⍟ fifty nine

Jungkook estava muito cansado agora.

Ele estava sentado em um leito com as pernas dobradas para fora enquanto sua omoplata era revestida com ataduras. Seu olhar, um par de pensativos olhos negros, estava focado em um ponto distante na parede. A costura ardia um pouco a região atingida pelo projétil, mas ele estava suportando esse fardo como alguém que ainda possuía desejos inacabáveis.

Nunca tinha se sentido tão pequeno dentro si como estava se sentindo agora. Houve um momento que Jungkook teve a chance de prendê-la quando pôs as mãos nela, mas os seus sentimentos o enfraqueceram naquela hora e a sua chance dissolveu-se como areia. Nada disso estaria acontecendo se ele tivesse seguido a razão, não a emoção.

Sua cabeça estava a mil por hora, pensamento atrás de pensamento, e todos eles o amaldiçoavam em silêncio e barbaramente. Jungkook endireitou a cabeça e olhou para a enfermeira quando ela estendeu um comprimido em sua direção.

– Isso vai aliviar a sua dor. – ela disse gentilmente, o ouvindo suspirar baixinho antes de engolir a pílula no seco.

Ela foi até a janela e puxou a cortina de lado, dando ao ambiente um aspecto mais solitário, porém aquecido. Quando retornou, ofereceu-lhe uma blusa engomada e de seda escura. O detetive olhou para a peça de roupa com uma sobrancelha erguida.

– Onde está minha camisa?

– Estava rasgada e com muito sangue, então tivemos que lavá-la. O hospital está cedendo esta para o senhor.

Jungkook não questionou, apenas recolheu a blusa e começou a desdobrá-la. A enfermeira ofereceu ajuda, muito sensatamente pela sua saúde, ele estava estragado demais para fazer qualquer tipo de esforço. Ele tinha um corte superficial no rosto, ligeiramente apontado para o queixo, e uma mancha arroxeada abaixo da clavícula. A mulher teve cuidado na hora de vesti-lo, hesitando apenas quando o escutava gemer.

– Como está o nosso herói? – uma voz veio da porta. Era Layla.

Virando seu rosto com um pouco de esforço, Jungkook sorriu, um sorriso cansado, mas incrivelmente cheio de doçura. Ele a viu com o ombro apoiado no batente da porta e braços cruzados.

– Muito ferrado, eu diria. – ele respondeu.

– Vou deixá-los a sós. Se sentir algum desconforto me chame. – a enfermeira informou, com perfeita atenção, em seguida partiu pela porta.

Layla entrou no quarto, seu colar de esmeralda ainda estava pendurado em sua garganta. Aparentemente, aquilo foi a única coisa intacta que restou na aparência dela. Seu cabelo estava levemente desgrenhado, a bainha do vestido tinha sido rasgada e a maquiagem foi borrada pela metade. Jungkook estava prestes a se levantar quando Layla o interrompeu com um gesto.

– Não se atreva a tirar sua bunda daí. – ela ameaçou, fingindo indignação. – Você ainda está de repouso, lembra?

– Não por muito tempo. – seus olhos se moveram para longe dela antes que pudesse transparecer seu incômodo. – Eu não posso ficar aqui parado com tudo desmoronando lá fora.

– Calma aí. O mundo não vai se acabar se você tirar quinze minutos para descansar. – Layla olhou-o com uma preocupação melancólica. – Aliás, falei com o Seokjin sobre o que você me pediu. Ele vai reforçar a guarda no prédio e fortalecer o controle de segurança.

– Ele te garantiu isso?

– Sim, com todas as palavras. O garoto ficará seguro. – o detetive respirou, como uma espécie de alívio, e acariciou as têmporas. Ele parecia exausto, mas satisfeito. – Você se preocupa muito com ele, não é?

– Ele está sendo usado como uma moeda de troca, é claro que devo me preocupar com a segurança dele.

Layla ergueu uma sobrancelha, apesar de tudo, e sorriu.

– Faz de conta que seja só isso.

O detetive não disse nada, ele nem parecia estar irritado com a insinuação, somente cansado de fingir. Sua vida estava, por definição, desequilibrada com os últimos acontecimentos, então enganar a si mesmo com mentiras não era a melhor solução. Esquivar-se, talvez. Mentir, não. Apesar de algumas palavras ecoarem na sua cabeça para serem ditas, ele decidiu inverter o assunto.

– Onde está a Jennie agora?

– Yoongi conseguiu que ela passasse a noite na delegacia de Madri. O hotel não é nem de longe o melhor lugar para se deixar uma criminosa.

– A Jennie não pode ficar sozinha. – ele disse, o que pareceu para Layla como a quadragésima vez. – Aquela mulher precisa ser vigiada o tempo todo. Ela tem aliados por toda parte, não duvido que também tenha na polícia.

– Fique tranquilo. Yoongi colocou homens de confiança para ficar de olho nela. – Jungkook a encarou com uma expressão ainda duvidosa. – Além do mais, ela está dentro de uma cela isolada, amanhã mesmo será transferida para Vancouver.

– Assim está melhor. – ele observou. – Ela tem informações valiosas que vão nos ajudar.

– No que está pensando?

Layla tinha subitamente se movido para perto dele, como se a informação fosse de algum modo um segredo. Jungkook se sentia esgotado por elaborar estratégias de interrogatório naquela situação, mas a verdade era que ele não conseguia manter o eixo estável sem pensar nas futuras soluções, afinal, tudo podia se inverter a qualquer hora. Simplesmente não podia evitar esse instinto investigativo, era como uma droga, essa necessidade de sempre saber mais.

– A Jennie não tinha capital suficiente para investir nesse mercado, o que me faz pensar que ela conseguiu um empréstimo com alguém muito influente, talvez algum empresário famoso. – ele contou e a enxergou como se estivesse na expectativa. – Essa pessoa influente deve ter outros contatos, pessoas que também fazem parte desse mercado clandestino. O que estou tentando dizer é que nós estamos dentro de uma rede e cada usuário está interligado com o outro.

– O que significa que se encontrarmos o suposto empresário vamos identificar quem são os outros usuários. – Layla apontou, suavizando o rosto.

– Exatamente.

– Mas de quem você suspeita? Namjoon não pode ser, ele entrou no meio disso quando o mercado já estava quase funcionando.

– Minhas suspeitas ainda são insuficientes, preciso de pelo menos um nome próximo a ela. – Layla mordeu o lábio pensativamente.

– O cara que negocia joias. – ela sugeriu. – Ele tem bastante dinheiro para uma festa de gala tão chique quanto aquela. É um bom palpite, até porque não sabemos como ela o conheceu.

– Existem muitas opções, temos que verificar alguns nomes e, se possível, ir descartando para diminuir a nossa lista.

– Deu para notar que ela construiu amizades com pessoas de escalas altas. Para manter a aparência, claro. – Jungkook exalou e passou as mãos pelo cabelo, concordando. – Se você quiser posso investigar isso. Nomes poderosos não são difíceis de achar. Posso averiguar o banco de dados e identificar de onde veio o dinheiro que ela usou naquela época.

– Vai fazer isso agora? – ele a olhou curiosamente.

– Não. O hotel é o melhor lugar para esse tipo de coisa.

Jungkook assentiu, aprovando aquela escolha, aliviado por não ser o único que sentia que aquele lugar era inapropriado para o seu trabalho. Era fácil estar com Layla, apesar de a ter conhecido em poucas horas, Jungkook se identificava com ela, principalmente com sua forma de trabalhar. Ela era uma segunda versão dele, mas como mulher.

Uma batida suave veio da porta entreaberta, um segundo depois Yoongi colocou sua cabeça para dentro. Dois pares de olhos vieram na sua direção e ele observou, daquele ângulo, que o assunto parecia particular demais para sua interferência abrupta. A expressão de Yoongi foi de estranheza para preocupação em segundos.

– Eu vim ver como você está. – disse.

– Entre. – Layla o convidou e, com um encolher de ombros, Yoongi empurrou a porta e adentrou o cômodo. – Eu estava falando com o Jungkook sobre o caso. Mas agora eu estou com sede. Alguém aceita um café?

– Não, obrigado. – Jungkook rejeitou. Yoongi também gesticulou um não.

– Tudo bem. Vejo vocês em alguns minutos. – ela olhou para eles sob os cílios e mexeu-se para fora da sala, deixando-os a sós em questão de segundos.

Yoongi andou para perto dele, seu ritmo era lento, sem pressa. Jungkook manteve os olhos fixos nele enquanto o via se aproximar e parar a uma distância de dois metros. Com ele sentado e Yoongi em pé, eles estavam quase da mesma altura.

– Está se sentindo melhor? – Yoongi voltou a perguntar depois de ponderar brevemente sobre o que dizer.

– Em que sentido?

Yoongi pausou e abaixou as pálpebras para o chão. Nem ele mesmo sabia o sentido de sua pergunta, tantas coisas haviam acontecido nas últimas horas que qualquer pergunta podia estar ligada a todas elas. Seus olhos encontraram os de Jungkook quando finalmente voltou a encará-lo, visivelmente vulnerável e desanimado.

– Tem razão. – ele buscou por palavras. – É uma pergunta idiota.

– Por que você está aqui? Não devia estar de olho na Jennie?

– Coloquei homens de confiança para cuidar disso porque eu precisava te ver. – Jungkook se poupou de falar, mas aquelas palavras o atingiram. – Eu fiquei apreensivo quando te vi daquele jeito, Jungkook.

– Já passou. – aquilo não foi um comentário feliz. – Em poucas horas eu vou ser liberado.

– Não tenho certeza se você vai ser liberado ainda hoje. Sua situação não está nada agradável.

– Eu já estive pior. – uma sombra de indignação se passou no rosto dele, por isso seus olhos foram desviados para longe. – O Jimin precisa de mim. Eu não posso deixá-lo sozinho.

Yoongi ficou em silêncio por um longo momento, assimilando a forma como ele usou aquelas palavras. Engolindo, sua voz disse:

– Ele não está sozinho. Tem uma equipe gigante cuidando dele.

– Uma equipe que metade está aqui. – reformulou. – Namjoon é muito perigoso. Eu pensei que Derek fosse a ameaça maior, mas me enganei. O Namjoon é infinitamente pior, a diferença é que ele sabe agir em silêncio.

– Entendo a sua preocupação, mas se ele não estiver seguro no prédio, onde mais vai estar? – Jungkook olhou de lado para ele. – Você escolheu estar aqui para resgatar as reféns e prender a Jennie, se tivesse ficado no Canadá isso não teria acontecido. No fundo você sabe que aquele lugar é altamente protegido, por isso confiou em deixá-lo sozinho com o Seokjin.

– Ele ainda corre perigo.

– Todas as reféns salvas também correm.

Silêncio. Jungkook podia sentir a tensão no ar, desta forma optou por não dizer nada. Dava para ouvir o barulho do trânsito lá fora, as sirenes das ambulâncias ecoando ao longe e ruídos de pessoas andando pelo corredor com aquelas mesas auxiliares hospitalares rodando por todos os lados.

– Qual é o seu problema com ele? Por que o trata assim? – finalmente Jungkook perguntou, sua voz tinha enrijecido.

– Você não entenderia...

– Então tente me explicar. – falou Jungkook com firmeza. – Acho uma covardia você culpar um menino por causa de suas frustrações.

– Eu não o culpo. – ele parecia calmo, mas havia certa rigidez no seu tom. – Acontece que você quer acreditar nisso. Eu não consigo me expressar bem, Jungkook, então você acaba levando isso para o lado ruim.

Jungkook ficou em silêncio, então ele continuou:

– Tudo o que fiz por você foi pensando no seu bem-estar.

– Tudo bem. – ele tentou soar leve, embora estivesse impaciente. – Você diz que queria o meu bem-estar e achou que afastar o Jimin era a melhor opção?

– Você estava ferindo o protocolo, Jungkook. – disse ele sem pensar e abaixou a cabeça. – Mas eu não quero falar sobre isso. Você sabe que me arrependi do que fiz. Se eu pudesse mudar a forma de te alertar, eu faria.

– Você não fez isso apenas pelo protocolo, Yoongi. – disparou, arrancando uma surpresa crua na sua direção. – Por que fez aquilo?

– Não me pergunte isso.

– Por que não? – insistiu. – Tem algo que eu não posso saber?

Yoongi hesitou. Se Jungkook ouvisse sua resposta o acharia um tolo, por isso ele estava tentando manter os tópicos relacionados a ele o mais longe possível da conversa. No entanto, não conseguiu conter um suspiro de rendição.

– Eu fiz aquilo por inveja. – Jungkook suspendeu as sobrancelhas. – Inveja por ver vocês dois juntos.

– Inveja?

O detetive desejou rebater com um argumento sólido, mas ele paralisou naquela palavra. Agora que o momento tinha chegado, Yoongi apresentou uma dificuldade imensa para encontrar as próprias palavras. Jungkook esperou, sem esconder a confusão por sua justificativa.

– Todas as vezes que vi vocês juntos eu me senti engasgado. – sua voz estava forçadamente brusca, Jungkook observou. – E então eu me perguntava porque você podia ficar com ele e eu não.

Jungkook emitiu um ruído de surpresa.

– O quê?

– Não, não é o que você está pensando. Eu não estou apaixonado pelo Jimin, muito pelo contrário... – sua voz parou, ele teve uma ligeira impressão de que havia um buraco oco na sua garganta. – Eu fui proibido de ver o Taehyung por ele ser uma testemunha e estar indiretamente ligado ao caso, enquanto você recebeu carta branca para ficar com o Jimin mesmo ele sendo uma vítima. Isso me deixou com raiva, Jungkook. Como acha que eu deveria me sentir?

– Mas você me disse que não queria nada com ele. – o detetive o lembrou.

– Eu queria, mas não podia. – explicou. – Seokjin me proibiu de encontrá-lo depois que estive na casa dele para falar sobre os torpedos. Ele disse que isso podia afetar o andamento do caso. Nós nem tínhamos ficado, nem nada, mas o Seokjin me infernizou para que eu me afastasse.

– E você se afastou? – sua pergunta fez o coração de Yoongi acelerar como se ele tivesse acabado de engolir um monte de facas.

– No início não, eu não quis dar ouvidos, mas com o tempo nós ficamos mais próximos. O Taehyung me chamou para sair, e por azar do destino, o restaurante era o mesmo que Seokjin frequentava. Ele estava lá naquela noite e ficou muito bravo comigo.

– Yoongi-

– Deixe-me terminar. – Jungkook se calou. – No dia seguinte, Seokjin me liberou temporariamente do caso. Se lembra de quando sumi de repente e você começou a se perguntar o porquê de eu ter sumido? Bem, de certa forma o Taehyung era o motivo, mas a verdade foi que o Seokjin me afastou por alguns dias por conta desse ocorrido. Eu o desobedeci.

Agora Jungkook entendia as atitudes de Yoongi, embora ainda discordasse delas. Seokjin não foi imparcial nas duas circunstâncias, o que acabou por privilegiar os descuidos de Jungkook e condenar os de Yoongi.

– Agora se coloque no meu lugar. – Yoongi prosseguiu, demorando um bom tempo para terminar a frase. – Se você tivesse sido condenado por se envolver com o Jimin e me encontrasse pelos corredores beijando o Taehyung, fazendo aquilo que você foi proibido de fazer. E pior, com a aprovação do diretor do FBI. Como você se sentiria, Jungkook?

– Sinto muito por essa situação, eu não sabia de nada disso. Se você tivesse me contado as coisas seriam diferentes.

– Não seriam, não. O Seokjin gosta de você, ele se enxerga em você, por isso não o condena. – Jungkook sentiu como se tivesse levado um tapa na cara. – De qualquer forma eu fui um idiota por ter agido daquela forma com o Jimin. Ele não merece pagar pela minha inveja.

– Me desculpe.

– Pelo quê? Por ter feito aquilo que eu teria feito se estivesse na sua pele? – ele riu sem humor e caminhou até a janela, olhando para além da cortina de renda. – Minha decisão teria sido outra meses atrás, mas agora já passou. Ele deve estar com outra pessoa agora, provavelmente um outro homem.

Lentamente, Jungkook ficou distante, a expressão de quem visivelmente estava escondendo alguma coisa. Por sorte, seu parceiro não pareceu notar, mas o pensamento de que Ric estava dormindo com Taehyung o perturbou naquele momento, principalmente por não poder mencionar essa parte para seu amigo.

– O que você acha disso? – Jungkook levantou os olhos ao som de sua voz. – Sobre o Taehyung e outro cara. Acha que ele pode estar com outro?

Jungkook deixou um suspiro silencioso escapar antes de respondê-lo.

– Ele é solteiro. Pessoas vão aparecer na vida dele, mas não sabemos por quanto tempo as relações podem durar.

– Merda.

Yoongi fisgou uma cadeira próxima e se afundou nela, seus olhos baixos e pensativos. Jungkook estava inclinado a voltar atrás, mas desistiu logo em seguida. Quanto mais ciente ele estivesse, menor seria o espanto quando descobrisse a verdade.

– Eu estou perdoado? – Yoongi perguntou de repente, sua expressão parecia como se alguém tivesse batido nele, olhos tristes.

– Esqueça isso. – sua voz estava suave. – Eu também teria ficado magoado se estivesse no seu lugar.

– Você acha que ele pode me aceitar de volta?

Jungkook considerou aquela possibilidade de forma racional.

– Eu não sei o que você fez para ele, Yoongi, nem como deu a notícia de que teria que se afastar. A depender de tudo isso, ele pode interpretar mal. – Yoongi o encarou parcialmente distraído, porém não disse nada. – Além do mais, vocês não chegaram a se envolver romanticamente, então acredito que ainda há chances disso se resolver.

Toda energia pareceu ter se esgotado de Yoongi, que pendeu as mãos entre os joelhos quando inclinou o tronco para frente. Até mesmo sua expressão tinha ficado vazia e distante, ele realmente sentia-se afetado quando o assunto era Taehyung. Jungkook não podia culpá-lo, afinal, ele se identificava da mesma forma.

– O que vai fazer quando tudo isso acabar? – o detetive perguntou, e pensou no quão estranho era começar aquele tipo de diálogo com ele depois de tanto tempo.

– Pretendo contar que fui obrigado a me afastar dele, que não fiz por vontade própria.

– Você sabe que não tem que fazer isso. – ele aconselhou, um pouco mais cansativo do que pretendia. – Sua relação com o Taehyung não passou de um bate-papo, não há tanto compromisso ao ponto de você dar satisfações do porquê fez.

– Talvez. – seus olhos caíram para as próprias mãos no colo. – Mas eu sinto que devo me explicar, assim como fiz com você agora. Não quero que ele pense que estou rejeitando-o.

O detetive não podia culpá-lo por isso. Presumiu que seu parceiro estivesse na fase de apego, aquela onde seu coração se prende à pessoa e deseja, na maioria das vezes, estar ao lado dela a fim de fazer o relacionamento funcionar. E mesmo que Yoongi não pudesse estar com ele nesse momento, sua cabeça devia estar nele a maior parte do tempo.

Jungkook não era tão diferente dele. Sua vida amorosa estava incerta e completamente ameaçada, de um modo igualmente parecido. Ele não tinha realmente a certeza de como seria o seu futuro com Jimin. E quanto mais ele pensava nisso, mais embaraçosa sua vida ficava.

– Posso te fazer uma pergunta? – Jungkook quebrou o silêncio e disparou. Yoongi fez que sim. – Se você gosta do Taehyung ao ponto de querer dar satisfações a ele, então por que dormiu com o Seokmin?

Yoongi vacilou com a intensidade dele, Jungkook não tinha sido nada sutil.

– Com o Seokmin é só uma questão de tesão, nada mais. Ele consegue me tranquilizar nessas horas e você sabe como. – felizmente, ninguém pareceu ter ouvido aquilo além de Jungkook, nem mesmo uma enfermeira que havia passado perto da porta. – Agora é a minha vez de te fazer uma pergunta.

Jungkook apertou as sobrancelhas, aquilo estava parecendo mais uma batalha de perguntas. Seus grandes olhos pretos estavam de repente atentos, do modo como ficavam apenas quando ele estava muito atento na conversa.

– Quando chegamos no Canadá, você passou a primeira noite fora e no dia seguinte disse que tinha dormido com uma mulher. – Yoongi estreitou os olhos quando começou a falar. – Não foi com uma mulher que você transou, não é?

– Isso importa?

– Quero saber se mentiu para mim. – Jungkook levantou as sobrancelhas com aquilo. – Eu não quero mais mentiras entre nós, essa conversa é justamente para isso.

Jungkook levou alguns segundos para encontrar as palavras, e quando as localizou, disse:

– Sim, era um cara. – Yoongi abriu um sorriso pela primeira vez durante toda conversa. – Ele me conquistou no início, mas eu não quis metê-lo em encrenca, por isso o afastei.

– Então você se apaixonou por ele?

– Não. – sua resposta foi como um sussurro sibilante. – Digamos que a minha relação com ele tenha sido parecida com a sua e o Seokmin.

– E... sente falta disso? – Yoongi sugeriu vagamente. – Do sexo.

Jungkook estremeceu um pouco intimamente. A reação por si mesmo não foi nada tranquilizador, muito pelo contrário. Ele não tinha parado para pensar nisso durante o seu período com Jimin, e nem mesmo as circunstâncias o permitia fazer.

Mas, parando para refletir, sua relação com Jimin estava para além de sexo. Eles se entendiam de um jeito diferente, os olhares eram intensos, os toques acolhedores, as palavras carinhosas, os beijos delicados, o desejo ardido, a tensão gostosa. Um dia, talvez, fosse chegar a hora, mas se a hora não chegasse, ele não se sentiria vazio, pois todas as sensações boas que um homem precisava sentir, Jimin o entregava.

– Eu sou alguém com desejos, sim, mas meus desejos não podem definir o que é bom ou ruim em um relacionamento. Sexo pode ser agradável, mas não é a única coisa boa que existe entre duas pessoas. – Jungkook foi direto.

Yoongi concordou com um fraco aceno, depois abaixou a cabeça. Ele não fez um pingo de esforço para esconder que tinha se lembrado de alguém, e seu parceiro sabia perfeitamente quem era.

Destarte, Jungkook e Yoongi tinham algo em comum: um ponto fraco. Se importar demais com alguém enquanto agentes dava aos seus inimigos uma fraqueza, com nome, endereço, rosto e idade. Esse era o perigo de gostar tanto de alguém em tais circunstâncias, pois o sentimento o enfraquecia.

– Senhor detetive? – o médico estava na porta com uma prancheta nas mãos. Ele entrou no quarto quando Jungkook o encarou. – Trouxe boas notícias sobre o seu estado.

– Estou liberado?

– Ainda não. – a reação de Jungkook não foi nada agradável. – Mas você não sofreu nenhuma lesão grave no músculo, o que significa que em algumas horas será liberado para casa.

– Ele vai poder trabalhar como antes, doutor? – Yoongi quis saber, levantando-se.

– Poderá, mas precisa ficar de repouso por alguns dias, pelo menos até cicatrizar o ferimento. – explicou calmamente, aproximando-se de Jungkook. – Deixe-me ver como está.

Ele levantou a manga da camisa e visualizou o corte costurado, seu toque era mais clínico do que gentil. Jungkook fez uma careta quando sentiu os dedos enluvados tocarem sua pele ao redor do ferimento, um pouco abaixo da fina costura. Então, o médico afastou sua mão e se endireitou.

– Bem, eu vou sugerir quatro dias de repouso, sem uso de armas ou esforço físico com os braços. Isso inclui exercícios físicos como levantamento de peso, boxe e entre outras coisas semelhantes. – aconselhou, recolhendo a prancheta de volta aos braços. – Eu vou voltar em alguns minutos para te avaliar de novo, é bom que descanse durante esse tempo.

– Ele vai. – Yoongi garantiu. – Obrigado, doutor.

O médico sorriu para eles e olhou para o seu relógio no pulso.

– Bem, eu preciso ir agora. Se estiver sentindo algum desconforto me chame através da recepção. Normalmente você vai sentir pequenos beliscões, mas nada muito grave. Se o que sentir for muito além de beliscões, então será necessário que chame um enfermeiro.

Jungkook não queria complicações para o seu estado, pensar na possibilidade de uma cirurgia fazia um gosto amargo subir à sua garganta. Ainda sentia dores, sim, mas queria acreditar que era apenas pelos pontos que levou. Yoongi, em momentos menos generosos, ficou olhando para Jungkook com uma preocupação melancólica.

O médico partiu em silêncio e fechou a porta. Yoongi estava imóvel, retesado, seu olhar havia escurecido brandamente. Jungkook bufou e lançou as pernas para o chão, Yoongi arregalou os olhos com aquilo e fez um gesto desesperado de pare.

– Onde você vai?

Jungkook olhou para ele como se ele estivesse louco.

– No banheiro. – o rosto de Yoongi ainda estava em perfeita perturbação. – Será que pelo menos eu posso urinar?

– Claro que pode. – naquele preciso momento, ele se endireitou. – Mas não faça esforço, nem pegue peso. Você ouviu o médico.

Jungkook sorriu para o canto.

– Meu pau vai ser a única coisa que vou segurar, e acredite, ele é grande, mas não é pesado. – brincou.

Yoongi não pôde esconder sua surpresa, ele pareceu assustadoramente pasmo, embora quisesse rir. Jungkook andou na direção do banheiro sem nenhuma de sua habitual gentileza e bateu a porta. Yoongi, ainda paralisado no mesmo lugar, rebateu:

– Eu vou pegar uma régua, você vai ver! – Jungkook não disse nada, apenas riu atrás da porta. – Homem que se gaba demais não deve ter nem três centímetros.

– Você quer uma prova? – ele devolveu, sua voz soava como um eco risível.

– Vai a merda, Jungkook.

Seu parceiro riu mais alto, aquilo soava completamente estúpido para dois caras adultos, mas eles estavam se divertindo, apesar das circunstâncias.

✮✮✮

O céu no inverno nunca tinha estado tão vazio e cinzento como naquela noite. Jimin estava sentado no chão da sala, de frente para a enorme janela, seus joelhos estavam erguidos ao nível do queixo, o suficiente para que ele pudesse abraçá-los. O cômodo às suas costas estava escuro, exceto pelo crepitante fogo na lareira, no qual fazia seus olhos refletirem um dourado oscilante no reflexo do vidro.

A meia-lua estava navegando entre as nuvens enquanto o vento assobiava em fortes ondas. Ele estava começando a pensar que o inverno não iria demorar para ir embora, a estação estava deixando seus últimos rastros em Vancouver. A quanto tempo estava ali sentado? Ele não soube responder a si mesmo. Supôs que a resposta não faria nenhuma diferença, afinal, tudo o que sabia é que era tarde e a noite estava se desmanchando cada vez mais.

Jimin fechou seus olhos e suspirou. Ele podia ouvir o eco da cidade pouco movimentada, como também o ruído do fogo derretendo a lenha muito próximo. Seu pensamento trouxe a imagem de Jungkook, podia imaginá-lo deitado na sua cama, o abraçando, bem como o último beijo que recebeu antes de sua partida. O medo tinha diminuído gradativamente, embora ele ainda o sentisse presente em seu peito.

Dois dias se passaram após a viagem deles para a Espanha, mas o garoto tinha a impressão de que eram dois longos anos. A incerteza do que estava acontecendo o corroía por dentro, sobretudo a falta de segurança em relação a Jungkook. Jimin não sabia se ele estava ferido, doente ou apreensivo com tudo isso. Esse pensamento o fez, instintivamente, encolher seus braços e pernas enquanto mantinha os olhos bem fechados.

– Jimin? – a voz que o chamou era suave e elegante.

O garoto ergueu os olhos e encontrou Seokjin parado no último degrau da escadaria. Ele o olhava com uma preocupação sutil no rosto, suas roupas estavam um pouco amassadas, o que indicava que ele tinha ficado deitado por um tempo, mas sem dormir. Elas tinham uma aparência despojada e incomum, coisa que normalmente ele não usava nos dias de trabalho.

– Pensei que estivesse dormindo. – ele prosseguiu quando o garoto não disse nada. – O que faz acordado a essa hora?

– Não estou com sono, senhor. – explicou-se, percebendo que ele começou a se aproximar lentamente.

O menino continuou olhando para ele com algum tipo de desconforto, aparentemente. Ele desejou que as luzes estivessem acesas naquele momento, apesar de Seokjin frequentemente demonstrar que não queria lhe fazer nenhum mal. O homem chegou mais perto e sentou-se ao seu lado. Jimin travou subitamente.

O cabelo de Seokjin era um emaranhado desordenado que tinha sido apressadamente arrumado e seus olhos estavam levemente vermelhos, talvez pelo sono, observou Jimin. Havia uma característica peculiar na expressão de Seokjin, como se ele estivesse escondendo algo, mas ela se foi muito antes de Jimin ter certeza se tinha estado mesmo lá.

– Você se importa se eu ficar aqui um pouco com você? Também não consigo dormir. – o homem disse, baixinho, mas o silêncio do cômodo transformou seu tom em um ruído meramente alto.

– Não, senhor. – ele não foi totalmente honesto.

O menino abraçou ainda mais forte os seus joelhos e voltou a olhar para além da janela, sentindo-se instantaneamente receoso pela aproximação de Seokjin. Ele se flagrou observando o jardim abaixo, guardas reforçando os portões enquanto usavam vestimentas que fechavam as costas e pulsos, formando um escudo protetor sobre suas roupas. Jimin quis saber o que aquilo significava, mas ao mesmo tempo teve medo da resposta.

– Eles não dormem? – Jimin tinha perguntado, finalmente. – Por que o senhor pediu para que reforçasse a segurança?

Eventualmente, Seokjin teria resistido àquele questionamento por achar difícil de encarar, mas ele não fez qualquer menção de ignorar as dúvidas dele, muito pelo contrário, sua expressão estava suave e propícia a respondê-lo.

– Achamos melhor fortalecer o controle de segurança esta noite. – Jimin notou que a voz dele estava quase irregular naquelas palavras. – Nós temos vítimas aqui dentro, é uma forma de cuidar da segurança de vocês.

– Por que só agora?

– Foi uma decisão que surgiu nesse momento.

Seokjin não quis dar mais detalhes, pois aquilo podia gerar um crescente pânico em Jimin caso ele descobrisse que Jungkook havia solicitado a fortificação no prédio, tanto com os guardas quanto o centro de proteção. Ele ficou momentaneamente feliz pela pouca luz na sala, assim o menino não poderia ver seu rosto queimando pela mentira.

– Trago boas notícias. – o homem anunciou entre um suspiro sorridente. Ele costumava ser muito cuidadoso ao dar notícias, Jimin pensou. – A missão foi concluída e amanhã cedo o Jungkook vai estar de volta. Ele me disse que tiveram sucesso.

– Isso quer dizer que...

– As meninas foram resgatadas e a Jennie está presa. Eles fizeram um ótimo trabalho.

Jimin abriu um sorriso enorme, surpreso, talvez, mas muito contente. Havia uma centena de coisas que ele queria dizer ou perguntar, mas naquele momento ele somente olhou para além da janela, como se a ideia de imaginá-lo chegando por aqueles portões fosse reconfortante o bastante. Seus olhos estavam meio iluminados pelo reflexo dourado da lareira no vidro, dando-lhe um brilho angelical.

– Posso sentir o quanto está feliz com essa notícia. – Seokjin comentou e Jimin rolou os olhos na direção dele. – Jungkook também estaria se o visse sorrindo desse jeito.

– Isso que o senhor está fazendo não é proibido? Compartilhar esse tipo de informação com uma vítima. – comentou baixinho enquanto puxava seu cabelo para fora dos olhos.

– Eu fiz muitas coisas consideradas proibidas, Jimin, e todas elas tomaram uma proporção maior. – ele tinha deixado de lado seu espírito profissional e agora falava como alguém que também possuía problemas. – Sofro consequências por colocar meu senso comum acima do código de ética, mas às vezes isso chega a ser necessário.

– O senhor sempre foi assim? – o garoto quis saber, olhando-o incerto. – Digo, sobre sempre colocar o senso comum acima da ética.

– Eu? – ele riu de forma adorável e balançou a cabeça para os lados. – Eu sempre fui aquele que nunca deixou as emoções pesarem na hora do julgamento. Mas de uns tempos para cá isso mudou um pouco.

– O senhor não parece mais o mesmo.

Naquele momento, Seokjin percebeu que Jimin não usava a sua corrente de âncora no pescoço, mas pescou um vislumbre do metal na mão dele. O menino segurava o objeto entre a concha de suas mãos, como se estivesse, de algum modo, com medo de alguém roubá-lo. Ali, ele viu os sentimentos do garoto estampados em seus olhos e em seu gesto.

– Eu devo isso a você e ao Jungkook. – disse, sem nenhuma hesitação na voz. Jimin acabou apertando instintivamente a corrente enquanto olhava de forma melancólica para ela, como se pudesse ver o rosto de Jungkook no aço. – O relacionamento de vocês veio para quebrar tudo o que construí. É puro, orgânico e sincero. Eu admiro demais o cuidado que ele tem com você.

– Nós não temos mais nada, senhor. – suas palavras foram duras, mas seu desabafo ecoou de forma triste. – O que aconteceu entre nós dois foi um erro.

O menino sabia que isso não o faria se sentir melhor, mas precisava convencê-lo de que ele e Jungkook não teriam mais nada. Seokjin não era a melhor pessoa para ouvir suas dores e tampouco aquele que deveria saber sobre seu relacionamento, seja amoroso ou amigável.

– Está me dizendo que você não quer mais ficar com ele? – Jimin olhou para as próprias mãos, a expressão em seu rosto expunha sua dor.

– Não posso. – o peso das palavras era tão grande em seu peito quanto uma barra de ferro. – Eu não quero arruinar a carreira dele. O Jungkook fez muito por mim e eu sou grato a ele, mas, como o senhor disse, as coisas tomam uma proporção maior e eu não quero esperar para ver.

– Jimin, as consequências de seus atos podem ter sido drásticas, mas isso não significa que tenha sido um erro. – o menino sentiu uma torrente de ansiedade súbita, o que o levou a olhar para outra direção. – Eu não sou a melhor pessoa para lhe dirigir esse tipo de conselho, mas acredito que vocês combinem como um casal. Um futuro casal, talvez.

– O diretor-chefe do FBI não deveria dar esse tipo de conselho para uma vítima e seu agente. – ele fez um comentário, não era necessariamente um ataque, mas uma observação sutil. – O inspetor Jared te mataria se ouvisse isso.

– Ele já pretendia fazer isso muito antes da minha aprovação. – brincou. – Creio que o Jared também esteja disposto a esquecer esse problema se o Jungkook fizer um ótimo trabalho. E, bem, ele vem fazendo isso tem um bom tempo. Hoje foi a prova viva de que o Jungkook é um agente para além do nosso tempo.

– De qualquer forma não apaga o que fizemos. Foi errado. – ele assegurou, sua voz elevando-se. – O Jungkook vai pagar por isso e eu não vou poder fazer nada. Ele quebrou o protocolo, senhor, e a culpa é toda minha.

– Está convencido disso? – o menino finalmente o encarou, inseguro. – Deixe-me te mostrar quantas regras do protocolo eu quebrei e mesmo assim ainda estou aqui. Vou pagar por isso, sim, mas porque estou no fim da minha carreira e não por cometer erros que todo agente comete em sua fase de atuação.

Aquele tipo de conversa não era o tipo de conteúdo que inspirava confiança. Jimin queria ter uma noção imediata de até onde ele queria chegar, mas não estava percebendo nenhum sentido na sua fala. O que ele queria, afinal? Insinuar que todos os erros dentro da corporação não são levados a sério e que as suas falhas se igualam com as de Jungkook? Jimin refletiu, sua cabeça girando.

– Eu acho que não devíamos falar sobre isso aqui, senhor. As pessoas podem ouvir atrás das paredes como sempre fazem. – o garoto tentou justificar com a voz baixa em meio ao silêncio. Seokjin compreendeu com um aceno e olhou para além da janela.

Jimin podia estar enganado, mas algo na postura de Seokjin o dizia que ele estava tentando ser seu amigo, ou talvez, no pior das hipóteses, alguém interessado em assuntos menos comuns a respeito de sua pessoa. Havia alguma coisa terrível nessa ideia que o fez sentir calafrios pelos braços, abaixo do suéter. Talvez fosse paranoia de sua cabeça, talvez não.

– Onde está o seu caderno de desenhos? – Seokjin perguntou, o que pareceu para Jimin uma tentativa de puxar assunto. – Você não se desgruda dele.

O menino suspirou diante de uma lasca de lembrança e passou os braços em volta do corpo, seu coração batia muito forte.

– Eu joguei fora. Na lareira. – seus olhinhos estavam com um brilho translúcido à penumbra.

– Não estava mais gostando de seus desenhos?

– Na verdade eles me machucavam. – assumiu entre um suspiro e outro. Seokjin o encarou com uma expressão preocupada, porém atenciosa. – Eu desenhava aqueles que amo, toda vez que abria as páginas eu via o rosto deles e começava a chorar. Mas não era só isso. Eu também desenhava aqueles que odeio, então além de imaginar minha felicidade, eu também imaginava minha dor em forma de pessoa.

Seokjin visou o fogo na lareira, vendo a letargia da brasa sobreposto àquelas páginas. Jimin tinha queimado sua fantasia e com ela todas as recordações nostálgicas e dolorosas, ele decidiu apagar seu sofrimento materializado, mesmo que o tormento real não estivesse em páginas brancas.

Uma ideia pareceu surgir na cabeça de Seokjin, que levantou-se de repente e foi até uma mesinha no canto do cômodo. Jimin, com os olhos um pouco ardendo, ficou subitamente confuso com aquilo e recuou um pouquinho, assustado pela forma como ele se ergueu para longe. Virando sua cabeça na mesma direção que ele seguiu, o menino pensou ter visto um aparelho portátil nas mãos dele. Era um notebook.

Concluiu Jimin que, apesar de inesperado, aquilo soava como algo potencialmente estranho. Ele sentiu o chão debaixo dele ranger conforme Seokjin retornava. Por um instante, Jimin não se moveu, nem mesmo quando o viu sentar-se ao seu lado. O menino parecia tentar deliberadamente não mirar no notebook de forma ansiosa.

– O que está fazendo, senhor? – finalmente perguntou, sentindo como se tivesse falado algo particularmente estúpido. Seokjin sorriu.

– Eu quero te mostrar uma coisa. – a voz dele sustentava um tom cauteloso que, para Jimin, significava a aproximação de um assunto sobre o qual ele não fazia ideia. – Sei que é proibido mostrar coisas do mundo externo enquanto estamos no meio de uma investigação, até porque você está dentro do programa de custódia protetora, mas eu estive tentando encontrar formas para te confortar enquanto o Jungkook estivesse fora.

– O Jungkook sabe disso? – ele se pegou perguntando apressadamente.

– Não, ele não sabe, mas suponho que não serei morto por causa disso.

Aquilo soava muito diferente para o garoto, especificamente o fato de ele estar se dedicando em dobro para deixá-lo confortável. Jimin desejou lhe dizer alguma coisa, talvez um obrigado, mas ainda sentia medo e raramente conseguia deixar esse sentimento abaixo dos outros.

O rosto do menino estava imóvel, mas por dentro ele estivera sentindo algumas pontadas no estômago. O pingente em sua palma estava quente pelo calor de sua pele, ele o recolocou no próprio pescoço com muita delicadeza. Seokjin abriu o aparelho e acendeu a tela, Jimin sentiu-se um idiota por pensar coisas ruins a respeito daquele gesto, como se estivesse prestes a cair dentro de um novo pesadelo.

– O que o senhor quer me mostrar? – perguntou baixinho enquanto lançava um olhar arrematado por cílios longos na direção dele.

– O seu amigo, Taehyung, fez uma carta para você em forma de vídeo e postou nas redes sociais. Se não estou enganado, hoje vocês fazem aniversário de amizade. – Jimin arregalou os olhos, sua ansiedade tinha passado de geral para específica. – Ele disse coisas lindas sobre você, Jimin, por isso gostaria que assistisse.

O garoto paralisou completamente, olhos arregalados e imóveis. Seus lábios articularam o nome de seu amigo, subitamente surpreso, mas não houve som no seu gesto. Taehyung tinha se lembrado do nono aniversário de amizade deles, tinha lhe feito uma surpresa mesmo que não soubesse onde ele de fato estava. Seus olhos arderam no fundo, ele pensou que fosse por causa das pálpebras paradas, mas percebeu que era por conta das lágrimas não derramadas.

– Ele ainda se lembra de mim? – sua voz tinha agora uma entonação arrasada.

– Ele nunca te esqueceu, Jimin, e nem vai.

O menino engoliu uma densa camada de saliva e piscou quando o viu arrastar o notebook para onde ele estava sentado. Jimin girou a cabeça na direção da tela e deixou as lágrimas caírem quando viu o rosto de seu amigo sendo transmitido.

Taehyung continuava o mesmo, mas o garoto que estava na frente dele agora possuía longos cabelos pretos, piercings minúsculos nas orelhas e uma pequena tatuagem no antebraço. Ele estava dentro do que parecia ser o seu quarto, Jimin reconheceu a estante com livros de todas as coleções de Harry Potter e Bernard Cornwell, do qual Taehyung sempre fora um fã.

O vídeo estava pausado, refletindo seu estado de humor bem de leve. Ele parecia cansado – ou triste –, aquele tipo de cansaço profundo que apenas a saudade pode trazer. Taehyung amava ouvir música enquanto gravava vídeos, era um de seus hobbies favoritos, senão o favorito. Jimin podia imaginá-lo deitado em sua cama ao mesmo tempo que uma música de Maroon 5 tocava no fundo.

Suas lembranças tinham estado tão vívidas agora, como pinturas a óleo, e de algum modo elas o deixavam mais calmo. Sentia tanta saudade de seu amigo que nem mesmo as memoráveis ocasiões poderiam substituir esse sentimento. Seokjin inclinou-se para frente e apertou o play, foi a partir daí que Jimin desmanchou-se em lágrimas.

"Olá, meu nome é Taehyung, vocês devem saber. Como o próprio nome no título já diz, esse vídeo é uma carta minha para o meu ursinho, Jimin. Hoje nós completamos nove anos de amizade e já fazem quase dois anos que comemoramos o nosso último aniversário. Ele costumava me perguntar o que faríamos quando não tivéssemos mais ideias para as celebrações e eu sempre respondia que a minha melhor celebração seria estar com ele. Mas como podem ver, ele não está mais aqui comigo".

"Apesar de tudo, não consigo suportar a ideia de que ele se foi, de que horas antes de ele desaparecer nós estávamos escolhendo uma data para ir ao cinema. Não consigo suportar a ideia de que o destino o tirou de mim e o levou para bem longe. Talvez eu nunca descubra onde ele está agora, se está bem, o que comeu hoje... mas as lembranças que tenho do meu ursinho são eternas, e elas não podem ser arrancadas de mim. Nunca".

"Estou fazendo esse vídeo porque quero trazer memórias boas do Jimin, quero que todos conheçam aquele que salvou minha vida milhares de vezes. Para quem não sabe, eu perdi minha mãe muito cedo e meu pai nunca foi digno de ser chamado de pai, então morei na Holanda durante um tempo com a minha tia cascavel. Ela me detestava. Decidi vir embora e, por coincidência, acabei me tornando amigo do Jimin. Sim, ele virou amigo de um garoto de rua que não tinha casa e nem família. Ele não me olhou torto, não me xingou, nem sentiu nojo de mim, tudo o que ele fez foi me levar para casa e me dar comida. Eu cresci, como podem ver, e através da ajuda do Jimin consegui um lugar para morar. Ele me ensinou o significado de viver".

"Eu gostaria de saber onde você está agora e se está bem, talvez isso fizesse eu me sentir menos culpado. Quem dera eu pudesse voltar no tempo e entrar dentro de sua cabeça para ver o mundo como você fazia. Queria ler sua mente, entender suas dores, seus desejos, sua angústia... eu queria que você tivesse confiado em mim um pouco mais. Mas talvez se eu soubesse de todas essas coisas, você não seria tão especial quanto é agora. Minha mente sabe a diferença entre querer o que você não pode ter e querer o que você não deveria querer".

"Jimin, eu te amo. Meu coração diz que este é o maior sentimento que já tive por alguém. Penso todas as noites em como nossas vidas teriam sido diferentes se você não tivesse aceitado aquela maldita proposta. Consigo ouvir sua risada quando fecho os olhos, te enxergo na minha cabeça, te ouço reclamar dos meus milhões de encontros com outros caras. Sinto tanta falta disso".

"Ursinho, eu sei que você está me vendo agora de algum lugar. Eu sinto. Talvez seja apenas uma sensação de preenchimento pela culpa que carrego, mas talvez seja você me dizendo que eu não estou sozinho. Se lembra da nossa noite na casa da árvore? Você colocou a Pequena Sereia para assistirmos e então acabou cochilando. Você não sabe, mas eu estive acordado a noite inteira para ter certeza que você não acordaria assustado, porque ouvi uma vez que você tinha medo de altura".

"A verdade é que sinto falta disso, falta das suas broncas, do seu abraço, de suas implicâncias com minhas piadas... Não te culpo se quiser me xingar por te abandonar nessas horas, mas não esqueça que eu nunca te esqueci e nem vou. Sonho com a gente todas as noites e espero um dia acordar e acreditar que não é mais um sonho. Mas enquanto eu puder sonhar, sonharei com você eternamente".

"Os dias ficam mais frios sem você, mas eu estou tentando seguir em frente, apesar de não saber exatamente o que estou fazendo comigo mesmo. Ah, como seus conselhos me fazem falta. Às vezes penso que seria melhor eu estar no seu lugar, sabia? Seria melhor te entregar toda felicidade do mundo e tomar a sua dor para mim. Sim, se eu fosse o autor de nossas vidas, teria mudado o rumo dessa realidade imbecil. Mas não sou capaz disso e nunca serei".

"Bem, nosso nono aniversário infelizmente vai ser comemorado dessa forma, espero que não tenha se esquecido desse dia. Espero que, assim como eu, você esteja pensando em mim e nas nossas brincadeiras. Nós somos um. Você e eu, sempre".

"Jimin, onde quer que você esteja agora, aguente firme. Não se esqueça que o mar, por mais profundo que seja, ele tem um limite e uma hora você chega à superfície. E quando isso acontecer, eu vou estar aqui em cima para te pegar. Nem mesmo a Pequena Sereia permaneceu tanto tempo nas profundezas do oceano, ela lutou para chegar na superfície e eu sei que você consegue também. Meu pequeno Ariel. Volte para mim".

Com aquilo, Taehyung encerrou o vídeo, prestes a soluçar com a intensidade do choro que começou a aumentar com o decorrer do vídeo. Jimin estava devastado, chorando em silêncio de forma profunda. Ali, ele teve consciência do tamanho da saudade que sentia de seu melhor amigo, do quanto o amava e de como o tempo nunca seria capaz de apagar um sentimento forte.

Jimin achou que tinha perdido a capacidade de se lembrar do rosto dele quando foi levado, mas agora as feições de Taehyung estavam vívidas em sua memória, pinceladas com o estilo atual dele. Não era exatamente o mesmo estilo que ele tinha visto um ano atrás, seu cabelo não era longo na altura das bochechas e a tatuagem não existia, mas agora tudo parecia diferente e Jimin sentiu isso no seu íntimo.

Mais lágrimas escoou de seus olhos quando ele os apertou e os cobriu com as mãos, soluçando entre suas pequenas palmas. Seokjin deslizou uma mão a ele e tocou ao longo de suas costas com gentileza, pôde sentir o dorso dele tremendo em um tremor doloroso e terrível. O homem abaixou a tela do notebook para Jimin não se emocionar mais e olhou para ele, ainda o vendo com as mãos apertadas juntas contra a face.

– Ele não te esqueceu, Jimin. Era disso que você tinha medo, de ele te esquecer? – Seokjin perguntou em um fiapo de voz, tentando ser cauteloso ao máximo.

Sem palavras, o menino se lançou nos braços de Seokjin e de repente o abraçou. Uma peculiar sensação de paz assaltou o homem, que retribuiu seu gesto após um momento de confusão. Jimin não costumava fazer aquilo com ninguém além de Jungkook, o que certamente mostrava que agora havia uma exceção sobre essa delimitação.

Seu toque era um agradecimento desesperado, um apelo de sua retribuição, uma confiança que tinha sido varrida suplicantemente para a escuridão e que agora ele estava recolocando-a em prática de novo. Jimin afastou-se e o encarou nos olhos, suas bochechas estavam vermelhas no alto e grande parte de seu rosto havia sido molhada pela corrente de lágrimas.

– Obrigado, senhor. – agradeceu baixinho. – Obrigado por me mostrar o Taehyung. Ele era tudo o que eu precisava agora.

Seokjin abaixou um pouco as pálpebras e olhou para o menino através dos cílios. Algo em Jimin parecia brilhar tão forte quanto um raio de luz solar, e embora não pudesse ler os olhos dele, seu agradecimento parecia honesto.

– Eu percebi que você precisava de um bom motivo para ter esperança. – o homem disse, sendo gentil e amável com as palavras. – Então, acredito que depois dessa mensagem do seu melhor amigo, talvez a sua esperança floresça. Ele ainda acredita que você está vivo depois de quase um ano, Jimin. Não existe fidelidade maior que esta.

O garoto, que não tinha mostrado até agora nenhuma real reação além de choro, finalmente sorriu. Ele estava olhando para Seokjin, furtivamente impressionado com a calma em sua expressão. Normalmente, Seokjin podia estar rodeado por cadáveres, uma casa em chamas, rifles, traidores, e mesmo assim sua calma prevaleceria.

– Quero te pedir uma coisa, Jimin. – ele falou e Jimin percebeu que o seu tom de voz havia saído um pouquinho diferente, talvez mais sério. – Não conte para ninguém sobre o que te mostrei. Eu estaria violando outra norma do protocolo, mesmo que isso não faça tanta diferença na minha carreira. Taehyung está dentro do programa de proteção à testemunha, se alguém ver que eu expus o rosto dele para você, provavelmente serei punido com antecedência.

– Ninguém vai saber, senhor. Eu prometo. – ele varreu as lágrimas para longe e limpou as mãos na roupa com pressa. – Obrigado por ter feito isso por mim, eu nem sei como te agradecer.

– Não me agradeça por agir com empatia. – seu sorriso tornou-se maior quando o menino reforçou seu agradecimento em um murmúrio. – Temos um acordo então?

Jimin acenou com a cabeça. Sua mente tinha fugido completamente do horror da realidade que estava vivendo, era como se sua dor emocional tivesse ido embora em um passe de mágica, apesar de ele saber que mais tarde ela voltaria para atormentá-lo.

O menino olhou rapidamente para a janela na sua frente, onde lhe mostrou um reflexo melancólico seu, bochechas molhadas e cabelo bagunçado. Seu estômago doeu como se ele tivesse engolido pequenas facas quando imaginou Taehyung o encontrando dessa forma. Não que ele se importasse com sua aparência agora, mas ela tinha estado disforme nos últimos meses.

Através do vidro transparente, o menino viu Seokjin levantando-se e seguindo para uma escrivaninha perto do aquário. Seus longos dedos buscaram por algo no interior da gaveta, e quando o achou, Jimin percebeu que tinha a aparência de um livro. O homem retornou com pegadas lentas e parou assim que alcançou o garoto, estendendo para ele o que Jimin identificou ser, com um pouco mais de clareza, um caderno de desenhos.

– Tome. – Seokjin ofereceu com gentileza e o menino pegou o caderno de suas mãos com relutância, olhando-o com um pouco de descrença. – Você queimou seu caderno, mas eu tenho este guardado. Use. Faça o que você mais sabe fazer: desenhar. Suas pinturas são lindas demais para serem queimadas.

Jimin estava incrédulo demais para dizer sequer um obrigado, nem mesmo as palavras mais simples que ele havia pensado em dizer foram formuladas. Sua boca balbuciou um fraco ruído evasivo, que Seokjin sabia que significava as primeiras letras de um agradecimento.

– Vá se deitar, Jimin. Descanse um pouco, durma o tempo que precisar. – ele prosseguiu, sua postura era de quem também estava prestes a subir para o quarto. – Amanhã quando acordar, o Jungkook já vai estar aqui para te ver.

Jimin tinha ficado tão surpreso com aquela atitude de Seokjin que não podia acreditar que estava diante do diretor-chefe do FBI, mas de um homem com princípios inabaláveis e sentimentos empáticos. Aquele era mesmo o homem por quem Jungkook despejou sua desconfiança a princípio? Sim, talvez porque este homem de agora estivesse escondido sob a face de um dogmático.

E Jimin não o julgava, afinal, até aquele momento ele também não tinha enxergado um traço positivo em Seokjin por puro medo. No entanto, agora seus olhos viram uma generosidade absurda, algo que antes sua mente negava-se a considerar.

O menino ergueu-se do chão enquanto abraçava o caderno no peito, gratidão e ansiedade combatiam em sua expressão. A vermelhidão nas suas bochechas estava destacando-se como manchas de sangue. Ele teve dificuldade em manter o contato visual por muito tempo. Seokjin sorriu para ele, um segundo antes de vê-lo correr escada acima e desaparecer na escuridão dos confins.

Ele tinha matado a saudade de Taehyung remotamente e agora seria a vez de reencontrar Jungkook.

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