1-GAROTA MISTERIOSA
Assombrado por sua imagem
Está é a escuridão nos seus olhos que me escraviza
Ela é uma garota misteriosa
Roy Orbison— She's a Mystery To Me
Louisiana, 2009
Sabe aquele momento em que uma voz na sua cabeça grita: "Não vá, garota; é cilada" e, ainda assim, você segue em frente como um trem desgovernado, porque não consegue parar, e voltar não é uma opção? Ainda me pergunto se deveria ter escutado aquela voz.
Era meu aniversário de 21 anos, e eu tinha, nos últimos anos, contado os dias para essa data, ignorado todos os apelos para não mexer nos ossos do armário. Estava sozinha, parada numa rua desconhecida no subúrbio de Shreveport, sentindo a brisa morna de uma típica noite do início de agosto enquanto encarava o letreiro escrito Fangtasia em vermelho néon.
Puxei o ar com tudo. Uma. Duas. Até perder a conta das vezes. Olhei ao redor, apesar da sensação recorrente, ninguém estava me observando. Voltei os olhos para o letreiro e pela força do hábito toquei em meu peito, naquele lugar que sempre doía quando eu sonhava com a mulher em chamas, o que era constante e aterrorizador, e segurei com força meu pingente da sorte.
Eu o chamava assim, porque além do formato estranho, em forma de gota retorcida, a pedra tinha o tom de um dourado avermelhado pálido, que a depender da luz, brilhava como se fosse feita de um líquido viçoso. Eu podia jurar que era um misto de sangue e do próprio sol. E para minha sorte, meu nome e data de nascimento foram gravados na prata da parte de trás: Lara 08\08\88. Era a única prova de quem eu era. Por isso, segurá-lo me acalmava. Mas não naquele momento.
Meus olhos, ainda marcados pelo vermelho do letreiro, caíram para a fachada de um cinza aço e portas vermelhas. A escolha da cor era tão óbvia que eu poderia até achar graça, se não fosse o fato que não tinha nada engraçado por trás daquilo. E ver a extensa fila na porta do estabelecimento não melhorou em nada meu humor. Não era todo dia que eu entrava num bar, ainda mais um bar de vampiros.
Sim, vampiros...
Mas, a questão era que, por mais que houvesse aquela voz, havia também uma sensação, uma atração quase que irresistível me levando ao perigo; digo, ao vampiro. Eric Northman, loiro, alto, forte e rosto atraente, era o vampiro em questão. E não, eu não era tão superficial para me arriscar apenas por um rosto bonito. Foram os olhos dele que me levaram até ali.
Por muito tempo, a única memória que tive era desse ser fantasmagórico branco pairando sobre a minha cabeça com olhos azuis gelados brilhantes carregados de desprezo, me falando por entre os cabelos loiros:
—Nosso encontro foi breve, sangrento.... me diverti muito... estamos quites agora.
Não fazia ideia se suas palavras eram um aviso, um agradecimento, ou ambos. Com o tempo, outras imagens, como ver um vampiro ser subjugado e sua pele cor de alabastro ser chamuscada pelo metal que o acorrentava, compuseram um retalho significativo da minha memória. E quando me deparei com Eric Northman numa revista, tive certeza que era dele os olhos que assombravam minhas lembranças
E que eu precisava dele para entender como uma adolescente de dezessete foi encontrada toda arrebentada aos arredores do Hospital de Sainte Croix des Âmes**, uma cidadezinha no interior da Louisiana.
Os médicos e os policiais que cuidaram do meu caso, garantiram que a surra foi dada por humanos; já a marca no pescoço, por haver poucos animais com mordidas como aquela na região, era provável que eu também tivesse sido atacada por um vampiro.
Imagina a festona que foi aquela noite...
Balancei a cabeça para afastar as dúvidas e tomei coragem, parei atrás de um casal de camiseta preta e jeans escuro. Eles usavam o uniforme oficial dos turistas. Ao menos, foi o que informaram no hotel onde estava hospedada. E havia muitos deles ali, dos turistas.
Contudo, a maioria dos presentes eram vampirófilos: pessoas patéticas que corriam para cima e para baixo buscando uma migalha de atenção dos vampiros, como fãs adolescentes de boy bands idiotas. E eles usavam trajes a caráter: as mulheres mesclavam roupas parecidas com as da Mortícia Addams ou decotados dignos de fazer inveja a Elvira, a Rainha das Trevas. Os homens algo inspirado em Drácula ou algum pirata sexy e obscuro.
Eu era uma variação pobre daquilo.
Usava jeans e uma blusa preta de veludo com manga curta e gola alta, perfeita para deixar meu pingente dentro dela. Além do medo de perder a joia, achei que seria de bom tom manter o metal escondido, pois tinha a leve impressão que os vampiros não reagiam bem a prata. Deixei os cabelos soltos, jogados de lado, os cachinhos pretos, mais crespos que cacheados, caindo até um pouco abaixo dos ombros. E para variar, fiz uma maquiagem caprichada com batom vermelho e olhos delineados.
Estava me sentindo adorável, apesar do olhar de desprezo do recepcionista do hotel, um vampirófilo que me olhou como se fosse a bosta do cavalo do bandido. Mas ao chegar ali e me comparar com os tarados por sanguessugas, comecei a achar que ele tivesse razão. Eu não estava atraente o suficiente para chamar atenção do dono do Bar.
Para falar com o vampiro dono do Bar.
Ao menos, a fila andou rápido e logo fui abordada pela segurança, uma mulher de altura mediana, 1.65m no máximo; e, ainda assim, mais alta que os meus míseros 1.48m. Loira, pele como uma porcelana branca, olhos azuis pálidos, de espartilho preto e coque elaborado; ela deixou a pele da minha nuca formigando.
— Bem-vinda ao Fangtasia, onde a vida começa à noite. — Não havia um pingo de animação na voz aveludada dela. — Identidade, por favor.
Entreguei junto a nota de 50 dólares. Era uma das minhas últimas.
— Nome peculiar, Lara J. Doe. — Ela me olhou de cima a baixo e devolveu a identidade e 30 dólares de troco. — É uma Jane Doe? Essas são as melhores; se sumir, ninguém se importa ... Aniversariantes têm direito a uma bebida grátis. Fale com o Barman. Divirta-se. Próximo.
Foi a recepção mais rápida e assustadora que recebi nos últimos tempos. Talvez não a mais rápida; mas, certamente, a mais assustadora. E ela ter acertado, sem querer, que eu era uma "Maria Ninguém'', e insinuar, seja lá o que aquilo significasse, fez a voz da minha cabeça ficar presa em um looping "ainda dá tempo, cai fora". Mas eu a ignorei.
Alguns podem chamar isso de tendência autodestrutiva, burrice. Eu chamo de curiosidade vital, quase como a necessidade de ar, em saber quem eu era além dos adjetivos: órfã, sobrevivente e amnésica. De não me olhar no espelho e encarar uma garota misteriosa até para mim.
Ao entrar no bar, meus olhos curiosos percorreram o ambiente que mesclava tons de cinza e vermelho; vermelho que era acentuado na pista de dança pela cor das lâmpadas avermelhadas. Soltei um risinho anasalado. Seja lá quem tivesse escolhido a decoração, parecia que estava querendo tirar sarro da cara das pessoas com essa escolha, e ainda me acostumando ao lugar, meus olhos fixaram nas placas que, dentre outras coisas, alertavam que era proibido morder ali dentro.
"Sua presença é apreciada. Continue por risco próprio"
Engoli em seco.
Sentei num banco de frente para o bar, onde uma grande variedade de sangues sintéticos eram expostos. Fazia tempo, uns 5 anos, que os japoneses inventaram o Tru: blood. E o que seria apenas uma evolução médica resultou numa mudança social inimaginável, quando os vampiros vieram a público dizendo que não precisávamos mais temê-los, o sangue sintético supria suas necessidades nutritivas, e que poderíamos conviver harmonicamente.
E desde que saíram de vez dos caixões, os vampiros estavam em todas as partes: televisão, jornais, revistas. Em Baton Rouge, tinha uma equipe médica composta só por eles. No estado da Califórnia e na Geórgia, eles votavam. E em muitas cidades aqui do sul, eles tinham sido aderidos à força policial, sendo eles os responsáveis por prender muitos da própria espécie.
E até o momento, eu nunca estive tão perto de uma garrafa daquelas. Sante Croix des Âmes não tinha vampiros residentes. Não tinha muita diversidade no geral. Só caipiras bastante religiosos apaixonados por seu Deus e por suas armas.
Não resisti, passei a mão sobre o rótulo de uma das garrafas.
— Não são para consumo humano — uma voz firme me repreendeu, e senti na nuca a mesma sensação de formigamento que senti um pouco antes.
— Ah, eu não iria pegar... só, só estava curiosa.
Olhei para baixo alisando meu pescoço.
— Dizem que a curiosidade matou o gato. — Mordi a língua para não responder "pelo menos morreu sabendo." enquanto a voz falava:— E ela é um dos motivos que traz muita gente aqui. Quer saber o outro?
Só então ergui meu olhos e vi o barman: pele marrom avermelhada pálida, com cabelos pretos, longos e lisos, e lábios finos. A blusa aberta deixando os músculos expostos. Definitivamente ele era atraente, mas eu não estava no humor para isso.
— Claro.
Ele retribuiu meu comentário com um sorrisinho condescendente.
— O desejo de morrer.
Engoli em seco mais uma vez.
— Ah, n-não é o meu caso.
— Não?! — ele sorriu mais uma vez. — Então, o que vai querer?
— Me falaram que aniversariantes têm direito a uma bebida grátis. Vou querer algo que seja doce, mas não muito forte, só o suficiente pra me dar coragem. Você tem algo assim?
Sem pensar muito, ele colocou um copo na minha frente e encheu com um líquido vermelho pálido. Pensei em perguntar o que era, mas eu só peguei o copo e virei a bebida. Ela desceu amarga e muito forte. Tive que me segurar para não fazer careta.
— Mais uma? — ele perguntou.
E aquela coisa no pescoço ficou mais forte. Talvez fosse a bebida fazendo efeito, mas tinha um brilho estranho na pele dele, era sutil, mas estava lá. E de alguma forma eu soube, ele era um vampiro.
— Mais.
Com o segundo copo de drink em mãos, sem saber o que fazer, uma fisgada da nuca até os pés, me puxou para a fonte que vinha do fundo do bar. Para o mesmo trono de costas altas, coberto por uma manta de pele e braços largos que há menos de um segundo eu havia olhado, e estava vazio.
E Eric Northman ocupou.
Levantei com a adrenalina percorrendo o corpo. Ergui a cabeça. Ajeitei as roupas repassando todo o discurso que eu havia treinado e achava irresistível:
"Olá, senhor Eric Northman, meu nome é Lara. Talvez o senhor não se lembre de mim, mas eu, às vezes, lembro do senhor. Eu sei que o senhor é ocupado, mas pense na publicidade positiva que será para a sua comunidade ajudar uma jovem desmemoriada que saiu no jornal por conta de agressões humanas e ataques vampíricos?"
Mal dei alguns passos quando notei uma mulher de franja reta e mechas vermelhas, vestida com um corset preto deixando os volumosos seios caramelos saltando do decote, se jogando aos pés dele. E com o mesmo desprezo que ele havia me olhado nas minhas lembranças, olhou para vampirófila ajoelhada à sua frente. E quando ela beijou as botas, achei que ele a chutaria longe.
E a pouca coragem que eu tinha se esvaiu.
Olhei para os lados, me assegurando que ninguém notou o que eu pretendia fazer, mas ninguém prestou atenção em mim. Todos olhavam para aquela cena. Diferente dos vampirófilos que pareciam admirar uma cena idílica, os turistas olhavam tão chocados quanto eu.
Se para falar com ele eu precisava fazer isso, eu não tinha bebido o suficiente. Voltei para o banco, terminei a bebida em uma só golada e pedi uma cerveja. Fixei o olhar no fundo do bar, como se com isso fosse possível materializá-lo na minha frente. Só notei que o barman e a bebida estavam próximos quando ele comentou:
— Eric não está interessado em novas companhias. Eu estou. Seria um prazer a sua.
Os caninos dele estavam fora, notei; e logo desviei o olhar, respondendo com voz mais doce e da forma mais polida que eu podia, encarando meus pés:
— Agradeço, muito, muito, mesmo o convite. Mas é que eu queria mesmo falar com o senhor Northman. Obrigada.
Eu não sabia se era educado ou não encarar; e além da vergonha causada pelo comentário, parecia que algo pegajoso, como teias de aranhas, estivesse me envolvendo. E no meu âmago soube que se olhasse nos olhos dele, sentiria na pele o mesmo que os insetos desavisados sentiam ao cair nas armadilhas aracnídeas.
E fiquei assim até o barman sair para atender outra pessoa. Voltei toda a minha atenção para o trono, e numa nova onda de adrenalina, me levantei e fui até o vampiro.
Eric estava sentado em uma postura displicente, com as costas apoiadas no encosto, as longas pernas abertas e as duas mãos espalmadas no braço da cadeira. Ele vestia uma jaqueta, calça jeans e botas. Todas as peças pretas contrastando com a pele branca e os olhos azuis. E os cabelos loiros, longos, presos em rabo de cavalo baixo.
Parei na sua frente, com as mãos geladas, e ele nem piscava. E por alguns instantes, que pareceram horas, esqueci até mesmo como abrir a boca.
—S-senhor... — disse num fio de voz —, senhor Eric Northman, por acaso o senhor sabe quem eu sou?
* Trocadilho com as palavras presas (fang em inglês) e fantasia.
** Cidade fictícia. Tradução do francês : Santa Cruz das Almas
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