🐇CAPÍTULO XIV: COELHO BRANCO🐇
Quando os olhinhos abriram vagarosamente, os cílios quase brancos de tão loiros se afastaram liberando o anil de sua íris, era como se estivesse submergindo de um mar tempestuoso; nunca compreendeu o sentido de dormir, mas era uma delícia estar inconsciente. O aroma tomou suas narinas, fez uma careta; às vezes, sonhava com isso: acordar em um lugar totalmente fedido, sem vestígios de seus pais ou seus malditos sabonetes.
Com somente oito anos, desconhecia a palavra odiar mas o sentimento sempre esteve presente, como uma chama que queima por dentro, devasta e vira fumaça: os punhos tremendo e os dedos brancos com tiras vermelhas de queimaduras. Demônios nadando nas chamas de sua alma sem se afogarem em seu coraçãozinho nada ingênuo.
— Desça, Daniel! — Gritou a voz estridente e feminina pelo corredor fora do quarto.
O pequeno se sentou e se espreguiçou vagarosamente como um gatinho ao despertar na imensa cama de casal: esticou a coluna, levantou os dois bracinhos; respirou fundo, olhou seu cobertor e passou os pequenos dedinhos para sentir a maciez, suspirou ao ver as marcas vermelhas nas dobras dos dedos, sentia ainda arderem e sorriu ao lembrar como o ferro do fogão o queimou. Adorou a sensação de sentir algo, mesmo que fosse a dor.
Desceu com dificuldade da enorme cama e foi andando de pijama verde claro enquanto esfregava os olhos com o dorso das mãozinhas, seus cabelos loiros e lisos em formato de tigela tocavam o começo de suas sobrancelhas. Desceu os degraus pensando que mamãe e papai tinham comentado algo importante sobre hoje, não conseguia se lembrar do que enquanto andava com as meias brancas e cheirosas passando pelo chão de madeira lustrado que cobria os degraus brilhantes e polidos abaixo de seus pézinhos.
Começou a pular eles de dois em dois, utilizando as duas pernas, uma brincadeira que deixava a mamãe preocupada com sua segurança e papai irritado com o barulho. Mas há dias não chamava a atenção deles com antes, de nada adiantou sua birra fajuta. Desceu os degraus sem uma palavra de reprimenda.
Sentado com seus sapatos sociais, o tornozelo em cima do joelho, usando uma camiseta branca social e calça jeans, o loiro corpulento e com rosto muito quadrado deixou o charuto de lado no cinzeiro no braço do sofá e se posicionou no meio, bem de frente para uma grande câmera instalada no centro da sala de estar.
Alberto Miller tentou não reparar nas vestimentas de Daniel, mas era melhor do que nada, e eles não tinham tempo. Era para a fotografia da revista ter saído há uma hora atrás, mas o filho sempre dormia por muitas horas — o que fez levarem o pequeno para o psicólogo semana passada. "Está em fase de crescimento, deve ser isso o sono", a médica tinha falado. "Bobagem", Solange pensava, "espero que tenha dois metros de altura no futuro para tanto sono", pensava o marido.
E o que a criança pensava dentro daquele consultório é que não gostava nem um pouco da forma como a mulher falava com ele, mal conseguia pronunciar o nome daquela profissão, sempre saía algo como "cocola" do que psicóloga. E cocola lembrava a Coca-Cola, algo que ele experimentou e não gostou. Assim como chocolate, alcaçuz, balas e bolos. Que criança não gosta de doces? Os pais achavam que, com um pouco de açúcar, veriam o filho ter o comportamento de qualquer criança comum: correndo pela casa, brincando com os brinquedos intocados do seu quarto. Mas nada adiantou, nada despertava o interesse em Daniel Miller.
— Que isso? — Ele disse com a voz sonolenta ainda e abrindo mais os olhinhos anil para o tripé e câmera a frente quando estava sentado no colo de sua mãe que logo se endireitou no sofá ao lado do marido.
— Uma câmera fotográfica — disse a voz estridente da ruiva magrela, os dedos longos e finos percorrendo os bracinhos gordos como se fossem aranhas gigantes.
— O que é uma câmera fotográfica?
— Algo que registra os momentos — era a voz de trovão de seu pai, Dani olhou curioso para o corpulento atrás de si e juntou as sobrancelhas — a nossa imagem, agora, vai ficar gravada para sempre.
— E esse cheiro também? — Perguntou na inocência, já que os pais pareciam só se importarem com o cheiro das coisas do que com elas em si, Solange soltou um riso baixo e o apertou contra o colo.
— Infelizmente, não — Solange suspirou — olhe para frente, filho — ela disse, ele olhou e notou que tinha alguém do outro lado do tripé:
— Ele está bem? — Perguntou o fotógrafo.
— Sim — disse Alberto. Já sabia sobre o que estava perguntando.
— É que ele parece tão... — falou o homem atrás da câmera.
— Apático? — Solange perguntou erguendo as sobrancelhas e escondendo as mãos machucadas do menino com as suas — ele é assim, já o levamos ao médico, não há nada de errado com ele — respondeu ao repórter.
— Ei, rapazinho — o homem falou, Daniel olhou o sujeito — gosta dos cheiros dos sabonetes? — Ele fechou o rosto o tanto de pôde e negou com a cabeça, o que faz o jornalista dar de ombros, enfiar a cabeça na câmera — Sorriam! — Falou, o flash veio como uma bomba atômica na mente do pequeno no colo da mãe.
Piscou várias vezes para tentar ver algo de novo e era vermelho, muito vermelho, escorria sem parar, instigava, extasiava algo dentro de si, e depois branco, vários pelinhos brancos, sentiu a mãe o colocando no chão e levou as mãozinhas para a folha com o que parecia ser um desenho muito realista.
— Ops, caiu — falou o repórter tirando de sua mão o desenho.
— É um desenho?
— É uma fotografia de um coelho — o repórter tentou ignorar as mãos machucadas do menino.
— Posso ficar com ela? — Perguntou. O jornalista juntou as sobrancelhas e encarou a foto que precisou tirar de um coelho que foi massacrado na floresta para uma reportagem contra a caça ilegal fora de temporada na cidade. Os olhos vermelhos e sem vida, o pelo se misturando com o escarlate, os pêlos manchados e molhados com as vísceras saindo para todos os lados.
— Não, garotão — bagunçou os cabelos loiros e finos do garoto e saiu agradecendo aos entrevistados pela conversa.
— Mãe! — Gritou, fazendo Solange Miller rodar a barra florida do vestido e se virar para o filho que ainda estava no centro da sala enquanto os pais começavam a sair e a babá negra a entrar na casa.
— Eu quero um coelho branco! — A ruiva sorriu de orelha a orelha enquanto o marido passava a mão por sua cintura e a guiava para fora.
— Tá vendo? Ele é normal, Alberto, quer um coelho branco! Igual Alice no País das Maravilhas, ele só é incompreendido — o loiro sorriu, piscou para o filho com um olho e comentou feliz:
— Assim que chegarmos em casa, vai ter um — Daniel assentiu com a cabeça e se sentou no sofá — somente se você se comportar! — Dani juntou as sobrancelhas, isso era sinônimo de não colocar as mãos na boca do fogão para sentir algo.
— Eu sabia que em algum momento ele ia despertar algum interesse — a esposa comentou e os dois saíram andando.
Mas ali no sofá enquanto a empregada tentava chamá-lo para ir se trocar no quarto, a única coisa que o pequeno pensava era como queria um coelho branco, um coelhinho, bem daquele jeito: todo estático, pintado de vermelho e com olhos tão escarlate que fariam seu coração palpitar da mesma forma que a fotografia.
Talvez precisava-se de uma tesoura, pensou, até mesmo uma das facas de mamãe quando ela cortava a carne para o almoço usando seu avental cheio de vaquinhas, pura ironia. Talvez não precisaria de tanto, encarou suas mãozinhas e os dedinhos gordinhos, praticamente cinzas e azulados de tão brancos e sorriu com as marcas vermelhas. Talvez Carla pudesse ajudá-lo a achar um coelho branco na fazenda e ele não precisaria esperar pelos pais e poderia colocar ainda as mãos no fogão.
— Venha, vamos colocar uma roupinha mais bonita — dizia a mulher pela décima vez, Dani ergueu a cabeça para ela e disse:
— Onde está Carla? — Ele perguntou, a negra com os cachos volumosos na altura dos ombros respirou fundo.
— Deve estar dormindo ainda no casebre dos fundos — e Daniel deu vários saltinhos até ela, segurou sua mão sentindo os dedos longos pela palma e foi subindo os degraus pulando como antes e rindo, rindo sem parar e começou a cantarolar:
— Ela vai encontrar um coelhinho para mim, viu? — E a negra concordou com a cabeça — ela vai encontrar um coelhinho para mim, coelhinho, coelhinho, coelhinho, você é tão engraçadinho com seu nariz se movendo.
***
— Cadê meu coelho?! — O líquido branco de sua saliva salpicando na face retinta, fazendo ela fechar os olhos; o loiro balançou a cabeça, as mechas claras se movimentaram de um lado para o outro como um chicote, puxou as mãos com força, fazendo Sarah soltá-las e quase perder o equilíbrio e cair para trás.
— Vou trazer seu coelho, Daniel — falou atônica enquanto se levantava com dificuldade.
— Cale a boca, Carla! Cale a boca! — O homem continuava chorando, ranho escorria de seu nariz, ele se curvou para frente e começou a bater com as mãos em punho nas têmporas, os policiais entraram de novo e, desta vez, Kato assentiu com a cabeça pedindo para levarem ele.
— Peçam para alguma enfermeira sedar ele — foi o que disse aos fardados, eles se aproximaram de Miller, cada um dos brutamontes segurando um braço e o levantando com força na cadeira, os músculos dos bíceps dos dois saltando pela camiseta do uniforme preto — e se certifiquem que ele tome os remédios! — Terminou sua fala e se sentou aturdida.
— Sarah! — Berrou Daniel com a garganta doendo e sendo arrastado contra sua vontade pela sala até a porta, os homens o puxavam através da curva dos cotovelos e ele soltava o corpo, fazendo os pés ficarem caídos para trás e os joelhos suspensos no ar — me dê meu coelho! — Olhos fechados, a marca da cicatriz se contorcendo em sua bochecha — por favor, Sarah! Doutora, me dê um coelho para pôr em um pote! Por favor! — E, com isso, a porta se fechou.
Kato começou a respirar fundo várias vezes, quase entrou em pânico tentando somente entender, e não ajudar, no ataque psicótico que o seu paciente tinha. Nunca tinha ido para esse lado, era sempre recomendado fazer eles voltarem para a realidade, mas ela precisava de respostas, mais respostas e como segunda sessão, tinha sido um belo desastre.
Para qualquer lado que olhasse, via Daniel Miller com sintomas fortes de esquizofrenia aguda. Passou as mãos pelos cabelos sentindo a testa suada, encarou seu próprio suor e pensou o quanto daquilo não seria a saliva do assassino. Um estrondo soou, fazendo ela dar um pulo na cadeira, se levantar e olhar para a porta.
No lugar de um loiro psicótico, apareceu um dos fardados que deveria levar o seu paciente embora, ele parecia desconcertado, tinha saído a menos de cinco minutos, levou as mãos para trás de suas costas, os ombros largos, os músculos marcados por cada centímetro da vestimenta: o abdômen definido, os ombros largos, os bíceps e tríceps saltando pela borda do tecido escuro.
— Sim? — Ela perguntou confusa.
— Doutora Kato, sou João Souza, ao sairmos, uma enfermeira o sedou e meu companheiro de trabalho o levou para a cela para descansar — ela concordou com a cabeça, achou que ele iria sair, mas permaneceu como uma estátua grega na frente da porta aberta para o corredor da prisão. — Doutora, acredita que Daniel Miller é doente? — Sarah hesitou, mas confirmou com a cabeça. — Então, como ele era na infância? — A mulher com a pele retinta brilhando com a luz amarela do sol das três horas da tarde piscou e franziu as sobrancelhas.
— Como? — Perguntou e o brutamontes engoliu o seco.
— Meu filho tem comportamentos estranhos. Estou pensando, estou querendo, não sei, ver semelhanças? — A mulher ergueu as sobrancelhas.
— Senhor João, segundo os relatórios de meus colegas de trabalho, Daniel Miller teve uma infância comum, frequentou uma escola particular com altos padrões de estudos, tinha condições financeiras abastadas pelos pais desde o nascimento, apesar de não ter muita atenção deles por conta do trabalho e era sem amigos, dito como apático pelos professores que teve e colegas de escola.
— Sozinho? — Ele perguntou, Sarah deu de ombros.
— Sim, sozinho, sofria bullying pelo seu jeito estranho e inteligente de ser — o homem suspirou como resposta — devo lembrá-lo e certificá-lo que centenas, talvez milhares, de crianças e adolescentes nesse país sofrem bullying e não viram assassinos — e se ajeitou a postura com a pose de superioridade.
— Sim, sei disso, mas, isso contribuiu, na sua visão? — Sarah respirou fundo e andou até o homem.
— Sim, com certeza, a falta de vida social foi um fator marcante em toda a vida dele e começou na infância e adolescência — o homem paralisou na sua frente, ela andou um pouco mais, quase saindo da sala e o deixando ali, mas virou o rosto sobre os ombros pequenos e falou olhando para cima, alcançando os olhos castanhos do brutamontes. — Além de, claro, diversos outros fatores. Não se preocupe, senhor João, certifique-se que eu seu filho não sofra mais bullying, seja presente e cuide dele. Não são as ações de pais que transformam seus filhos em assassinos, muito menos traumas. É a forma como eles reagem a tudo em sua vida, escolhendo a violência que é, de fato, algo perigoso e, na maioria das vezes, nós, seres humanos, escolhemos reprimir, ignorar ou correr de um trauma, não lidar com ele matando alguém. Somos mais perigosos para nós mesmos do que para os outros — e sorriu somente com os lábios, deixando o homem sozinho na sala amarela e doentia.
***
Era meia-noite e não dormia. Sua cama grande, confortável, ouvindo seu marido às suas costas, o respirar pesado e o barulho perfeito do ar-condicionado, tudo isso, semanas atrás, seria o suficiente para fazê-la dormir. Mas depois de hoje, parecia algo impossível ao rebobinar toda a cena em sua mente e tentar entender. O que Daniel queria dizer com um coelho branco? Levantou-se devagar, sentiu a penumbra e frio do quarto entrar pelo corpo desnudo, enrolou-se com o robe branco que estava estendido na cadeira ao lado, andou colocando as pantufas ao pé da cama e foi caminhando pensativa até o corredor.
Acendeu a luz, foi até as escadas e desceu devagar, "tum", "nhec", "tum", "nhec" de seus passos cansados e o "zumm" "zumm" do ar-condicionado no quarto eram os únicos sons presentes. Ia pegar um copo de água quando ouviu algo cair e quicar no chão da cozinha e parou de andar, levou uma das mãos até o coração, o sentiu pulsar, suas mãos começaram a tremer e o pavor tomou seu coração.
Alguém estava ali? Daniel teria fugido da prisão para matá-la? Para vir até ela e pegar seu coelho branco? Imaginou o sádico assassino com seu sorriso de orelha a orelha, sem os dentes, parado na penumbra do cômodo, ao redor os eletrodomèsticos caros e os tons de branco e cinza e... aquele maldito sorriso forçado, aquele cabelo sujo e a saliva escorrendo de sua boca raivosa.
A imagem fez um arrepio percorrer o corpo de Sarah Kato. Respirou fundo, fechou os olhos e negou com a cabeça. Era a ansiedade, somente isso, sua fertil imaginação criando um cenário apocalíptico e cruel. Tomando muita coragem, olhou com os olhos arregalados para baixo, inclinou a cabeça e os ombros ao máximo e viu, no lugar do olho azul e outro branco que pensou, dois olhos amarelos de sua gata, soltou todo o ar que notou somente agora que tinha prendido e negou com a cabeça. Tola, uma criança tola e assustada, diria sua falecida mãe.
Era somente Matilda andando entre os copos de plásticos em cima da mesa. Terminou de descer as escadas fazendo o coração voltar aos batimentos normais, passou a mão no pelo macio e preto da felina, respirou fundo, encarou a geladeira e, por fim, pensou consigo mesma: "tenho medo e... dó de Daniel Miller", foi automático, assustou-se com tal pensamento, a imagem de suas lágrimas, a forma frenética e descontrolada daquele corpo forte, a maneira como parecia uma doce e desamparada criança...
Levou a mão até o ventre, fechou os olhos com dor no coração... tantas crianças que morreram ali. Anos antes, fez um aborto para não parar com os estudos e, depois, como crueldade da vida, quando quis os filhos, sofreu vários abortos espontâneos que sentia ter uma máquina de matar no ventre do que uma que cria a vida como em tantas outras mulheres. Pensou em como seria ser mãe de Miller, esse seria o assunto da próxima sessão: seus pais; precisava explorar aquilo de alguma forma... mesmo que eles já estivessem mortos há alguns anos e... Carla... quem foi esta mulher?
Engoliu o seco, deixou sua filha felina ali, abriu a geladeira branca de duas portas, pegou a garrafa de vidro com água gelada e desejou, além de dormir, afastar no dia seguinte a estranha compaixão que sentia por aquele estranho, violento, perturnado e sádico assassino.
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