29 - VINHO DE SUAS LÁGRIMAS
Poderíamos viver por mil anos
Mas se eu te magoasse
Faria um vinho da suas lágrimas
INXS- Never tear us apart
Sabendo que a viagem era relativamente longa e todo o tempo contava, às 18h50 estava no meu estacionamento esperando Eric. Ele chegou na hora combinada, a foi pessoalmente abrir o porta malas para eu colocar minha mochila.
— Só isso? — perguntou desconfiado, ajeitando minhas coisas perto da mala dele. — Tem certeza que não está esquecendo nada?
— Só. Duas calças jeans, 3 camisetas e dois vestidos, roupas íntimas e alguns cremes de cabelo. Ta tudo ai, meus documentos e necessaire to levando aqui. — Bati na bolsinha de mão sem muito ânimo.
— Você é bem mais prática que as outras humanas! — Revirei os olhos. — Isso foi um elogio, porque está com essa cara?
— Ai, Eric, não acho muito elogioso ficar me comparando não. — Caminhei em direção ao banco do carona. — Vamos?
— Eu sou melhor que a maioria dos vampiros, e não há nada de errado em dizer isso, pois é verdade. — Ele me alcançou entregando a chave. — Vamos dividir a direção: como ainda é cedo, você dirige; depois eu.
Alguns minutos mais tarde, quando estávamos entrando na rodovia OK-3 W, eu seguia dentro do limite permitido, prestando atenção nas placas e sinalizações, ele falou:
—Por que você se prende tanto? — Olhei para ele, sem entender. — Se solta! Curta o momento! Pise no acelerador!
— Você tá brincando, né? Não lembra do que aconteceu?
Ele deu ombros.
— Você é que não está curtindo a experiência de dirigir um carrão na companhia de alguém excepcional. Você é toda certinha.
— É... pense o que quiser, Eric.
— Você tem medo?
— É claro que eu tenho.
— Mas você não vai bater; e se bater, nos dois não vamos morrer, só ficar um pouco machucados. Confie em mim só dessa vez.
— Daí, seriam dois erros.
— É você quem perde.
Aquela parte do meu cérebro me encheu de coragem e uma vontade enorme de curtir o vento batendo no meu rosto. Talvez fosse o que eu precisava para me livrar daquele vazio. Olhei para o vampiro que parecia me incentivar com o olhar, voltei o olhar para a estrada e lentamente fui acelerando. Eric colocou as mãos na nuca e sorriu quando passei do limite permitido.
Quase três horas depois paramos em um posto para abastecer, aproveitei para ir ao banheiro e comprar algo para comer. Quando entrava na lojinha de conveniência, ouvir Eric resmungar para não comprar nada que pudesse sujar o seu carro. Quando voltei com dois sacos de batata chips e um copo grande refrigerante ele reclamou de novo:
— Não disse: " nada de farelo"?
— Não tinha muitas opções. — Ergui os ombros. As prioridades dele eram bem confusas, arrebentar o carro num acidente, ok; mas sujeira de comida, o fim do mundo. — Lá dentro tem True Blood, tem O- , você não quer que pegue para você?
— Estou bem. — Agucei meus olhos sobre ele que estava pálido igual um defunto; bem, ele era um todo modo.
— Tem certeza? Porque eu não...
— Não vou pular em você no meio da viagem para te sugar, estou alimentado.
— Achei que os vampiros estivessem sempre famintos.
— Quando recém nascidos, sim; com o tempo, aprendemos a controlar a sede. Como sou antigo, em condições normais, não preciso tanto de sangue, apenas alguns goles é o suficiente. Mas se você me pedir, eu beberia o seu. Nunca recuso sangue fresco por prazer.
— Seu eu pedir?! — Soltei um risinho seco. — Ainda bem que sonhar é de graça.
— Uma vez, você se ofereceu, quase implorou para que eu a tomasse, a fizesse minha...
— E você recusou. Disse que não precisava, que era pra eu guardar para mim ou dá para outro... Perdeu a vez, vampirão! E porque você recusou?
— Não era prazer, eram negócios. Eu não queria fazer negócios com você, mas agora...
— Mas agora?!
— Digamos que minhas perspectivas mudaram.
No momento que eu passei para o banco do carona e a adrenalina parecia acomodada no meu organismo, foi como se eu tivesse me esquecido e agora lembrava que estava oca por dentro. Voltar para o nada era sempre mais cruel do que cair nele pela primeira vez.
Virei meu rosto para a janela só para que o vampiro não percebesse minha cara de bunda e desse um chilique. Deus era a prova do quanto eu tentava não ser uma chata reclamona, mas como não ser se o mundo não dava uma folga para mim?
Foi no meio dessa briga contra a apatia que a mão fria do vampiro caiu suavemente sobre a minha, apertando devagar, como se me dissesse que estava ali por mim. Foi estranho e reconfortante. Foi assustador o quanto eu precisava daquilo. E o bolo da garganta foi se desfazendo enquanto lágrimas quentes rolavam. Eric parou no acostamento, e ficou segurando minha mão até me acalmar.
— Eu não sei lidar com seu choro.
— Jura? Nunca percebi isso.
— Em geral, eu não me importo, mas não gosto de te ver chorar. — Eu ri. — Falo sério, minha doce Lara. — Ele pescou minha última lágrima e colocou na boca. — Salgada! Talvez um dia, se for para mim, seja doce. Aí farei vinhos delas.
⚘
— Pensei em ir direito para o depósito e pegar logo a encomenda.
Saímos da rodovia interestadual e percorríamos as ruas da cidade de Oklahoma City quando Eric avisou. Olhei para o relógio: 2:00h da madrugada.
— Será que vai tá aberto? É um pouco tarde, né?
— Deveria! Existem aqueles que só podem fazer essas coisas à noite.
Apesar de cansada, emocionalmente abalada e um pouco envergonhada, concordei. Paramos numa rua bem iluminada, mas sem uma alma viva presente além de mim e o vampiro. Se bem que "vivo" não era um adjetivo aplicável para Eric.
O vampiro, antes de sair do carro, prendeu os cabelos, colocou um boné do Fangtasia e um óculos escuro. Essa era a ideia dele de discreto? O homem era enorme, e mesmo simples, com camiseta e jeans, não tinha como não chamar atenção.
Após falarmos com o vigia noturno, um vampiro por volta dos 40, um dos primeiros que eu tinha visto não tão jovem, um pouco barrigudo e com farto bigode, fomos direcionado a recepção, no final no pátio do enorme depósito. Caminhamos a céu aberto por entre algumas empilhadeiras e mini vans paradas e chegamos ao balcão de atendimento, onde tinha uma pequena fila. 15 minutos depois, o atendente, um rapaz magricela, com acne severa e cabelos pretos oleosos, nos atendeu com sorriso de orelha a orelha, sorriso direcionado ao Eric, e disse:
— Boa noite, senhor! No que posso ajudá-lo?
—Me dê esse pacote. — Eric entregou a ele um papel.
— Por favor! — completei.
— Claro, senhor...
— Leif Viklund— Eric respondeu, baixando o óculos e piscando para mim.
Aquele não me era um nome estranho e meu cérebro trabalhou muito para identificar a fonte daquela sensação sem resultado algum.
Eric continuou no papel, muito solícito em responder as perguntas do atendente, perguntas que eu tinha certeza que não faziam parte do atendimento, até porque, o que tinha a ver se ele era solteiro ou não para pegar uma caixa?
E foi assim que fiquei sabendo que viemos de Houston, que meu nome era Karen e eu era sua assistente. Ser a assistente dele não me irritou, mas Karen?! E eu lá tinha cara de Karen? E o atendente, por sua vez, não parava de olhar e flertar descaradamente com meu chefe.
— Estamos com pressa, se você não se importar...— Fiz jus ao nome ao perceber que o rapaz estava enrolando.
— Senhor Viklund, lamento informá-lo mas a caixa não está aqui.
— E onde está?— Eric perguntou.
—A caixa foi encaminhada para outro depósito, precisou passar por uma segunda vistoria, além da demora para buscar ela, reportaram a presença de material suspeito no setor que ela estava.
Certeza que meus olhos, que já eram grandes, ficaram enormes ao ouvir aquilo; e visto que era nítido meu desespero, o atendente logo explicou:
— Era só farinha. Mas depois do 11 de setembro e os ataques com Antraz, todo cuidado é pouco.
— E o que temos que fazer: esperamos ela voltar para cá ou buscamos ela lá? — perguntei.
— Em 48h ela volta para cá. E aí você pode vir buscar. — O atendente bateu os cílios super sugestivos para o Eric.
Aquela parte do meu cérebro zunia em irritação. Eric perdeu a postura boazinha, tirou os óculos encarando o funcionário nos olhos com os caninos à mostra dizendo:
— Vou te dar um conselho: não tente enganar um vampiro, é prejudicial à saúde. Agora, me entregue a caixa e você poderá respirar mais um dia dessa sua vida de merda!
— Senhor Viklund — o rapaz disse, assustado—, a caixa não está mesmo aqui. Veja!
Ele mostrou o monitor para mim e o vampiro. Muitas informações e códigos sem sentido para nós dois, mas havia uma observação no pé da página que parecia corroborar com a afirmação dele.
— Mas o senhor, pode pegá-la amanhã na agência diurna — o atendente continuou— ou em 24 horas aqui!
— Você quer que eu pegue a caixa de manhã... mande entregar aqui. E agora. — Eric ainda parecia muito irritado; apesar do tom baixo, suas presas estavam fora.
— Não é possível, Senhor.
E aquela sensação pegajosa de teia de aranhas passou por mim, indo em direção ao atendente.
— Quem mandou você me atrasar?
— Ninguém!
E a viscosidade aumentava a cada segundo, deixando até o ar pegajoso, de certa forma. Eric usava aquele poder de influência ao máximo sobre o atendente sem sucesso algum. Além de imune ao poder do vampiro, o atendente poderia estar mentindo. Eric também sabia, o que significava que aquele jovem corria perigo.
Temendo o pior, segurei o pulso do atendente e forcei minha habilidade sobre ele. Ele puxou o braço contrariado, mas era tarde: com uma aura muito fácil de ler, eu tive muita informação. Informação demais, diga-se de passagem.
Eu soube que ele não era perigoso, só alguém com muito tesão no Eric e que acreditava que teria chances de realizar uma antiga fantasia quando estivesse melhor do problema que tratava.
— Éri.. Leif, ele não está mentindo. Foi só um plano, uma ideia infeliz de fazer você voltar quando ele estivesse pronto... para você, sabe... Grrr... caçar ele por aí e grrr. — Fiz gestos de um ataque de tigre sensual só para quebrar aquele clima aterrorizante. Eric ergueu a sobrancelha, recolhendo os caninos em seguida. Olhei para o atendente e disse: — Olha, na próxima, é melhor você ser sincero... ser mais direto. Ou não tente nada... sua vida vale mais que uma fantasia.
Ainda sob o efeito do medo, o rapaz desfez a solicitação do retorno da caixa para aquele depósito e nos deu um guia, com endereço da agência.
— A culpa é sua — resmunguei entrando no carro. — Se não tivesse dado trela, ele não pensaria que você estava a fim. — Ele me olhou contrariado, sentando ao volante. — E Karen? Eu tenho cara de Karen?
— Fazia parte do personagem, não tenho culpa se ele não tem noção da própria mediocridade e se acha bom o suficiente para mim. E Karen é um ótimo nome.
Olhei consternada para o vampiro, não pelo nome, mas pela arrogância. Se bem que Eric tinha um ponto, ao menos sobre a aparência. E por isso eu sabia que ele não estava interessado em mim como gostava de se fazer parecer. De certo eu tinha beleza, mas não era tanto, e nem do tipo, para chamar atenção dele.
— Nunca mais faça isso! — Eric disse refazendo meu gesto de tigre. — Foi horrível! — E gargalhou alto. — Achei que você estive travando de novo.
— Você é tão engraçado, Eric.
— Você também... — ele disse, mas seu tom parecia bem menos irônico que o meu. — Sua companhia realmente é prazerosa, Lara.
Ao chegarmos no hotel, Eric me segurou antes de falar com recepcionista.
— Não faça mais aquilo! — E com olhar significativo que me deu, soube que falava da minha sensibilidade. — Você não quer que os vampiros comecem a ir atrás de você, não é? — Neguei. — foi o que pensei.
Apenas ponderei a sugestão sem me dar conta do que aquilo significava.
A recepcionista que nos atendeu, assim como muitas mulheres e homens que transitavam no saguão, olhou demoradamente para Eric. Quando o vampiro pediu os dois quartos, pude sentir o alívio e o desdém da funcionária, expressado naquele sorriso de quem diz: "é claro" quando ele me chamou de assistente. Só de birra, derrubei o porta trecos, ela precisou se agachar para pegar as coisas e eu e surrupiei a caneta bonita que ela usava e coloquei no meu bolso. Ela que aprendesse a prestar atenção no serviço.
— Qual o seu andar? — Rodava a chave nas mãos, encarando a porta do elevador.
— 4º. Estou no 404. E você?
— 304.
— Em algumas culturas quatro significa morte, sabia? — Neguei. — Tem a ver com a pronúncia. Não é curioso que seja o andar de vampiros ?
— Todo o andar?
Ele assentiu.
— Mas é só coincidência. Nesse caso, é só o último andar, e depois do incidente naquele hotel... Deve ser mais prático assim.
Eric falava do caso que repercutiu por semanas na mídia. Um funcionário de um hotel muito chique abriu a janela de um dos quartos para limpar sem saber que lá dentro tinha um vampiro. Infelizmente para o hóspede era meio dia, e não sobrou nada dele para contar a história. A sociedade vampírica se mobilizou, houve boicote e algumas mortes e sumiços suspeitos. Depois disso, os hotéis que hospedavam os vampiros passaram a usar dois tipos de bloqueadores contra o sol. Tanto do lado de dentro quanto do lado de fora.
O elevador abriu, e quando entramos havia um banner pegando toda a parede lateral. Era uma paisagem paradisíaca: uma praia de areias branquinhas, um sol gigante pintando tudo em tons dourados, inclusive modelos, e o convite em letras garrafais para visitar as orlas da costa oeste. Eric parecia mesmerizado pela imagem.
— Sente falta?
Apontei com cabeça o anúncio.
— Às vezes. Eu prefiro a noite, sempre preferi, mas às vezes sinto falta.
— Me dá sua mão!
Após alguns segundos, ele me entregou. Sorri. Do bolso tirei aquela caneta, que jogaria fora assim que saísse, e desenhei na palma dele um círculo com tracinhos em volta.
— O que é isso? — A sobrancelha erguida deixava claro a desconfiança.
— O sol! Estou te dando o sol ! Agora guarde ele pra você!
Tomada por um imenso carinho, talvez pelo apoio que demonstrou mais cedo no carro, beijei sua mão. Assim que a porta abriu, saí do elevador com mais agilidade que precisava e fui para o quarto, me perguntando o que diabos eu tinha acabado de fazer.
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