22- VENDA AOS MOLDES ANTIGOS
— Fangtasia, onde a vida começa à noite, funcionário humano falando, no que posso ajudá-lo? — Atendi o telefone do bar, uma vez que Pam não estava, e precisei pedir para que a pessoa do outro lado da linha repetisse por causa do barulho. —Uma festa de casamento? Aqui?
Levei um tempo para assimilar o pedido um tanto peculiar mas, como todo bar que se preze, esse também era aberto a eventos como despedida de solteiro, festas de aniversário, então porque não casamentos ?
— Claro, deixa eu conferir nossa disponibilidade.
Abri a agenda de eventos, que ficava debaixo do balcão, e agradeci por Pam ser muito organizada em relação a gerência do bar quando senti alguém muito próximo.
— Me dê o telefone — Pam disse me fazendo segurar o ar e entregando o fone para ela. — Aqui quem fala é um funcionário vampiro, seu casamento será para quando e para quantas pessoas? — e olhou para mim. — Eric quer vê-la.
Segui em direção ao escritório me questionando se um dia eu me acostumaria com essas aparições do nada, já aquela coisa no pescoço funcionava só uma vez por dia para cada vampiro, e com a audição ultra aguçada deles. Bati na porta e entrei. Eric também estava ao telefone, e sem tirá-lo do ouvido apontou a cadeira para que eu sentasse e girou a cadeira, me dando as costas.
Aproveitei para descansar, já que desde que saí da casa de Taylor, um pouco depois do café da manhã, não parei um minuto: faxinei minha casa, liguei para o abrigo e deixei recado com a irmã Mary que ficou feliz de falar comigo e prometeu dar meu numero para irmã Tereza, mandei mensagem para Miguel, faxinei o bar junto a Ginger conforme prometi pelo atraso da semana retrasada, tudo para não pensar no que aconteceu no cassino, nas mentiras que contava para Taylor e no sexo estranho, bom, mas estranho que a gente fez. Era curioso que mesmo fazendo tudo isso meu corpo não estava de fato cansado, sentia que poderia competir duas maratonas e um triatlo.
Eric parecia animado também, seja quem fosse do outro lado da linha, parecia alguém especial, já que o vampiro falava num tom bastante carinhoso, quase como se flertasse. Ele riu e jogou os cabelos que caiam soltos para o lado, numa vibe roqueiro do anos 90, super malvado e bonito.
Curiosa, tentei prestar atenção no que ele falava, mas eu não conhecia a língua. Olhei para a estante de livros e pela primeira vez, desde que entrei naquela sala, me atentei aos títulos: Astronomia e astrofísica, psicologia, russo, alemão, grego, latim e filosofia, além dos outros que eu não consegui ler.
Ele se virou e bem na hora que eu olhava para as costas dele, impressionada com o tanto de conhecimento que poderia ter naquele bela cabeça morta, e piscou.
— Até o Halloween — disse em inglês e colocou o fone no gancho.
Ficamos nos encarando por alguns instantes, longos e estranhos. Eric sabia ser bastante invasivo apenas com o olhar. Sem graça pisquei e pigarrei. Como ele não desviava, eu o fiz baixando a cabeça. Mas ainda sentia seus olhos sobre mim. Ele se esticou sobre a mesa e segurou meu rosto, forçando a levantar, a olhá-lo nos olhos.
— Dina ögon... ta inte bort dem från mig, jag gillar dem, mycket. — Voltou ao lugar— Jag borde ha känt igen dem först.*
— O quê? — perguntei sem entender uma única palavra do que foi falado.
— Deixa pra lá. — Ele abriu a gaveta, tirou um envelope e me deu— foi por isso que eu te chamei aqui.
Abri o envelope, eram algumas notas de dólares, fiquei feliz, achava que era o dinheiro que ganhei no cassino.
— É o meu dinheiro? Como você conseguiu? Achei que tinha dado tudo para aquele seboso.
— Aquele dinheiro não era seu, Lara, você não ganhou ele de forma justa.
— Ah, claro, porque viciar os jogos é muito justo, né?
— Eu não faço as regras, só as cumpro.
Fiz uma careta .
— E que dinheiro é esse?
— É o dinheiro da indenização, George pagou o que devia: são 2.500 dólares.
— Ah, bem que vi que o envelope era fininho. — Encarei o papel branco, ele não era tão fino, mas eu estava decepcionada. — Minha vida vale tão pouco assim?
— A indenização não é sobre a sua vida, e sim sobre a injúria que sofri. Se você quer saber, a ofensa custou 5 mil dólares a George.
— Hum, nada mal... espera, aí, você tá me dizendo que esse dinheiro não foi me dado porque ele me machucou e sim porque ele te ofendeu? Não vai me dizer também que você ficou com metade da grana, né?
— É minha.
— Cara, não faz sentido, foi meu pulso, porque você ganha metade sendo que você não fez nada.
— Cara?! Eu não fiz nada?! Você perdeu a noção do perigo, Lara?
— Não, Eric, é só que não é justo, sabe? Eu me machuco e você ganha?
— Se você não quiser, é só devolver.
— Não, é meu, ué.
— Na verdade, é meu. Achei que você ficaria feliz com o dinheiro, mas você parece chateada.
Bufei alto. Mesmo que ficasse rouca explicando o quanto aquilo era injusto, Eric não cederia pois era nítido o quanto aquilo parecia certo para ele. Regras vampíricas malditas, apostaria, se não estivesse com medo de fazer isso de novo, que ele nem seria obrigado a me dar nada, deu porque quis fazer bonito.
— Obrigada.
— Dinheiro é tão importante assim para você?
— Eu trabalho pra você, Eric. É óbvio que dinheiro é importante. — ele aguçou os olhos sobre mim, percebi a bola fora que dei— Trabalhar para você não é degradante, não foi isso que eu quis dizer, tá. É só que o salário de uma garçonete não é lá essas coisas. Então, sim, dinheiro é importante. Pra você não é também?
— Óbvio. Eu só não esperava que você fosse assim.
—Por que não seria? Você acha que quero ser garçonete a vida toda? Eu tenho sonhos, planos, pra isso preciso de grana. Só de pensar que ontem eu tinha 16 mil na mão... não pense que sou ingrata. Esse dinheiro é bom, mesmo que o justo fosse eu receber, ao menos, 75 por cento, mas é só que não é o mesmo que ter 16 mil.
— Quais são seus sonhos, planos?
— Além do carro, quero voltar a estudar — ele balançou a cabeça confirmado, parecia interessado
— acho que vou fazer um técnico, talvez eu vire socorrista. Mas, os cursos, vi mais cedo, os que dão pra eu pagar são noturnos. Teria que sair do trabalho. A não ser que você me dê um aumento...
Eric não disse nada por alguns instantes me deixando apreensiva, até que riu.
— Eu até gosto de ter você por perto, mas aumentar seu salário seria um problema, há outras funcionárias com mais tempo de casa, e Pam seria capaz de arrancar meu fígado... vamos fazer um novo acordo: eu te ajudo a pagar esse curso em troca daquele seu colar.
— Por que você está tão interessado nele?
— É uma pedra bonita, me lembra a época em que eu desbrava os mares, guiado por sunstones.** Enfim, gosto de colecionar pedras bonitas, e seria uma venda aos moldes antigos. Você me venderia?
Dessa vez foi eu quem aguçou os olhos sobre ele, conhecia conversa fiada de longe, e o que Eric falava era descaradamente uma.
— Se você quer tanto, te vendo por 100 mil dólares. Afinal, ela é minha pedra da sorte.
Ele balançou a cabeça, sorrindo
— Eu gosto de ver seu lado ambicioso. Mas cuidado para não dar um passo maior que essas perninhas curtas, você pode se esborrachar no chão.
— Como ontem?
— É, como ontem. Mas, não foi tão ruim, foi?
Eu estava falando do que aconteceu no cassino, mas Eric pareceu falar de algo mais. Respirei fundo, e fingi não entender a insinuação.
— O que eram aqueles caras, eles não eram humanos.
— Eram Kappas. — Ergui para ele as sobrancelhas; ele sorriu, virou a cadeira e pegou um livro com letras estranhas na capa — aqui, isso vai te ajudar.
— Como isso vai me ajudar se eu não entendo o que está escrito?
— Não entende agora, ler com calma, você vai ver que consegue, é grego comum.
— Por que você não me fala? A gente já tá aqui mesmo.
— Por que que graça teria? Você não queria estudar, então, vai me agradecer por isso no futuro.
Já em casa, depois de conversar com Taylor por telefone, e ele me assegurar que foi na clínica do amigo e que não tinha nada quebrado, e que voltaria para gente terminar o que o telefonema do tio interrompeu. Depois de mandar mais uma mensagem para Miguel, me arrependendo por ter feito tão tarde, eu folheava aquele livro estupido, do qual eu só conseguia entender as figuras. Eu tentei ler, mas tudo o que consegui foi uma dor de cabeça e dormir de mal jeito na poltrona.
Acordei às 9 da manhã com o telefone tocando. Era Miguel. Conversamos um pouco, falei sobre Taylor e nosso possível relacionamento, ele falou das fofocas de trabalho e combinamos de nos encontrar na feira de automóveis usados na rodovia Greenworld, por volta do início da tarde, onde, enfim, eu compraria o meu carro. Com ajuda dele, comprei uma Subaru 85 azul celeste em ótimo estado e paramos para almoçar numa lanchonete ali por perto.
— Achei que estivesse chateado comigo, — disse tomando milkshake de morango— desde da nossa ida no Bar, em Monroe, que você parece meio distante, fiz alguma coisa de errado?
— Não, Lara, não tem nada a ver com você, foi eu, eu estava envergonhado com a bebedeira. — Não só fiz cara de surpresa como deixei escapar um um "ah" — E também fiquei muito ocupado com o emprego novo. E tem meu pai.
— Claro, eu entendo. — respirei aliviada por não ser algo que fiz— Sobre a sua bebedeira, se isso te faz se sentir melhor, eu já vi piores, acredite, eu trabalho num bar— e ele riu— sério, eu nem pensei nisso. E como anda as coisas com seu pai?
— Ah, gata, nós estamos indo bem. Ele parece mais aberto a quem eu sou, até me convidou para jantar com ele, de novo, esse fim de semana. Ele quer conhecer o Collins.
— Isso é bom, não?
— É complicado.
Ele deixou o copo de café na mesa e eu toquei em sua mão, para confortá-lo, foi como se uma corrente elétrica passasse pelos meus dedos e vi sua aura surgir turva, forte e formas de animais emergirem, como ondas, em volta dele. Miguel tentou puxar a mão, acho que também sentiu aquela coisa, mas a segurei com força, olhando para seus olhos.
— O que você é? — Com a cabeça, ele apontou para a mão que eu prendia, e eu a soltei.— Desculpa, mas o que você é?
— Eu que te pergunto, Lara, o que você é?
Ficamos em silêncio, e num salto de fé, assim como ele fez comigo ao compartilhar sua vida, eu revelei parte da minha.
— Então, você é uma espécie de médium/ sensitiva desmemoriada?
— Acho que sim, vim pra cá porque lembrava de Eric, mas ele não me diz nada além do que eu te contei. Acidente de carro, pais mortos, e só.
Eu não achei sensato falar nada de Nabal, mesmo Eric sendo uma víbora levei em consideração o conselho de não me declarar nada dele, vai que Miguel conhecesse ou fosse algum sobrenatural buscando vingança. Porque humano eu sabia que ele não era.
Ele ficou me encarando, eu fiquei tentada a tocar nele de novo e captar suas emoções já que visualmente as cores eram muito opacas e ficavam todas parecidas. Talvez fosse um bom sinal, já que a primeira vez que vi a aura dele era vermelha fosca ele estava brigando com Collins.
— Sua vez,— disse— o que você é?
—Pela sua cara, acho que você sabe que os vampiros não são as únicas coisas estranhas por aí, certo? — confirmei com a cabeça. — sou um metamorfo.
— Um meta.. o quê?
— Eu posso assumir a forma de qualquer animal, faz parte do que nossa comunidade chama de " dupla natureza", acontece sempre em noites de lua cheia, mas não só, só é difícil e demanda muito esforço fazer isso numa noite comum.
— Ah, isso explica tantos animais em sua aura.
— Foi isso que você viu quando tocou em mim?
— É. Essa coisa— erguei e mexi as mãos— eu não tenho muito controle, mas eu tô tentando, não gosto de ficar vendo, sentido as emoções das pessoas, os segredos delas... Me desculpa.
—É, não era assim que eu queria sair desse armário, mas, de certa forma, eu fiquei aliviado. É cansativo me esconder.
— É. — disse, sabendo exatamente como é viver se escondendo, fingindo ou mentindo — É por isso que as coisas são complicadas com seu pai?
— Meu pai sabe. Ele também é um dupla natureza. O problema é o Collins. Você viu como ele falou dos vampiros? Eu gosto dele, Lara, mas não acho que ele seja capaz de lidar com essa minha parte.
— Caramba, seu pai também é. Desculpa, é muita informação. Mas, eu entendo o medo sobre o Collins, sinto o mesmo com o Taylor.
— Não acho que você vai ter problemas com ele, se você quer saber: acho que ele vai lidar bem com isso.
— Acha mesmo?
— Acho, gata. Já o Collins... eu sinto, eu ...
—Se quiser, eu posso tocar nele e tentar descobrir.
—Faria isso por mim? — confirmei— Obrigado. Isso foi muito legal da sua parte, mas não. Você acabou de dizer que se sente mal e eu também me sentiria. E também, eu não poderia contar isso para ele, porque não é só sobre mim. Meu pai, nossa família, poderia ficar exposta.
— Nossa, que merda.
— É— e riu — uma merda enorme.
— Você me disse que tinha fugido de casa quando novo, foi por isso?
— Foi... a verdade é que eu não fugi, disse isso porque faz parecer que tive uma escolha, mas não tive, minha mãe, como a maioria dos dupla natureza, não foi acolhida quando se transformou na adolescência. Como se adolescência já não fosse ruim, alguns têm que lidar com pelos crescendo em lugares realmente estranhos e vontade de uivar pra lua. Bem, ela acabou engravidando de um dos inúmeros caras com quem ela dormiu pra ter um teto sobre a cabeça. Um metamorfo também. Quando eu dei indícios que era como ela, diferente dos meus irmãos, ela ficou com medo do marido número 5 ou 7, não me lembro mais, descobri e me mandou embora. Eu não a julgo por ter dormido com metade da cidade, mas eu não consigo perdoá-la por ter mandado embora. Dorothy e Ronald, meus pais adotivos, são lobis. É difícil para os lobis, sabe, ter filhos.
Minha cabeça estava em pane. Nabal tinha feito inimizades com uns lobis, eu torcia para não ser com estes. Fiquei tensa imaginando Miguel me atacando a qualquer momento.
— Abortos são comuns, — continuou após um gole no café— Eles queriam muito um filho dupla natureza, quando me acharam, acho que foi o jeito deles de terem filho, eu de ter país. Eles me acolheram, me apresentaram a matilha, e fui aceito. Sou parte da família.
— Seus pais, os lobis,— sussurrei esta última parte — eles tiveram outros filhos antes de você?
— Não, Dorothy me disse que nunca chegou até o fim numa gestação...
— Eu não sei o que dizer, Miguel.
— Não tem o que dizer ... é a vida.
Apesar do assunto complicado, Miguel estava bem, percebi quando ele, por conta própria, tocou minha mão e sorriu. Ficamos um momento assim até que eu tirei a mão. Parecia estranho, injusto, dado a sinceridade dele comigo.
— Hey— ele disse pegando na minha mão de novo— você não disse que estava com dificuldade em trabalhar isso? pode treinar comigo. — Olhei incrédula— Você não vai me fazer ciscar como um galinha ou algo do tipo, ne? Seria muito humilhante se a matilha soubesse disso.
E passamos um bom tempo comigo segurando a mão dele, enquanto eu tentava adivinhar no que ele estava pensando só pelas emoções que emitia, até que a coisa parou de funcionar.
— É assim, vem e vai quando quer. Eu tenho lido bastante sobre esse assunto, mas não está adiantando muito. Sempre que acontece eu fico bem nervosa, sabe?
— Bom, sempre que a gente se ver, eu deixo você me fazer de cobaia, ok?
— Ok. Você podia ir no meu trabalho dia desses... aliás, é por isso, por você ser o que é, que você nunca aceitou meu convite para ir lá no bar? — ele balançou a cabeça— não me diga que os "duplas natureza" e os vampiros não se dão bem?
— Vampiros não se dão bem nem com eles mesmo, Lara. Estão sempre prontos para conspirar e tramar uns contra os outros. É muito difícil lidar com eles e a arrogância deles.
— Não me diga... você sabe o que são Kappas?
— Gata, onde você andou se metendo? — Ergui os ombros, sorrindo de lábios fechados— Ok, se você tá aqui e inteira é porque não irritou nenhum deles. Eles são tão perigosos e odientos quanto os vampiros. Criaturas que sugam sangue e vivem em pântanos. Vampiros e kappa não se dão. Kappas acham que são superiores aos vampiros pois nasceram assim, já os vampiros se acham superiores porque são... você sabe. Vampiro. Enfim, como disse, os vampiros não se dão bem com ninguém. Mas eu ficaria muito longe das kappas, diferente dos vampiros eles não querem se inserir na sociedade, odiaram mais os vampiros por se expor.
* Seus olhos... não os tire de mim, eu gosto muito deles. Deveria tê-los reconhecido primeiro.
**Pedra do sol. Algumas fontes garantem que vikings usavam para navegar em tempo nublado.
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