"É tão difícil dizer não. Quando se está dançando com o diabo" — Dancing With The Devil (Demi Lovato).
Os escrúpulos já tinham descido até os confins do inferno e lá permaneceram até a última pétala das rosas vermelhas se decompor em tons de cinza. Os desejos reuniam-se em cúpulas finas e translúcidas de vidro que rachavam a cada segundo que ela respirava pesadamente. As racionalidades ficavam penduradas em forcas para serem admiradas à distância. O cenário de sua mente compunha esses avisos tão perversos e cruéis que firmavam o desfiar da linha de sua vida.
Condenava-se pela vontade irresistível de tomar o líquido vermelho em suas mãos, o enredo consistia em gotas salgadas que não cessavam de seus olhos, manchando com brilho as bochechas rosadas e nublando a visão dos olhos cor de mel.
Em seu peito, instalaram-se moinhos de vento que rodopiavam incessantemente em meio a tempestade de sua alma. Nunca houve o anseio de ver o amanhã florescer em raios amarelos e laranjas, o miocárdio tinha sugado para si todas as cores de cada árvore, céu e flores, ficando totalmente aglutinado em sentimentos sem cor.
O mal subia-lhe a garganta provocando ânsia, o tortuoso trêmulo das mãos ninava freneticamente o álcool, o pavor permitia escorrer lágrimas de suor em sua curta testa, o sopro da vida era sugado a cada milésimo de segundo de seu magérrimo e pequenino corpo.
Os dias eram sempre nublados desde a primeira vez em que abriu os olhos e chorou anunciando ao mundo sua chegada. A ira da tempestade do dia de seu nascimento informava que algo estava errado. A sua existência tinha gerado uma discussão celestial que quase fez mais um anjo cair.
Compadecia-se com amargura na infância por carregar consigo a dor, o sofrimento e o falecimento do parto. Mesmo com o Sol preponderante lá fora em certos dias, nunca houve luz em sua vida — pelo menos era isso que pensava. O verão vinha gélido e no inverno era torturante respirar.
Não podia permitir que nada invadisse sua carne sem sentir dor, ar ou toque, ensurdecendo a maré de conforto que um dia sonhou sentir. Já não havia o mais limpo dos oxigênios, era obrigada a inalar com a putrefação dos pulmões.
Celine pensava constantemente que se a morte fosse o inimigo, a vida também não era santa, a culpada pela existência do fim um dia viria cobrar o dom que lhe deu o começo. E, de certa forma, não estava totalmente equivocada.
As mais melancólicas notas de um piano branco proporcionaram a sua existência, as declamadas na Terra pelo genitor e as deleitadas no Céu pelo anjo Miguel.
A infância conseguiu destruir a pequena planta que começava a nascer, a compaixão, permitindo-lhe uma vida repleta de vazios existenciais, perversas culpas e lamentações infindáveis que ecoavam dentro de si como sussurros melancólicos. Não houve um dia em que se permitisse sorrir sem exigir o sobrenatural dos músculos da face e incorporar a mais picareta e piegas personagem.
Encontrou-se na música, de forma um tanto hipócrita, uma vez que negava a descendência de seu último nome e a profissão de tal homem que condenou sua mãe ao pior das guerras perdidas: o estupro.
Dançava como se chorasse sem lágrimas, expondo ao público o abismo de seu mais íntimo sentimento: o vazio.
Não poderia saber que no fundo a genitora desejou seu nascimento mais do que tudo no mundo. Ao parir por horas e sentindo os ossos quebrarem e o sangue ferver, a mulher invadida pelo mal dos homens rogava a Deus que a levasse, mas deixasse a criança viver. Pelas mãos leves e fortes do arcanjo guerreiro Dele, a música mais fúnebre foi tocada, permitindo a vida. O pedido milagroso foi atendido pelos céus, por Miguel, o arcanjo do Senhor.
Só que quando o sopro da vida lhe fosse dado, a pequena prole estaria amaldiçoada pela ansiedade e depressão e carregaria elas consigo por toda a vida, as piores das dores da alma.
Furioso pelo feito de seu guardião, o ser celestial que criou nosso mundo quase fez Miguel cair naquela noite. Em seu quase indefensável argumento, o anjo falou que fez o gesto em um ato de coragem por desejar que o mal não desse um final tão terrível à mulher que caiu nas garras de um pianista cruel.
Com fúria, os céus trovejaram, os raios iluminavam com terror a noite fria, a chuva começava a cair com ódio, balançando os galhos das árvores que batiam ferozmente na janela do hospital. As vozes grossas de Deus saiam do céu e caiam em forma de tempestade. Indo contra a vontade do Senhor, ela nasceu.
Saindo em um tom de roxo que beirava ao preto, o bebê estava morto, mas por meio das notas intensas e ininterruptas de Miguel, o dom da vida caiu do alto e desceu até a terra dos pecadores, entrando na boca semi-aberta do bebê.
E, assim, ao ver a mais amada filha gerada pelo pecado berrar pela primeira vez, a mãe fechou os olhos satisfeita que Deus não tinha permitido aquele mal. Após chegar aos céus, descobriu que quem lhe atendeu foi o arcanjo, e que o todo poderoso, por outro lado, havia jogado uma praga em sua filha.
Desejou voltar no tempo, impedir o pedido e viver a vida eterna ao lado da criança, do que passar anos assistindo ao cisne negro morrer aos poucos. Esta mesma ave andou entre o firmamento de não saber onde pisar sem se machucar, caminhou duramente sentindo os pés arderem e pôde sentir a sensação de tortura diminuir quando dançou pela primeira vez.
Insatisfeito de ver uma obra de seu magnânimo plano sair pela culatra, Miguel ousou fazer um acordo com seu antigo e caído irmão.
Invocou Lúcifer com um suplício terrível, e recebeu o irritado e maligno parente que apareceu diante de si, uma visão breve dos olhos negros e da face vermelho sangue. Sentindo o alívio tomar a ponta de seus dedos, percorrer o corpo e tocar suas penas brancas, o arcanjo sorriu para o demônio.
Lúcifer exigiu de imediato entender a inusitada ocasião, já que não podia colocar os pés no Éden, precisou reunir todas as forças para aparecer sutilmente na frente de Miguel. Como um ar que evapora constantemente e depois retorna a sua origem, a imagem do diabo era quase translúcida para o seu irmão não-caído. O anjo sentia culpa e lamentava o tal feito, explicou em detalhes seu ato de insanidade e revelou como Deus se enfureceu.
O capeta riu na cara de Miguel, já que este quase seguiu o mesmo caminho dele devido a uma ação tão fula. Mesmo se divertindo de tal trama peculiar, o diabo ficou confuso.
— Afinal, o que queres que o Rei do Inferno faça em relação a ação desmedida de um simples arcanjo? — Foi, então, que as asas se encolheram, os ombros diminuíram, o olhar foi para os pés, mirando o chão brilhante e branco dos céus, que Miguel falou:
— Não suportarei a eternidade com a dor que instalei nessa alma. Não aguentarei conviver com meu ato que julgava ser o certo. — Ele voltou a encarar o irmão com os olhos brilhantes e verdes.
— Peço-te, te suplico, te imploro e te rogo que resgate esse ser do mais pesado e terrível infortúnio, dando-lhe o sopro da morte. Já que nosso Pai nega o meu pedido, minha única alternativa foi te procurar, esperando como um louco a sua misericórdia.
Lúcifer ficou incrédulo com tal súplica, pensou por alguns segundos, mas não entendia em que ponto a alma seria libertada. Com a morte, seu irmão julgava que a criança iria para o purgatório e talvez até para os céus?
Miguel desejava que o diabo ousasse interferir ainda mais nos planos celestes? Que encriptasse as mensagens divinas e invadisse mais ainda os desejos de seu Pai? Se aquela criança não deveria nem viver, por que logo ele seria o responsável por planejar o falecimento e, assim, realizar a vontade ou o desgosto de Deus com o retorno da alma amaldiçoada?
— Permito lhe conceder o pedido se... —os olhos de Miguel tremiam sem parar ao encarar a face monstruosa do irmão — somente se eu levar a alma comigo. O perdão de nosso Pai tira-me por toda a eternidade milhões de pecadores que merecem ser punidos.
— Ela não tens culpa! Não pecou! É ingênua! Respirou a poucos segundos e, mesmo se vivesse alguns anos, ainda é digna de ser recebida no purgatório assim como os demais! — Berrou o arcanjo.
— Ela será digna somente se conseguir, antes dos 22 anos, encontrar as duas virtudes humanas mais queridas por nosso Pai. Caso não, a alma descerá para o inferno de imediato.
As asas brancas estavam arrepiadas até o último pelo fino das penas. Miguel não sabia o que dizer, odiaria ver a alma viver por muito tempo, mais do que 22 anos, com o mal da depressão instaurado em sua mente para sempre e com a terrível fragilidade da pele, sem poder presenciar a vida como de fato ela é. Tudo isso por conta de sua ambição pecadora ao tentar ser Deus. Suspirando, Miguel cedeu:
— Pois que assim seja! Quais seriam essas virtudes?
O diabo sorriu maliciosamente quando percebeu que o tolo irmão havia caído em seu jogo, não imaginando que, assim como o de Miguel, seu intocado plano iria arruinar no instante que fosse posto em prática por ele mesmo.
— O amor e a fé — os olhos de Miguel arregalaram.
— Como pode uma alma que o próprio Pai odeia a existência na Terra ter fé?! Como pode um ser que nunca sentiu prazer ou felicidade na vida encontrar o amor?!
— A buscarei quando completar 22 anos e ela cairá comigo. Será uma criança caída na vida adulta. — Então, Lúcifer desapareceu.
Celine peregrinou como uma coitada durante todos os segundos de sua vida até os 22 anos. Até que a tempestade mais perversa começasse dentro de si e fora, até que ela sucumbisse aos mais mortais vícios e não morresse, sairia daquele plano apenas pelas mãos do próprio capeta.
Ela foi vivendo até segurar a taça de vinho na mão sentindo que algo terrível a atacaria a qualquer momento e, ainda por cima, sairia de seu próprio peito e olhos. Sentindo os escrúpulos no inferno, os desejos presos em cúpulas e as racionalidades enforcadas, a jovem tremia.
Gritando pela injustiça de sua existência, Celine viu um vulto preto através da janela se mover em meio à tempestade. Não entendia a maldição que assolava sua alma, pegava para si a culpa de tudo que havia causado desde que o primeiro som de sua vida foi proferido e o último suspiro de sua mãe foi dado.
Dentre todas as atrocidades cometidas por si em momentos corriqueiros de insanidade, não entendia ela que justo aquele sentimento que tanto ansiava em vida seria o seu salvador.
Entre todos os pecados cometidos em sua ínfima e humilde existência, o mais lastimo, sombrio e condenador de todos seria o menos esperado, o amor. Seria este que colocaria empecilhos nos planos de Lúcifer, enquanto Celine estivesse dançando com o diabo.
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