um dia, completas, ou em fragmentos, ou nunca voltar.
Suspirei pesado, eram dez da noite; ao fundo, como ruído, ouvia a reprise do debate sobre os ataques e mortes causadas pelos vampiros dissidentes. De um lado da tela, a representante dos vampiros, uma vampira loira de olhos azuis, uma mistura de Sharon Stone com Anita Ekberg; do outro, o Reverendo Newlin, careca, inchado e vermelho. Enquanto ele apelou usando a fé e o medo, ela pedia para que os humanos não julgassem toda a comunidade vampírica pelos erros de alguns:
"Humanos fizeram guerras, escravizaram, torturaram em nome da fé, dos governos, de ideologias outros humanos. E nem por isso vocês são definidos por essas ações" — ela falou.
E na sequência chegou até afirmar que os portadores do vírus, a forma mais cordialmente aceita para chamar os vampiros, poderiam até mesmo serem bons cristãos. Essa foi uma resposta à insinuação que o religioso fez quanto à natureza satânica deles.
" O vírus só nos tornou sensível à luz — ela discursava—, e dependentes de sangue... Mas nós não queimamos ao entrar numa igreja, tão pouco diante de crucifixos."
" Blasfêmias!— gritou o reverendo. — Mentiras! O diabo é o pai..."
Assim como a vampira, parei de prestar atenção em tudo o que ele falava. Ela por achar um absurdo debater com alguém com aqueles argumentos; eu, por dar atenção ao último cliente, um jovem que parecia ser um pouco mais velho que eu, pele cor de bronze, cabelos e olhos castanhos escuros, voz bonita, uma barba perfeita e que tinha sido muito gentil ao deixar os classificados para mim ao sair.
E como precisava de gentileza, e de um novo emprego.
Trabalhar na lavanderia me dava apenas o suficiente para não passar fome, porque o salário que JD Herveaux, o dono, pagava era uma miséria.
Miguel, o jovem que trabalhava no turno da tarde, revirava os olhos sempre que imitava o jeito de JD ao falar que o salário era condizente com as nossas obrigações: "poucas e simples". E não perdia uma oportunidade para alfinetar:
— Sabe... Eu soube que ele e o filho eram sócios numa construtora. Ele era do Jackson se não me engano, mas veio pra cá e comprou isso aqui do meu pai — fofocou Miguel no dia em que pedi o emprego. — Eu fiquei... Como meu pai diz: sou um vagabundo incurável ... Mas voltando, o emprego é seu... Consigo reconhecer de longe alguém desesperado, e para aceitar esse salário ridículo que ele oferece, você está.
Ele não errou, e eu ainda estava desesperada circulando as vagas que não requeriam muito estudo ou experiência quando senti aquela coisa na nuca. E antes mesmo dele entrar, eu já sabia quem era. E no tempo de uma respiração curta, Eric estava parado na frente do balcão.
Com uma jaqueta esportiva de veludo azul-marinho, calça sociais, chinelos de dedos e os cabelos loiros, longos, repartidos e jogados para trás, o vampiro parecia uma mistura de astro de rock com os jovens estudantes que deixavam todas as roupas sujas acumularem até precisar usar a peça mais vergonhosa do guarda-roupa.
Ele não pareceria alguém tão perigoso se não fosse o pálido acentuado da pele sob a luz incandescente, e os brancos dos olhos em vermelho vivo.
— Boa noite! O atendimento é self-service. — Encarei as moedas que tilintavam no pote que mexia para fingir indiferença. Só fingir, porque ele realmente mexia comigo de um jeito estranho. — Caso precise de moedas só trocamos, no máximo, uma nota de 5 por cliente.
—Eu não vim aqui para isso e você sabe. — O tom cortante da voz anasalada dele fez com eu engolisse em seco. — Eu quero que você retire.
E dessa vez, fui eu quem lancei para o vampiro um olhar vazio, com os ombros erguidos e as mãos espalmadas para cima.
— Eu estou falando sério, Lara.
— Mas eu não sei do que você está falando.
— A maldição...
— Eu ainda não sei do que você está falando, Eric.
Levantei a tampa do balcão e passei por ele, sentindo o cheiro fraco de podre. O vampiro virou nos calcanhares e me acompanhou até o corredor onde as máquinas de lavar ficavam enquanto eu conferia, novamente, o nível de sabão em pó uma por uma.
— Sinto muito, mas precisa ser mais claro pra eu...
E as mãos geladas do vampiro fizeram parar o que estava fazendo e virar para encará-lo. Eu não sabia o que mais me deixava desconfortável naquele momento: a nossa proximidade, minha cara de idiota, ou odor enjoativo que emanava dele? Apostaria minha bunda que era o aperto dos dedos dele nos meus ombros.
— Você me jogou uma maldição naquela noite.
— Ouh, tá machucando — falamos juntos, e ele me soltou no mesmo instante. Alisei os ombros me afastando; o cara parecia que não tinha noção da força que tinha. — Obrigada — falei por força do hábito, e me senti estúpida.— Eu não fiz isso aí, não. Nem sei como fazer, se você quer saber.
— Lara...
— Tô falando a verdade... eu não fiz isso! — E um filete de sangue escorreu dos olhos do vampiro caindo até o chão — Ei, você tá bem?
— Se estivesse, não estaria aqui. Vamos, querida, não tenho a noite toda, retire.
Enchi a boca de ar, e soltei bem ruidosamente; outro filete escorreu por seu rosto.
— Caramba, tá mal mesmo, tá até chorando — pensei alto.
— Não se faça de estúpida... isso é... eu...eu...eu estou lacrimejando.
Essa última parte me pareceu um sussurro.
— Cara, talvez você só esteja gripado, sua voz tá até fanha...
—Cara?! Não me tire do sério! Eu estou por aqui!— Mostrou o indicador bem próximo ao polegar, e falou entre os dentes: — Acabar com sua vida não vai ser difícil. — Limpou o rosto na barra da manga da blusa, um gesto tão banal que o fez parece tão humano. — Vampiros não podem ser infectados por vírus.
— Mas, e o sino AIDS? Vai me dizer que vampiros n... — Eric mostrou os caninos para mim, calei na hora.
Aparentemente, esse era um assunto proibido, só esqueceram de mandar o memorando avisando sobre isso para mim e para os programas que passavam várias reportagens sobre essa versão do vírus do HIV que os humanos poderiam transmitir para os vampiros.
Os humanos não ficavam doentes, mas os vampiros ficavam realmente mal e por um longo período. E quando, e se, se recuperasse, o humano que os infectara precisava se esconder ou torcer pela benevolência do vampiro em questão.
O que não deveria acontecer nunca.
— Tá ... vamos supor que você não esteja gripado e nem doente, e que eu coloquei um feitiço em você. O que eu não fiz. Como essas coisas podem afetar um vampiro, hum? Vocês são tipo, sabe... mortos-vivos... imortais, mágicos fodões, sei lá...
—Bom, querida, nitidamente não somos imunes à magia... e nem somos imortais... Podemos sofrer a morte verdadeira, mas não como os humanos que morrem de doença ou velhice... — Ele gesticulava afetado com as mãos, como se estivesse entediado por falar o óbvio. — Agora retire.
— Como eu poderia fazer isso!? Me diz...— E dei mais um passo para trás, apalpando a pedra sob a camiseta. — Tudo o que eu fiz foi pegar na sua mão e inventar uma história. E como você tem tanta certeza que foi eu? E a gnosis? Ela tem poder para isso, não?
— Eu procurei ajuda médica...
—Os médicos desta cidade também atendem vampiros!? Foi Médico humano ou vampiro? — Nesse momento, minha mente foi longe imaginando o vampiro na fila da emergência. Será que ele tinha preferencial?
— Não esse tipo de médico, Lara! Era do tipo especial... e ela não soube dizer quem fez, e nem como quebrar, mas me garantiu que não era a gnosis, também fui atrás de algumas bruxas da região...
Pela cara de nojo dele ao falar, percebi que não foi uma visita muito agradável, e talvez tenha sido sua última opção antes de me procurar.
— O que me leva a você e aquela maldita noite em que te ajudei — continuou—, você tem noção de como minha vida está um inferno desde então?! Eu perdi parte do meu olfato, meus olhos não param de lacrimejar... Não posso nem me alimentar em paz porque aonde que eu vá esse cheiro de morte me acompanha... E o sangue... o doce sangue tem gosto de merda... e o pior eu pareço um humano fraco tropeçando nas minhas próprias pernas, batendo nas quinas... E eu sou porra de um vampiro de mil anos, Lara! Mil anos...
Apesar da tensão, gargalhei alto.
E o vampiro deu um passo em minha direção, fazendo eu parar na mesma hora. Os vampiros eram bastante sensíveis, percebi, pelo show que ele fazia com coisas tão bobas. Mesmo assim, precisava ser mais cuidadosa já que amaldiçoado ou não, ele poderia acabar comigo em um segundo.
Ou não.
— Calma aí, vampirão, eu não te amaldiçoei. Eu nem sei como fazer isso.... Mas se o que você diz é verdade, me matar não vai adiantar, vai?
—Lara...
—Tô falando a verdade... eu não fiz isso. Não, propositalmente...
Quando percebi, ele estava me pressionando contra a parede, minha cabeça um pouco abaixo da linha dos peitoral dele e sua mão segurando meu pescoço, me obrigando a olhar para cima.
E nossa, ele realmente cheirava à morte.
—Eu estou pedindo, mas posso te obrigar. E garanto: não vai gostar dos meus métodos.
Sei que não sou nenhum Sherlock Holmes, mas, às vezes, eu consigo me superar; e esse foi um desses momentos em que minha mente brilhou mais que diamante.
— Não ... você sabe que me machucar não vai adiantar. Se não, você não estaria aqui me ameaçando...não mesmo. Se adiantasse, eu já estaria em algum quarto escuro toda estrebuchada...
Ele se afastou, me dando as costas. Touché
—O que significa que você precisa de mim... viva e bem, não é?— continuei, o silêncio que caiu foi a confirmação, e vi ali uma oportunidade única. — Vamos fazer um acordo: se você me ajudar, vou dar o meu melhor pra tirar isso aí de você. Ou você pode...
E o vampiro saiu do mesmo jeito que entrou, deixando para trás aquele leve cheiro adocicado de putrefação e o banco, no qual esbarrou, fora de lugar. Soltei uma risadinha enquanto ajeitava o banco.
A vida não gira, capota.
— O que você quer? — Ouvi a voz de Eric enquanto voltava para o posto. E virei para o vampiro que parecia muito contrariado. — Me diz que tipo de ajuda você quer de mim. —Não disfarcei o sorriso. — Mas não abusa...
— Primeiro: eu quero que você me conte o que sabe sobre o meu passado. — E o vampiro assentiu. — Segundo: você vai me proteger. Nada de ser saco de pancadas seu, ou de qualquer outra pessoa, ser... o que seja. Quero poder investigar minha vida em paz. — Ele revirou os olhos para mim, enfatizando o quanto aquilo estava implícito ou apenas entediado. — Eu só quero deixar as coisas claras, Eric...
— Estamos de acordo então...
—Eu não terminei. — E o suor começou a escorrer pelas costas. — Terceiro: depois que a maldição, feitico, sei lá, acabar, você não vai poder me matar, torturar, ou qualquer coisa que esteja pensando em fazer como vingança — o vampiro bufou, parecia frustrado. — E por último: eu preciso de um emprego que me permita pagar um lugar decente pra ficar.
— Mais alguma coisa?
— Você poderia ser mais gentil....Aí — reclamei ao sentir uma leve dorzinha na cabeça, e vê-lo com alguns fios do meu cabelo. — O que é isso?
— Meu jeito de me assegurar.
E guardou meus fios num lenço, retirado e guardado no bolso da calça com muita agilidade.
— Então, temos um trato?
Ergui a mão para selarmos o acordo. Se tudo começou quando peguei na mão dele, nada mais lógico que refazer o mesmo gesto. Depois de alguns segundos com a mão estendida para o nada, ele a segurou com má vontade, percebi pelo toque frouxo, e apertamos as mãos.
— Cumprindo o que prometeu, a maldição acaba.
E ele partiu logo em seguida.
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