43-O TODO E O NADA
Havia o Todo e o Nada, dois lados da mesma moeda. Havia a escuridão e um feixe de luz. Eu era parte do Todo e do Nada. Vi estrelas nascerem para morrerem em espaços de tempo incalculáveis para a percepção humana.
Éramos como fagulhas nos desprendemos do Todo e do Nada, éramos centelhas de vida navegando na infinitude do espaço. Testemunhei meus iguais fragmentarem-se mais nas mais variadas formas de existência. Os vi crescer, morrer e renascer.
Permaneci um fragmento do Todo do Nada, porém inteira.
Em algum ponto da minha existência etérea, fiz morada num pálido ponto azul do espaço. Escrutinei as almas, dispostas a mim em cores e sensações, dos seres que ali habitavam por eras.
Um dia o vi. Era um belíssimo espécime. Suas penas brancas pareciam tão macias, seus olhos negros tão belos e limpidos. Pescoço alongado e pernas finas delicadas. Quis pela primeira vez ser matéria para tocar em algo.
E assim, movida pela fome de sentir, tomei forma.
No processo, a penugem branca da garça gigante, maior que um humano adulto, tornou-se cinza na parte de cima, branca no peito, as asas seguiam o mesmo esquema de cores, cinza nas bordas, brancas no centro. E sua vida foi alongada por um tempo maior que os dos seus semelhantes.
Maior que ele, ganhei penugens púrpura intensa, mesclando azul e dourado. Minhas asas abertas podiam esconder o sol de uma porção significativa da terra e era um espetáculo de cores vivas como o alvorecer de milhares de sol.
Como todo ser senciente, experimentei frio, calor, o sabor das frutas e carnes, a textura da minha penugem, o vento em minhas asas.
Seguimos juntos despercebidos pelos humanos, raros eram aqueles que nos notavam e por eles recebemos os mais variados nomes: Bennu, Simurgh, Feng Huang... Fênix. Fomos confundidos, cultuados como deuses, presságio de morte e também de vida.
Então, ele morreu. Entoei pela primeira vez a canção da dor e ela ecoou pelo tempo e espaço. Segui sozinha. Vi impérios surgir e rui. Povos desaparecem num piscar de olhos.
Tive fome de companhia.
A dor da solidão foi tão lancinante que precisei rasgar meu peito e parti meu próprio coração dourado ao meio. E do meu coração, meu amor, minha vida, amante, irmão, carne da minha carne... Metade inteira de mim nasceu.
Ele era majestoso. Imponente. De grande dimensões. Seus olhos eram dourados. As plumas pareciam escamas também douradas. Imperioso por nascer da minha fome, era vaidoso e por vezes egoísta. Tomava o que lhe convia. Ainda assim, o amei e o respeitei, e recebi dele o que dei na mesma intensidade.
Mas, meu amor nunca foi prisão e quando quis partir, partiu. De tempos em tempos reencontrávamos para nos despedirmos novamente.
Até que senti na minha própria carne a dor. Minha metade foi morta, soube assim que parei de senti-lo em meu peito e vi suas luzes ascenderem aos céus e caírem na terra fragmentando-se em milhares e milhares de faíscas. E entoei mais uma vez a canção da dor. Escondi-me no seio da terra.
Tive fome de morrer.
E do meu interior o fogo nasceu nos mesmos tons de minhas penugens lavando minha dor. E das minhas cinzas renasci. Passei por todos os estágios até me tornar o que era.
E no seio da terra continuei a me esconder.
No tempo humano de vinte um anos, um lamento em forma de choro veio a mim. Quis ignorar, deixar para lá, mas eu reconhecia aquela dor e com ela me conectei. Fui até a sua fonte. Uma humana cuspia palavras amargas ao pé de uma tamareira. Gritava e chorava. A invejei por conseguir botar para fora a dor que sentia daquela forma tão verdadeira. Até aquele momento, nunca tinha prestado atenção aos humanos, era cansativo as inúmeras emoções e cores que eles emanavam. Contudo, era essencialmente linda. As cores e emoções que ela emanava eram hipnotizantes, tão viscerais e genuínas.
Sua aparência também era formosa, pele tão escura quanto ébano, olhos líquidos e doces, negros, mas não tão negros como o meu. Seios firmes e pequenos, pernas roliças e ventre proeminente. A observei de perto por semanas, sem me fazer notar, decorei suas cores. Entendi seu pesar. A perda de um filho, da liberdade. O desejo de ser nada. E ela se deixou levar por aquele vazio desolador, e se jogou do alto de um penhasco.
"Egoista," pensei. "Como ousa me abandonar aqui?"
Fui atrás da humana aparando sua queda. Ela esbravejou, gritou e me amaldiçoou. Não me importei, ela era minha e não a deixaria partir para onde eu não poderia encontrá-la. Ela então, me notou, verdadeiramente me notou e implorou
— Mata-me ou tira-me daqui.
A carreguei dali para um outro lugar.
— O homem que amei — ela disse — me prometeu abrigo em sua língua há tempos... ele se foi, e filho que me deu também. Katafýgio é como chamarei esse lugar.
Era uma ilhota no meio do mar, sem vida alguma. E com as minhas lágrimas e sangue , frutifiquei e expandi aquelas terras para que ela tivesse onde se abrigar do sol e da chuva. A protegi dos males do céu, do chão e do mar. Ela foi feliz ao meu lado por um tempo, mas ansiava por uma companhia como ela. Uma companhia humana.
Tive fome de saciar o desejo dela.
E de novo, rasguei meu peito e da metade que sobrou tirei a metade. Depositei meu coração flamejante e pulsante aos seus pés, e com minha lágrimas apaguei as chamas e ele se transformou em pedra.
Quando ela pegou em suas mãos, pela segunda vez, tomei forma.
Num primeiro olhar, era um espelho dela. A cor da pele e dos cabelos, o tamanho. Era nas nuances que se via a diferença. O jeito de olhar, de sorrir, até de falar. A cor dos meus olhos permaneceram escuros como a noite. Fraca, tive que reaprender a usar meus poderes e ainda era mais forte que ela.
Aprendi a ver, ouvir e falar como um humano, a sentir e pensar como um humano. E ela me chamou de "nascida para me trazer alegria e felicidade".
Fomos amigas, irmãs, amantes. Os anos passaram e envelhecíamos devagar, eu mais do que ela. Katafýgio foi se tornando um porto aberto aos corações desesperados. Uma casa se tornou vila, a vila se tornou aldeia, a aldeia a cidade. Os rostos de todos os cantos pintavam cada canto daquele lugar. Não havia senhores ou mestres. Nem olhares torto para o que éramos.
Naquele dia, quarenta luas juntas, antes dela se explicar eu já a tinha abençoado em seu novo caminho. Quem era eu para impedi-la de amar outro?
— Deste-me o coração, venho cá devolve-lo. Não sou digna...
— Meu coração é teu, Asnakech, enquanto viver.
— Não irás ressentir de mim?
— Nunca.
Parti na manhã seguinte, não por mágoa ou raiva. Queria provar do mundo. E assim o fiz, sabores, cores, línguas, amores. Quando retornei a Katafýgio, Asnakech já tinha mais de 170 anos e se preparava para partir para onde nunca a encontraria. Viúva mais de 3 vezes, inúmeras amantes, cercada por filhos e netos e bisnetos, descansando em sua cama. O rosto enrugado, corpo pequeno e frágil. Cabelos brancos e ralos e ainda era bela. E em seu peito, meu coração descansava como um pingente, pulsando ... alongando sua existência.
— Abayomi, estava te esperando.
— Demorei muito?
— Sempre na hora certa.
E assim que me devolveu meu coração, o dela parou. E pela terceira vez, entoei a canção da dor. Cuidamos do seu corpo, conforme o desejo. E naquela terra, tão diferente da que tinha deixado, permaneci. Descendentes diretas de Asnakech haviam criado lendas e mitos em torno da minha presença, me cultuavam. Compartilhei de seus ritos, brinquei e abençoe cada ser que vinha a mim. Era inocente.
E para uma delas, entreguei meu coração.
Aída havia herdado da ancestral uma alma cantante e reluzente. Ela foi minha filha, minha irmã, minha mãe e minha avó. E meu coração passou dela para sua neta, como herança de família.
Quando isso aconteceu, todos os esforços que fiz para a avivar a terra, partir meu coração e poder, cobraram seu preço, sabia que meu fim tinha chegado. Gravei minha história nas paredes da caverna ao leste da ilha, na parte mais selvagem e inóspita, meu ninho de morte.
Nox, a neta de Aída, ficou responsável por cuidar de mim em meus momentos finais e segurou minha mão até eu sentir o ardor nascer em minhas entranhas. Quando o fogo me consumiu, estava sozinha... mas não havia dor.
Era o fim de um ciclo e início de outro quando Nox entrou na caverna e em respeito jogou meu coração nas cinzas. As cinzas se tornaram chamas e quando apagou, eu era um bebê segurando meu coração petrificado na mãozinha cor de brasa, E assim que Nox me pegou no colo, assumi sua cor e características. Ela me chamou de Acácia, aquela que não tem maldade.
Fui uma criança como todas, tive dor de barriga, dente e febre. Ao cair, eu sangrava. Nada diferente foi notado, exceto a capacidade de enxergar a intenção dos outros; vez ou outra, com minhas lágrimas devolver a vida a flores e bichos mortos.
Cresci curiosa e saudável. E cada vez mais parecida com Nox, nunca duvidei que ela fosse mesmo minha mãe e ela nunca fez questão de não ser. Tirando os sonhos recorrentes com mulher de pele tão escura, uma ave gigante e um dragão dourado, não nessa ordem, não lembrava de nada da minha vida passada.
Fui amada, profundamente adorada como todas as crianças de Katafýgio. Não tive tratamento especial, nem sabia o que era. Noix quis que eu fosse, mesmo que essencialmente diferente, igual a todos. Mas algo mudou ao nosso redor, algo que não tínhamos controle algum, e quando histórias sobre meus dons chegaram a um grupo de adoradores da Abayomi, um grupo com ideias mais radicais e pensamentos controladores, fui tirada de minha mãe e em torno de mim construíram um castelo, fiquei apartada do mundo.
— É para protegê-la— disseram.
Cada vez menos via minha mãe. E sempre que nos encontrávamos ela dizia que estava tudo bem. Que eu deveria confiar naquelas pessoas como confiava nela. Que era temporário. Tive meu corpo transformado na flor da mocidade, tive minhas regras e ansiava conhecer um rapaz com quem casar e ter filhos. O que nunca aconteceria.
Completamente alienada da vida, não percebi a mudança que ocorria fora dos muros; as mulheres, que eram responsáveis por tudo naquele lugar, foram perdendo espaço, renegadas a segundo plano. Até mesmo as festividades religiosas que era o que eu mais gostava por ter tantas danças e músicas, por podermos ser livres, foram podadas. As roupas foram controladas. Eu era só um ornamento. Mas não importava, sendo sincera, aprendi a gostar do amor e adoração que recebia. A aceitar aquela realidade. Ainda tinha minha mãe ao meu lado dizendo que tudo ficaria bem. Não percebi que ela também estava sendo controlada.
Quando completei 21 luas, minhas regras cessaram. Ao cortar o dedo certa vez, eu nem cheguei a sangrar tão rápido foi minha cura. Os sonhos se revelaram memórias e suavemente deixei de ser humana e me tornei algo próximo ao divino.
Vi crianças se tornarem adultos, adultos se tornarem anciãos, anciões voltarem ao pó, chorei a morte de Noix e permaneci a mesma. Não percebi o quão domesticada havia sido até que anos aceitando ser apenas um ornamento, ele veio para mim.
Das minhas memórias, eu sabia que um dos meus amados, o dragão dourado, ao morrer se transformou em centelha de vida.
Uma boa parte sumiu, como se tivesse sido tragada pela terra, mas as outras, renasceram como humanos e animais e plantas. Dos tempos de outrora, quando fui livre, lembrava-me de encontrar vez ou outra com alguns dos seus fragmentos. Alguns eram imensamente inclinados a mim, outros nem me notavam.
Mas nenhuma daquelas almas brilhava tanto no tom dourado, orgulhoso e ambicioso como meu amado, como alma daquele estrangeiro.
E depois de tantos anos, tive fome. Fome dele.
Eu queria ser dele, e que ele fosse meu. Mas era proibido. Por não a verem com homens, deduziram que Abayomi era virgem... e portanto, eu deveria ser virgem também para não quebrar o ciclo.
Mas eu o queria. Queria saber como ele estava nessa vida. Quem ele era e quanto havia do dragão nele. Foi quando percebi o quão longe tinha ido em minha apatia.
A desgraça era a única resposta para o meu desejo. E eu disse sim. Dei a o estrangeiro meu coração. E paguei o preço.
E a morte foi excruciante, dolorosamente longa. Me ressenti de todos que um dia amei e abençoei. Tive fome de vingança.
Se eu queimaria, eles também queimariam.
Séculos e séculos passaram, e a ilha era apenas um amontoado de terras e cavernas, nada sobrou de katafygio, da minha história.
Uma jovem recém casada, ao mergulhar nas costas encontrou uma pedra diferente no fundo do mar. Como quem é encantado por magia, precisou pegá-la; e enquanto visitava uma das cavernas, um amontoado de pó chamou a atenção. Ela não soube explicar, mas sentiu que precisava jogar a pedra ali.
E um novo ciclo se iniciava. Willow se apaixonou por mim. Me amou, cuidou. Era seu sonho ser mãe. Ela me chamou de Lara. Fui uma criança que assustava os adultos em minha volta ao desmascará-los em suas mentiras. O marido de Willow nunca gostou de mim e por mais que eu me esforçasse ele só me odiava. Temia o que eu era.
Willow foi avisada, por serem ancestrais, os Dachees, que me manter perto dele era perigoso. Que quem eu era nessa vida estava manchada pelo o que fiz na vida passada. Que precisavam apaziguar o ódio destruidor em mim e não alimentá-lo. Que as almas que amaldiçoei em outra vida, estavam atrás de mim nessa vida para me fazer sofrer.
Ela os ouviu, mas seu coração era generoso e acreditava que seria capaz de amolecer o coração daquele homem, sem aceitar nosso destino sinistro. Sem saber que os ancestrais de Nabal estavam em Katfygios, só sobrando um que jurou matar todos os sobrehumanos.
Oito anos, eu tinha essa idade quando fui perseguida por seres sobrehumanos, o quais nunca fiz mal e tentaram me matar. Naquela noite os dachees vieram ao nosso socorro. Minha mãe priorizou minha segurança e ficou para trás. Foi mordida tantas vezes que se não fosse pelos cuidados dos dachees ela teria morrido.
Ela foi salva para morrer um mês depois na mão do homem que jurou amá-la e protegê-la. Naquela noite, pela dor da perda e da raiva quase me transformei e só não queimei tudo porque era mais humana do que deidade.
Talvez tenha sido naquela mesma noite, ou depois, o tempo era confuso para uma criança em luto, os dachees me salvaram de Nabal. Giorgos, irmão mais novo de Nabal, ajudou na minha fuga, mas não foi aceito nas terras Daschees. Chorei, gritei, esperneei...
— Coelhinho, você precisa ficar, não fiz coisas boas para essa gente, mas eles vão cuidar de você. Eu preciso ir.
E ele se foi. Vivi algum tempo próxima aos daschees, Dachee Kan Akaakilee, a mãe de todos, me ajudou com o luto até que Nabal desistiu de me dar paz e me encontrou. Ele realmente acreditava que a culpa pela morte de Willow era minha.
Dachee Kan Akaakilee tomou a bala que era para mim, e mais uma vez fui protegida e outra pessoa morreu em meu lugar. E Nabal matou todos. Um por um que entrou em seu caminho e colocou a culpa em mim. Criança, frágil, acreditei que era realmente a culpada.
Só permaneci viva pois era forma dele me punir, e ao saber que meu sangue era atraente para grande parte dos sobrenaturais, ele tirava de mim aquilo sempre que queria caçar. Aceitei ser tratada da pior maneira possível. Me tornei cúmplice.
Anos depois, o homem dos meus sonhos apareceu para mim. E não havia mudado nada. Mas ele não era mais um homem, era um ser diferente. E, de novo, era proibido, ele era uma das vítimas de Nabal.
Não resisti ao apelo do meu coração e fui ao seu encontro. Toquei em sua mão fria e não senti suas intenções. Naquela época, mal conseguia ver a sua aura vermelha turva. Ainda assim, o soltei. E ele me atacou. Com raiva arrebentou a corrente de prata em volta do meu pescoço e com selvageria enfiou os dentes em mim.
Meu sangue correndo em suas veias, me vi pelos seus olhos. E cada golada a mais, eu morria para viver sob a pele dele. Ele me largou quase seca no chão antes do sol nascer e partiu.
Quebrando meu coração em pedaços. Por que eu era assim? Por que um estranho tinha tanto poder sobre mim?
Acordei no meio da tarde. Apanhei meu colar do chão colocando na calça, correndo para dentro de casa para pegar algumas coisas e fugir. Não cheguei muito longe, fui encontrada pelo homens do Nabal.
Fui machucada, eu tinha 17 anos, e de novo, só não queimei tudo porque era fraca, muito humana.
Era madrugada quando ele decidiu me matar.
Senti o homem dos meus sonhos próximo a mim, sabia o que ele era e o que precisava fazer. Eu poderia morrer, mas não iria sozinha. O convidei a entrar. E ele matou todos.
Eu fiquei realmente feliz e vi a cabeça de Nabal rolar no chão. A canção da dor pesou em meu peito, trazendo todas as minhas perdas. Eu queria morrer. Eu queria esquecer.
Quando o vampiro veio me salvar, eu implorei:
— Ou me mata de vez, ou me faz esquecer tudo.
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