23
Winter's pov:
Eu estou deitada de costas. Minha camisa absorve a umidade, a grama roça a pele desnuda dos meus braços. A lua cheia acima é o único ponto de luz no céu escuro. Além do som distante do trânsito da cidade, tudo o mais está quieto.
Pisco várias vezes seguidas, apressando meus olhos a se adaptarem à pouca luz. Quando viro a cabeça para o lado, um arranjo simétrico de galhos curvos despontando do meio da grama aparece diante dos meus olhos. Muito lentamente, levanto-me. Não consigo tirar os olhos dos destroços de concreto sobre o gramado. Minha mente se esforça para reconhecer a viagem familiar. Em seguida, depois de um terrível momento de reconhecimento, eu entendo. Estou em uma construção abandonada.
Engatinho para trás até chegar a uma cerca de ferro. Tento entender como vim parar aqui, nessa situação, e penso em minha última lembrança. Eu toquei nas cicatrizes de Jimin. Onde quer que eu esteja, é em algum lugar dentro da sua memória.
Uma voz feminina vagamente familiar atravessa a escuridão, cantando uma música em voz baixa. Viro-me na direção dela e vejo um labirinto de concreto espalhado como peças de dominó no meio da neblina. Jimin está parada no meio dele. Usa apenas uma calça escura e um moletom de capuz azul-marinho.
— Prestando serviços de arquiteta? — Pergunta a voz familiar. É firme, densa. Aeri. Ela se acomoda em uma mureta de concreto diante de Jimin, observando-a. Passa o polegar no lábio inferior. — Deixe-me adivinhar. Você veio fazer uma visita a alguém que enterrou aqui — Ela brinca, balançando a cabeça. — Ainda não tinha vislumbrado esse seu lado sentimental.
— É por isso que continuo perto de você, Giselle. Você sempre vê o lado bom.
— Esta noite começa Cheshvan — diz Aeri. — O que você está fazendo aqui nesse lugar?
— Estou pensando.
— Pensando?
— É um processo no qual uso o cérebro para tomar decisões racionais.
Os cantos da boca de Aeri se contraem para baixo.
— Estou começando a me preocupar com você. Vamos. Hora de sair. A lua muda à meia-noite. — Ela solta um suspiro. — Sei que você disse que não seguiria por esse caminho, mas estou a disposição se tiver mudado de ideia.
Como Jimin permanece parada, Aeri fala:
— Você está me ouvindo? Precisamos ir. Eu aceitei fazer um juramento de lealdade com você! Não está lembrada? Que tal essa? Você é um anjo caído. As próximas duas semanas serão um presente meu para você. Um presente entregue de boa vontade, aliás — ela acrescenta com um sorriso cúmplice.
Jimin olha Aeri pelo canto do olho.
— Só aceitei que se tornasse minha vassala para mantê-la a salvo dos demais anjos caídos. Jamais irei possuir o seu corpo, Giselle. Acho que já deixei isso bem claro.
Ela respira fundo, resiliente.
— Sou grata por ter garantido minha segurança durante todos esses anos, mas não acha que eu poderia retribuir de alguma forma? Eu sei que sou uma Nefilim, mas metade de um humano é melhor do que nada.
— Você já me dedica sua lealdade, não preciso de nada além disso. — Os olhos de Jimin penetram em Aeri. — Além disso, duas semanas não são suficientes. Eu quero ser humana. Permanentemente.
Aeri passa as mãos nos cabelos.
— E como pretende fazer isso? Você é um anjo caído, e não humana. Nunca foi humana, nunca será. Final da história. — Ela joga o pescoço para trás e observa o céu escuro.
Jimin desce da sepultura.
— Existe uma forma.
— O que?
— O Livro de Enoque diz que preciso matar meu vassalo Nefilim. Como não farei isso a você, preciso romper nosso elo e fazer um novo juramento.
— Não, não precisa. — diz Aeri, com uma nota de impaciência na voz. — Sem querer estragar sua ideia, você não pode matar um Nefilim. Já pensou nisso? Se você pudesse matá-lo, não poderia possuí-lo.
— Eu tenho um conhecimento que muitos dos meus não tem, Giselle. Acredite quando digo que existe uma forma de matar um Nefilim.
Aeri esfrega os olhos, como se soubesse que seus argumentos não estão fazendo muita diferença para Jimin e isso estivesse lhe dando dor de cabeça.
— Não acredito que você vai mesmo insistir nisso...
— Duas opções — diz Jimin.
— Como é?
— Salvar a vida de um humano e se transformar em anjo da guarda ou matar seu vassalo Nefilim e se tornar humana. Escolha.
— Isso é mais bobagem desse tal Livro de Enoque?
— Félix me fez uma visita há algumas semanas.
Os olhos de Aeri se arregalam.
— O que ele ainda está fazendo aqui?
— Algum Arcanjo o está usando para se aproximar de mim. Félix me confirmou que posso recuperar as asas se salvar a vida de um humano.
Os olhos de Aeri se arregalam ainda mais.
— Se você confia nele, vá em frente. Não há nada de errado em ser uma guardiã. Passar os dias tirando os mortais do perigo... pode ser divertido, dependendo do mortal.
— Mas se você tivesse uma opção? — Indaga Jimin.
— Ok. Bem, minha resposta depende de um detalhe importante. Estou bêbada... ou fiquei completamente louca? — Quando Jimin não ri, Aeri afirma com seriedade. — Não há escolha. E vou dizer o porquê. Não acredito nesse tal livro. Se eu fosse você, correria atrás do posto de guardiã.
Há um momento de silêncio. Depois, Jimin parece desvencilhar-se de seus pensamentos.
— Você está livre hoje à noite, certo? — Ela pergunta.
— Bem, sim. Precisa de algo?
— Vamos curtir um pouco no Moonlight.
Os olhos de Aeri reluzem.
— O que temos aqui? Um garotinha linda e carente? Venha cá que vou lhe dar uma grande abraço.
Ela da uma chave de braço em Jimin, que a pega pela cintura e a arrasta pela grama, onde as duas caem dando risadas.
— Tudo bem, tudo bem! — Grita Aeri, erguendo as mãos para se render. — Não é porque você não quer usufruir do meu corpinho que vou querer passar o restante da noite desfilando com a roupa amarrotada. — Ela pisca. — Isso não vai me ajudar com as garotas.
— E alguma coisa, vai?
Aeri semicerra os olhos.
— Você não disse isso! — Ela exclama, dando um soco no ombro de Jimin.
Tiro o dedo das cicatrizes de Jimin. A pele da minha nuca está arrepiada e meu coração bate rápido demais. Ela me encara com uma sombra de dúvida no olhar, e sou forçada a aceitar que talvez essa não seja a hora de recorrer à metade lógica do meu cérebro. Talvez seja uma daquelas ocasiões em que eu preciso passar dos limites. Parar de obedecer às regras do jogo. Aceitar o impossível.
— Então você não é mesmo humana — digo quase em um sussurro. — Você é mesmo um anjo caído. Um dos maus.
O comentário faz Jimin deixar escapar um sorriso.
— Você acha que eu sou uma pessoa má?
— Você possui... o corpo de outras pessoas.
Ela aceita a afirmativa com um aceno de cabeça.
— Você quer possuir meu corpo?
— Quero fazer muitas coisas com seu corpo, mas isso não.
— O que está errado com o corpo que você tem?
— Meu corpo se parece muito com um espelho. Real, mas se limita a uma camada exterior, refletindo o mundo à minha volta. — Ela diz, vestindo sua camisa. — Você me vê e me ouve e eu a vejo e a ouço. Quando você me toca, você sente. Não tenho exatamente a mesma experiência que você. Experimento tudo com uma certa limitação, e a única forma de vencer essa barreira é possuindo o corpo de um humano.
— Ou de alguém metade humano.
Jimin me encara com um olhar sério.
— Quando tocou minhas cicatrizes, viu Giselle? — Arrisca.
— Não sabia que vocês se conheciam. Ela disse que você pode possuir um corpo durante duas semanas, todos os anos, durante o Cheshvan. Ela disse que também não é humana. É uma Nefilim. — A palavra deixa minha língua como um sussurro.
— Giselle nasceu da união entre um anjo caído e uma humana. É imortal como um anjo, mas possui todos os sentidos de um mortal. Um anjo caído que deseja ter sensações humanas pode fazê-lo por intermédio do corpo de um Nefilim.
— Se você não consegue sentir nada, por que me beijou? Porque transamos?
Jimin passa o dedo em minha clavícula e então vai para baixo, parando em meu coração. Eu sinto minhas batidas através da pele.
— Porque sinto aqui, no meu coração — diz em tom suave. — Não perdi a capacidade de sentir emoções. — Ela me observa atentamente. — Vamos colocar desta maneira: nossa ligação emocional é suficiente.
Não entre em pânico, penso. Mas já respiro mais rápido e superficialmente.
— Você quer dizer que pode sentir felicidade, tristeza ou...
— Desejo. — Há um quase sorriso.
Não pare, digo para mim mesma. Não dê tempo para que suas emoções a dominem. Trate delas mais tarde, após obter respostas.
— Por que você caiu?
Os olhos de Jimin permanecem nos meus por alguns segundos.
— Desejo.
Engulo em seco.
— Desejo por dinheiro?
Jimin passa a mão no queixo. Só faz isso quando quer esconder o que está pensando. É a boca que revela seus pensamentos. Ela tenta suprimir um sorriso.
— E por outras coisas também. Pensava que me tornaria humana se caísse. Os anjos que tentaram Eva foram expulsos para a Terra, e havia boatos de que tinham perdido as asas e se tornado humanos. Quando deixaram o paraíso, não houve uma grande cerimônia para muitos convidados. Foi reservada. Não sabia que as asas lhe haviam sido arrancadas ou que tinham sido condenados a vagar pela Terra, consumidos pelo desejo de possuir corpos humanos. Naquele tempo, ninguém havia sequer ouvido falar em anjos caídos. Na minha cabeça, fazia sentido achar que, se eu caísse, perderia as asas e me tornaria humana. Na época, eu estava apaixonada por uma garota humana e parecia valer à pena.
— Félix disse que você pode recuperar as asas se salvar uma vida humana. Ele disse que você se transformará em um anjo da guarda. Não quer isso?
Eu estou confusa pelo fato de ela parecer rejeitar tanto a ideia.
— Não é para mim. Quero ser humana. Quero isso mais do que qualquer outra coisa.
— E Félix? Se vocês dois se conheciam, por que ele ainda está por aqui? Ele conseguiu se tornar um guardião?
Jimin fica mortalmente imóvel, com todos os músculos do corpo enrijecidos.
— Félix morreu. Quando descobriram que ele não conseguiria me persuadir, a Ordem Divina fez aquilo que já era do meu conhecimento.
— Eu pensei que ele ainda estivesse por aí, mas vejo que me enganei — Sinto meu estômago revirar. — Depois do que vi em sua memória, achei que era ele quem andava me perseguindo por causa de você.
— Você já chegou a ver o rosto dessa pessoa que a persegue?
— Não. E isso é muito sinistro — Faço uma pausa. — Tem algo de errado, não é? — Pergunto, sentindo aqueles calafrios nefastos percorrerem minha espinha.
— Preciso levar você para casa. Depois preciso cuidar de um assunto com urgência. Vou me sentir melhor se acabar com isso de uma vez. — Jimin vai até o guarda-roupa. — Vista isso, acredito que vá servir. — diz, entregando-me uma muda de roupas limpas.
Minha cabeça se esforça para juntar os fragmentos de informação. De repente, minha boca fica seca.
— Tem alguém com questões mal resolvidas com você, não é? Talvez essa pessoa me queira fora de cena como uma forma de vingança.
Nossos olhares se encontraram.
— Não irei discordar — diz Jimin.
Um pensamento perturbador e aterrorizante esteve martelando em minha mente nos últimos minutos, tentando chamar minha atenção. Agora ele praticamente grita, dizendo-me que essa tal pessoa pode ser o cara encapuzado.
Minutos depois, Jimin estaciona sua BMW X8 em frente ao prédio onde moro. Abro a porta e avanço em direção a entrada.
Não há luzes acesas quando entramos no apartamento. Experimento um aperto culpado no estômago e penso que minha tia pode estar dirigindo pela área, à minha procura. A chuva parou, e a neblina se acumula junto às paredes e aos arbustos como se fosse enfeites de Natal.
— Vou olhar lá dentro — diz Jimin, seguindo pela sala.
— Você acha que alguém pode estar lá dentro?
Ela balança a cabeça.
— Mas não custa conferir.
Espero no Hall de entrada, e alguns minutos depois Jimin vem ao meu encontro.
— Está tudo bem — avisa. — Vou dirigir até Yongsan-gu e volto assim que terminar meus assuntos por lá. — Ela não diz mais nada antes de sair.
Respiro fundo e ordeno que minhas pernas me levem rapidamente para o meu quarto. Quando olho pela janela, vejo Jimin descendo pela saída. O som do motor do carro se distancia, e subitamente me sinto muito sozinha.
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