35- DEVORANDO OLHOS


Naquele fim de madrugada chuvosa, Eric estacionava o Corvette na frente de um hotel de estrada.

— Eles não aceitam vampiros. — Meus dentes batiam um contra o outro, o aquecedor ficou desligado o tempo todo, para não embaçar o vidro. Até a visão perfeita dos vampiros tinha limites. — E nem tem bloqueadores nesse lugar horrível.

— Ninguém vai me procurar aqui. Tente chamar pouca atenção e vai ficar segura. Ao anoitecer, venho te buscar.

— Espera...

E antes que eu pudesse terminar, ele se embrenhou no mato que ladeava a estrada me deixando triste, cansada e sozinha com todos os meus pensamentos.

Pelo menos, foi bater na cama e desmaiar.

Só acordei no meio tarde, ensopada de suor, como sempre acordava ao sonhar com a mulher em chamas, e o pior era que ainda estava dolorida e machucada, nem mesmo a mordida do pulso tinha sumido. Fazia bastante tempo que não tinha que lidar com uma recuperação tão lenta; culpa, certamente, do Eric por beber tanto sangue meu.

Ao cair da noite, ele estava na porta do hotel, sujo, da cabeça aos pés, de lama.

— Meu Deus, dormiu debaixo da terra? — Foi uma piada, mas pela cara dele tinha sido realmente o que havia acontecido. — Vai tomar banho, eu vou ver se sobrou alguma roupa que te sirva no carro.

Voltei com a camisa do Fangtasia e a calça de linho do terno e partimos depois que ele terminou de se vestir. Do banco do carona, eu me segurava para não reclamar do jeito horrível dele de dirigir ou fazer muitas perguntas, mas não aguentei muito tempo ficar sem saber o que estava acontecendo.

— Não é estranho Lorenza mandar os homens dela te atacar e roubar a própria caixa? — Ele colocou os olhos sobre mim e aquela partezinha estranha do meu cérebro, que agora eu sabia que era ele, ressoou agitada. — Te irrito...

— Não mais que o normal.

— Então...

— Não foi o Lorenza, se fosse, não teria mandado tão poucos. E nem a dupla idiota.

— Eles estavam por conta própria?

— Aqueles dois? — Ele riu com desprezo. — Eles nunca teriam feito algo assim.

— Então quem foi? — E seja quem fosse, Eric não achou que eu precisava saber. — Tá, não quer contar, beleza; mas como a gente faz, eles sumiram com caixa.

— A caixa não é importante. Era só um isca.

Eu o sentia mordido de despeito, aquela vaidade ainda seria sua ruína, e só por isso engoli a pergunta " isca para o quê?" E havia tantas outras que eu me fazia como por que eu não tinha percebido antes que o vínculo não era unilateral? E de rabo de olho, observava seu perfil: o nariz reto, o queixo quadrado, os olhos azuis... Como não tinha percebido isso antes também?

— Por que está me olhando assim?

— Você é ... você — Sem ânimo, desisti de começar aquele assunto. — Nada. Só pensando.

— Pensando em mim?

— De certa forma.

Virei o rosto e ele não perguntou mais nada. E ele parou bruscamente o carro alguns quilômetros à frente e saiu correndo mata adentro e voltou, pouco tempo depois, com a mala de viagem também suja de lama. Eu não iria perguntar o que tinha ali dentro, mas eu apostaria que não era a maldita caixa.

Era quase meia noite quando chegamos no cassino. Eu queria correr para bem longe dali, correr para um lugar seguro, talvez no passado onde eu não tivesse ido ali com Taylor, talvez não ter vindo para essa cidade para começar, mas não tinha essa opção.

— Vai ficar tudo bem, minha doce Lara. — Eric tirou um fio de cabelo solto do meu rosto. Meu coração vacilou com esse gesto. Ele era realmente o homem dos meus sonhos. — Confia em mim?

— Não...

Minha voz saiu vacilante. E trocamos um olhar cheio de medo e ansiedade. Nós dois sabíamos que era uma mentira.

— Que merda, Lara!

Não fazia ideia do que assustava o vampiro; mas eu, eu trilhava um caminho perigoso ao começar a confiar nele.

Relutante peguei na mão que ele me estendeu e caminhamos em silêncio pelo porto até um galpão, parecia um lugar abandonado com todas as luzes apagadas. Entramos e Eric me guiou pelo escuro. Uma luz automática ascendeu em frente a uma porta de metal e ao lado, pelo interfone, uma voz mecânica questionou quem éramos e o que queríamos. E como quem recita palavras mágicas a porta se abriu após ele responder as perguntas.

O caminho até o escritório de Lorenza foi um pouco mais sofrido, meu corpo rejeitava o lugar, tal como foi no Fosso. Eric parecia sofrer até mais com os efeitos do encantamentos já que sangue saia pelos seus poros.

Ao entrarmos na sala, com móveis de madeiras rústicas, uma mulher um pouco mais alta que eu, cabelos curtos, lisos, pretos escorridos, pele meio verde acinzentada e olhos escuros, muito magra nos recebeu. Era meu primeiro contato do dia com alguém vivo e me surpreendi que mesmo fraca ainda conseguia captar a áurea de Lorenza. Ela também era uma emissora excelente, e não estava nem um pouco feliz com a gente ali.

— Está atrasado! Oh, então, esta é a humana? — Ela se levantou da cadeira, atrás da mesa, e veio até mim e fez uma reverência. — Achei que nunca teria o prazer de conhecê-la pessoalmente.

Em seguida, se sentou no sofá e nos convidou a sentar no da frente com a mão. Eric ficou de pé, então também fiquei.

— Disseram muitas coisas sobre você: que não é particularmente interessante... quebra fácil — ela continuou —, concordo que de aparência não é algo extraordinário... Claro tem seus encantos, mas deve ter algo mais que peitos bonitos. O Sr Northman não iria se arriscar por tão pouco.

Lorenza só foi maldosa, ela sabia quem eu era e sabia muito mais que aparentava. Senti seu despeito e malícia. Eric também não estava no seu melhor humor, meu corpo respondia a essa alteração ficando todo travado.

— Eu sou uma boa funcionária — improvisei só para amenizar o clima. — Eric preza muito pelo bar, e o stress de treinar alguém novo faria ele perder tempo, e tempo é dinheiro. Manter os funcionários que estão vivos e bem, creio, que é mais econômico.

Lorenza soltou uma sonora gargalhada.

— Claro que é... soube por aí, que o Sr Northman passou uns maus momentos com uma condição de saúde delicada. — Ele olhava do meu chefe para mim. — Foi alguma intoxicação por prata ou algum tipo de maldição? Encantamento? Oh, não precisa responder, Senhor Northam, não é da minha conta de todo modo. A verdade é que ainda estou muito estressada em como conseguiram burlar o sistema anti fraude... Aquelas malditas wiccans não conseguem fazer nada direito e cobraram caro por isso. Infelizmente, os humanos, por mais fibra que tenham, não resistem muito, acabam perecendo. Mas elas me deram muitas informações sobre meus inimigos. Foi lastimável que não conseguiram me falar como e quem me ferrou... E olha que Blank deu seu melhor. Parece que esse é um mistério que não vou conseguir desvendar. Mas não vou chorar pitangas por isso...

O que ela dizia nas entrelinhas era terrível. Certeza que as bruxas foram torturadas e mortas pelas mãos de Blanc a mando dela, e se eu pudesse faria com ela o mesmo que fiz com o capanga na noite anterior e seria até mais saboroso, ela sabia que tinha sido eu a causa do seu problema, só não sabia como.

— É realmente lamentável que você não tenha descoberto nada — Eric disse num tom frio. Sentia a paciência dele se esgotando, e o desejo pela batalha fervendo seu sangue. — Mas, acredito que você tenha problemas maiores para lidar nesse momento.

E sem cerimônia, o vampiro abriu o zíper da bolsa e jogou no chão o conteúdo. Eu gostaria que ele tivesse me avisado que faria aquilo, descobri que ele carregava as cabeças dos nossos atacantes enquanto elas rolavam no chão, de olhos opacos aberto não foi o ponto alto da noite.

Alguns Kappas, armados com cacete de prata e armas que eu apostaria serem de projéteis de madeiras, encheram o lugar.

— Melhor apontar essas armas para outra direção. Eu sugiro para seu amado irmão.

— O que está insinuando, vampiro?! — Com a cabeça Eric apontou para os guardas armados e Lorenza ordenou: — Abaixem as armas!

—Ele é o traidor que procurava.

— É uma acusação muito séria...

— Seu irmão mandou esses dois nos atacar ontem e roubar sua caixa. Veja você mesmo nas memórias deles.

Um dos guardas trouxe a cabeça de Lewis até Lorenza. Sem paciência, a kappa enfiou o dedo nas órbitas e puxou, como quem pesca um petisco, o globo ocular e devorou os olhos. Com o barulho da mastigação ruidosa, apertava com tanta força a mão de Eric que os nós dos meus dedos ficaram brancos.

— Ele também tirou algo meu... Creio que você não deve saber sobre os negócios dela envolvendo tráfico de V, certo?

Lorenza cuspiu o resto do olho.

— Óbvio que não — ela mentiu —, seria uma declaração de guerra entre nossas espécies.

— Então, já sabe o que fazer quando encontrá-lo. Nosso acordo pessoal chega ao fim aqui. 

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