20
Winter's pov:
Lá fora, o clima mudou e agora está frio e chuvoso. Os postes emitem uma luz pálida e lúgubre que não faz muito efeito diante da neblina espessa que toma conta das ruas. Saio correndo da Bookshop, feliz por ter consultado a previsão do tempo mais cedo e carregado o guarda-chuva. Enquanto passo diante da vitrine das lojas, vejo multidões reunidas nos bares.
Eu estou a alguns quarteirões do ponto de ônibus quando aquela sensação gelada desce pela minha nuca. Senti isso na noite em que tive certeza de que alguém ficou espionando pela minha janela, no Yongsan Park e novamente antes de sair da biblioteca. Abaixo-me, fingindo amarrar os sapatos e observo à minha volta disfarçadamente. As calçadas dos dois lados da rua estão vazias.
O sinal de pedestres abre, e atravesso a rua. Andando mais rápido, coloco a bolsa nas costas e torço para que o ônibus não atrase. Verifico se estou sendo seguida a cada segundo.
Escuto o ronco do ônibus, e logo em seguida ele vira a esquina, aparecendo no meio da neblina. Diminui a velocidade até se aproximar da calçada e eu entro, rumo à minha casa. Eu sou a única passageira.
Depois de escolher um assento algumas fileiras atrás do motorista, escorrego no banco para não ser vista. Ele puxa a alavanca para fechar a porta e o ônibus ganha a rua. Eu estou a ponto de soltar um suspiro de alívio quando recebo uma mensagem de texto.
Ningning: Onde você tá?
Eu: Gwanak-gu. E você?
Ningning: Eu também. Festa com Aeri. Te passo o endereço e podemos nos encontrar.
Eu: O que você está fazendo em Gwanak-gu?!
Não espero pela resposta. Ligo. Falar é mais rápido. E é urgente.
— Bem? O que me diz? — Pergunta Ningning. — Está com disposição de encarar uma festa?
— Não posso acreditar que você veio para uma festa com Aeri! — Um pensamento desanimador passa pela minha cabeça. — Ela sabe que você está comigo ao telefone?
— Para poder ir até aí matar você? Não, sinto muito. Entendo sua preocupação em relação a Jong Seong, mas não acredito que Aeri faça parte disso. Ei! — Ningning grita ao fundo — Essa bebida é minha! Minjeong? Não estou exatamente no melhor momento para conversar. O tempo urge.
— Onde você está?
— Peraí... Tudo bem, o prédio do outro lado da rua tem o número trezentos e sessenta. A rua é Highsmith, tenho quase certeza.
— Chegarei aí o mais rápido possível. Mas não vou ficar. Vou para casa e você vai comigo. Pare o ônibus! — grito para o motorista.
Ele pisa no freio. Sou jogada contra o assento à minha frente.
— Você poderia me dizer como chego à Highsmith? — Pergunto assim que chego ao final do corredor.
Ele aponta para fora da janela do lado direito do ônibus.
— É a oeste daqui.
Ando apenas alguns quarteirões antes de constatar que o motorista de ônibus não foi muito específico na sua explicação.
Um som arrastado atravessa a névoa. Uma mulher usando roupas escuras aparece à vista. Os olhos são como passas, pequeninos, reluzentes e escuros, e estreitam-se enquanto se aproximam de mim numa avaliação quase predatória.
— O que temos aqui? — Ela exclama, deixando à mostra um sorriso nada amigável. Dou um discreto passo para trás e aperto a alça da bolsa.
— Olá — falo, limpando a garganta e tentando parecer amigável. — A senhora poderia me dizer se falta muito para chegar à Highsmith Street?
Ela gargalha.
— O motorista de ônibus disse que eu deveria seguir nesta direção — digo com menos segurança.
— Sei o caminho para a Highsmith, e não é esse.
Espero, mas ela não continua.
— A senhora poderia me dizer como chego? — Pergunto. O clima parece ter caído consideravelmente. Minha respiração parece fumaça. Abraço a mim mesma e bato os pés para conservar o calor corporal.
— Você quer o caminho curto ou o comprido?
— O c-curto — digo com a voz entrecortada.
— Você está vendo aquele beco? — Ela diz, apontando atrás de mim. O beco está a meio quarteirão de distância. — Você atravessa e do outro lado está Highsmith.
— É só isso? — digo com incredulidade. — Um quarteirão?
— A boa notícia é que você precisa andar pouco. A má notícia é que com um tempo desses nada vai parecer perto. — Ela dá de ombros e continua a caminhar até a próxima esquina, onde fica parada, apoiada em uma parede de tijolos.
O beco está escuro e entulhado com lixeiras, caixas de papelão manchadas e uma protuberância não identificável que pode ser um aquecedor de água descartado. Também pode facilmente ser um tapete enrolando um cadáver. Uma cerca alta de malha de aço acompanha metade do caminho. Prédios de tijolos me ladeiam. Todas as janelas são gradeadas.
Pisando em caixotes e sacos de lixo, abro caminho pelo beco. Meus sapatos esmagam cacos de vidro. Uma mancha branca corre entre as minhas pernas, deixando-me sem fôlego. Um gato. Só um gato. Ele desaparece na escuridão à frente.
Procuro o celular no bolso, para mandar uma mensagem de texto para Ningning, dizendo que eu estou próxima e que é para esperar por mim. Lembro que deixei o telefone no bolso do casaco. Mas para minha surpresa ele não esta aqui. Quais as chances de a mulher vestida de roupas escuras ter me roubado? Para ser precisa: praticamente todas.
Decido que devo tentar a sorte e, ao me virar, vejo um seda preto polido passar em velocidade diante da entrada do beco. Subitamente o brilho avermelhado das luzes dos freios se acende.
Por razões que eu não posso explicar além de uma simples intuição, mergulho nas sombras.
Uma porta de carro se abre e escuto o barulho de tiros. Dois. A porta bate e o carro preto sai cantando pneus. Posso ouvir o coração martelando dentro do meu peito, som que se funde com o de passos apressados. Percebo um momento depois que são meus próprios passos e que eu corro até a entrada do beco. Viro a esquina e paro abruptamente. O corpo da mulher está desmoronado na calçada.
Corro e caio de joelhos ao seu lado.
— Você está bem? — Pergunto freneticamente, virando seu corpo.
A boca está aberta, e os olhos de passa, vazios. Um líquido escuro escorre do casaco acolchoado.
Sinto uma ânsia de pular para trás, mas me obrigo a procurar dentro do bolso do casaco. Preciso pedir ajuda. O celular realmente está ali.
A bateria está fraca, mas consigo discar 911. Enquanto espero que a telefonista atenda, olho de volta para o corpo da mulher, e é nesse momento que sinto uma injeção de adrenalina gelada me atravessando. O corpo desapareceu.
Com as mãos trêmulas, desligo. O som de passos que se aproximam ecoam em meus ouvidos, mas não posso dizer se estão perto ou distantes.
Ele está aqui, penso. O cara de capuz negro.
Agarro o celular com as duas mãos. Tento me lembrar do número do celular de Jimin. Fechando os olhos com força, visualizo os sete algarismos que ela escreveu com tinta azul em minha mão no dia em que nos conhecemos. Antes de duvidar da minha própria memória, disco o número.
— O que houve? — Pergunta Jimin.
Quase soluço ao ouvir o som de sua voz. Eu posso ouvir a passagem de som ao fundo, e sei que ela está no Moonlight Seul. Ela poderia estar aqui em quinze, talvez vinte minutos.
— Sou eu. — Não ouso falar mais alto do que um sussurro.
— Minjeong?
— Estou em Gwanak-gu. Na esquina da rua Hempshire. Você pode vir me pegar? É urgente.
\[...]
Eu estou encolhida no chão do beco, contando silenciosamente até cem, tentando permanecer calma, quando um Jaguar preto se aproxima lentamente da calçada.
Jimin abre a porta da cabine e agacha-se.
Ela tira o que usa por cima — uma jaqueta preta — ficando com uma camisa larga também preta. Se aproxima e um momento depois enfia meus braços nas mangas da jaqueta. A peça me engole, as mangas pouco acima das ponta dos meus dedos. Sinto a combinação dos cheiros de água salgada e de sabonete de hortelã. Algo nessa mistura preenche com um sentimento de segurança os vazios que eu carrego dentro de mim.
— Vou levá-la até o carro — diz Jimin. Ela me levanta. Envolvo o pescoço dela com meus braços e escondo meu rosto em seu peito.
— Acho que vou passar mal. — As palavras soam vacilantes, assim como Jimin. — Preciso dos comprimidos de ferro.
— Psiu — ela diz, apertando-me contra si. — Tudo vai ficar bem. Estou aqui.
Consigo dar um pequeno aceno com a cabeça.
— Vamos dar o fora daqui.
Outro aceno.
— Precisamos encontrar Ningning — falo. — Ela está em uma festa a um quarteirão daqui.
Enquanto Jimin dobra a esquina com o carro, escuto o som dos meus dentes batendo dentro da boca. Nunca na vida estive tão assustada. Ver a mulher morta me fez pensar nos meus pais. Minha visão está tingida de vermelho e, por mais que eu tente, não consigo eliminar a imagem do sangue.
— Você estava no trabalho? — Pergunto, lembrando do som da música ao fundo durante nossa breve conversa telefônica.
— Eu estava negociando a compra de um apartamento em um condomínio.
— Um apartamento?
— Em um daqueles condomínios elegantes no lago. Eu teria odiado o lugar. Estamos na Highsmith. Você tem o número?
— Não consigo me lembrar — digo, erguendo-me para poder olhar melhor pelas janelas.
Todos os prédios parecem abandonados. Não há sinal de festa. Não há sinal de vida. Ponto final.
— Você está com o celular? — Pergunto a ela.
— A bateria está fraca. — Ela diz, entregando-me o aparelho. — Não sei se você vai conseguir completar a chamada.
Mando uma mensagem de texto para Ningning.
Eu: Minjeong aqui. Onde está você?
Ningning: Mudança de planos. Aeri parece ter um compromisso em alguns minutos, então vamos para casa.
A tela fica negra.
— Apagou — digo para Jimin. — Você tem um carregador?
— Não está comigo.
— Ningning está voltando para casa. Você poderia me levar até lá?
Minutos depois estamos na estrada costeira, dirigindo bem ao lado de um penhasco sobre o oceano. Eu já passei por ali antes, e quando o sol bate na água o resultado é um azul meio acinzentado, com manchas verde escuras onde as árvores refletem. E a noite, o oceano parece um veneno negro e liso.
— Você vai me contar o que aconteceu? — Pergunta Jimin.
O júri ainda não decidiu o veredito. Eu não tenho certeza se devo contar algo para Jimin. Eu posso dizer que a mulher de roupas escuras levou tiros logo depois de ter roubado o meu celular. Eu posso dizer que acho que a bala era para mim. Então posso tentar explicar que o corpo da mulher desapareceu misteriosamente.
Lembro-me do olhar enfurecido do detetive Min quando lhe disse que alguém entrou em meu quarto. Eu não estou com vontade de ganhar olhares nem de me tornar motivo de piada novamente. Não com Jimin. Não agora.
— Eu me perdi e uma mulher estranha me encurralou — digo. — Ela pegou meu celular... — Seco o nariz com as costas da mão e fungo. — Embora eu não tenha percebido quando fez isso.
— O que você estava fazendo ali? — Pergunta Jimin.
— Ia encontrar com Ningning em uma festa.
Estamos na metade do caminho, em um pedaço de estrada coberto de parques e jardins florestais, quando subitamente uma fumaça vaza do capô do carro. Jimin freia, parando o carro na beira da estrada.
— Fique aí — diz, saindo do carro. Abrindo o capô do Jaguar, ela desaparece de vista.
Um minuto depois, ela fecha o capô. Esfregando as mãos nas calças, aproxima-se de minha janela, gesticulando para que eu a abra.
— Más notícias. É o motor.
Tento parecer bem-informada e inteligente, mas tenho a impressão de que minha expressão está vazia.
Jimin ergue a sobrancelha e diz:
— Que descanse em paz.
— Não vai andar?
— Só se a gente empurrá-lo.
De todos os carros do mundo, ela tinha que comprar um carro bichado.
— Onde está o seu celular? — Pergunta.
— Está sem bateria.
Ela abre um sorriso.
— Deixe eu adivinhar. Você não lembrou de verificar a bateria antes de sair de casa, não foi?
Ela examina o horizonte.
— Duas opções. Podemos pegar uma carona ou andar até a próxima saída e ir ao meu condomínio.
Salto do carro, batendo com força a porta atrás de mim. Chuto o pneu dianteiro do carro. Sei que estou usando a raiva para mascarar o medo que senti hoje. Logo que estiver completamente sozinha, vou cair em prantos.
Só então percebo o que ela falou.
— Você acabou de dizer que esta perto de casa? Prefiro enc-encontrar uma carona — digo com os dentes batendo mais forte. — Não v-v-vou para a sua casa.
Ela abre um leve sorriso, mas não parece estar se divertindo.
— Você vai ficar com hipotermia nesse ritmo. Pode confiar em mim, Anjo. Não vou fazer nada que não queira.
Cruzando os braços, encaro ela de frente. De tênis, meus olhos ficam abaixo dos delas. Sou obrigada a inclinar o pescoço para trás para olhá-la nos olhos.
— Já disse que não vou para sua casa com você.
É melhor parecer firme, para diminuir a probabilidade de mudar de ideia.
— Você acha que a combinação de nós duas na minha casa vai ser perigosa?
— Para falar a verdade, acho.
Jimin se apoia no carro.
— Podemos ficar aqui e discutir o assunto. — Ela estreita os olhos na direção do céu turbulento. — Mas essa tempestade está prestes a ganhar mais força.
Como se a Mãe Natureza quisesse dar sua contribuição para o veredito, o céu se abre, e uma combinação densa de chuva e neve começa a desabar.
Lanço o olhar mais frio que posso para Jimin e dou um suspiro zangado. Como sempre, ela tem razão.
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