☕Capítulo III: Recepção Diabólica☕
"Vivaldi Variation
(Arr. for Piano from Concerto for Strings in G Minor, RV 156)".
Sabia que a paixão não era nenhum sentimento santo; que o desejo era uma ínfima parte de toda a luxúria e, principalmente, que se Deus criou o amor, o Diabo tinha inventado a inveja. Por isso, boas notícias tinham suas rotas devidamente calculadas para chegarem nos destinos, ouvidos, certos.
Apesar de ir contra todos os seus intensos medos de receber qualquer toque que fosse, mesmo tendo ganho vários ao longo da vida, Celine ansiava saber como era a textura da pele branca daquele bailarino. Só que tinha medo. Não somente isso, queria poder mergulhar em seus braços, desfrutar cada canto da boca daquele magro e alto homem. Ela continha-se, sempre.
O Sol fazia uma breve presença nos rostos das pessoas que andavam apressadas pela rua mais turística de Londres, aquela dentro do coração do bairro Westminster, com o Palácio de Buckingham logo ali. O vento era gélido no inverno, mas não importava a estação, a dançarina sempre se sentia exausta emocionalmente, como se respirar lhe custasse um esforço descomunal.
Os olhos pretos e perdidos, os cabelos negro, lisos e penteados, o corpo grande e magérrimo de seu frequente companheiro de café, faziam Celine esquecer a luta diária que era sobreviver a sua cabeça repleta de acusações; malícias e medos sufocantes.
Murilo Veronezi Souza* poderia ser resumido a uma única afirmação que a bailarina tinha ouvido e, depois de conhecê-lo, confirmado ser verídica: os brasileiros são mesmo lindos, sexys e engraçados. Não conseguia imaginar ele em outra nacionalidade e temia que fosse levado embora caso o visto de trabalho não fosse concedido.
Faziam somente dois meses que ficaram amigos, mas desde o dia que o viu na galeria de dança onde estudava, Celine sentiu uma atração imediata pelo homem de collant, meias e sapatilhas brancas. Nunca ousou confirmar aquilo para si mesma, negava veemente os pensamentos que surgiam.
A voz do rapaz era macia e calma; seu olhar acolhedor e quente; seu sorriso encantador e sedutor; seus lábios finos e sempre lubrificados, brilhantes. Naquela altura, desconfiava que Murilo fosse um anjo, não havia explicação lógica e realista para a paz e felicidade que exalavam dele — além da fácil amizade que fizeram.
Todas as quartas-feiras, o casal de amigos se reunia no café ali próximo da galeria de dança. Um ritual que começou depois que ambos se pegaram reclamando constantemente, nos intervalos, que estavam com sono após passar a noite decorando e estudando coreografias de ballet.
Precisavam manter um nível alto de performance se quisessem continuar a receber a bolsa de estudos na escola e companhia de dança mais antiga e completa do Reino Unido: a La Danse. Nem um semestre tinha se passado e Celine já sentia o peso da responsabilidade de estar atualizada e se inovando todos os dias.
Entendia a dificuldade da mãe em pagar sua estadia em uma das cidades mais caras que existem, e a mulher fazia aquilo sozinha com o emprego de médica, já que a bailarina somente estudava e não tinha renda nenhuma. Mas, com a amizade de Souza, tudo ficava mais leve. As conversas faziam a ruiva esquecer da pressão que tanto sentia.
Sentada de frente para o primeiro homem que despertou os desejos mais sombrios e tenebrosos de sua mente, a jovem o olhava tentando saber, por uma suposição muito irrealista, como era o toque da pele dele. Poderia, sim, senti-lo sem problemas na epiderme, entretanto, seu medo ultrapassava isso. Se o tocasse, imaginava que não teria mais volta e, assim, precisaria se entregar a uma paixão que criava raízes em seu peito.
Isso não impedia a dançarina de imaginar. Talvez a superfície dele fosse quente ou fria, macia ou áspera, ou até mesmo tudo isso junto e misturado em um embalo constante de calmaria e serenidade — as mesmas contraditórias características que tomavam a mulher assim que o via dançar.
Celine recusava-se com medo de sentir o toque de alguém desde sempre, nunca compreendeu o que era sentir alguém de forma autêntica e despretensiosa, tudo tinha que ser anunciado antes e feito com sutileza. Negava as surpresas da vida, impedindo a si mesma de viver como amiga do inesperado.
A bailarina temia o aproximar de qualquer um, fosse sua professora, seus amigos ou até mesmo Murilo, aquele que conversava com ela e transmitia uma sensação boa — algo que julgava não merecer. Para ela, o toque significava um passo a mais, várias pessoas já tinham sentido o dela, mas... era meticulosamente escolhidas.
Murilo estava ali a pouco tempo para Cel poder sentir o toque sem medos do que aquilo despertaria em seu coração. Além disso, a jovem sempre tinha uma voz irritante sussurrando em seu ouvido como as leves marcas em seu corpo, muito semelhantes a de uma queimadura, causavam repulsa em quem a olhava.
Só que aquele moreno nunca tinha a enxergado assim, não havia dado um olhar estranho para ela, apesar da mente da mulher gritar o contrário.
Reunindo as forças de seu âmago, retirando os cacos de vidros que repousavam sob seus pulmões — no lugar que talvez, ou nunca, esteve seu coração — Celine respirou fundo desejando que a notícia que daria não fizesse sua paixão platônica desfazer a amizade rápido como um raio.
Pessoas eram como areia, escorriam entre seus dedos finos e delicados.
Era mais do que comum os alunos da La Danse nutrir uma competitividade intensa entre si e, qualquer notícia de sucesso de um, pôr mais próximo e companheiro que alguém fosse, despertava a mais furiosa e contraditória das invejas que o mundo já viu. O diabo instigando o pecado no coração alheio.
Não era para menos: se alguém desponta, outro precisa cair. Quase uma lei da física. Era assim desde o inícios dos tempos, fosse os da academia de dança ou do mundo. Uma gravidade que depende de outra para existir.
— Preciso te dar uma notícia — ela disse, depositando para fora o início do que julgava ser o fim da amizade mais terna, sincera e fofa que conquistou nos últimos anos.
Celine não era rodeada de muitos amigos, por isso, os poucos que conseguia desejava agarrar com toda a força que ainda lhe restava no peito com medo de que a deixassem por qualquer coisa fula que fosse.
Assim, com medo da solidão que invadiu seu quarto durante a adolescência, tornou-se uma pessoa extremamente passiva e que aceitava, mesmo com pesar e raiva, o que viesse. De amizades falsas a colegas esnobes, Celine abraçava — não fisicamente. As poucas maçãs continham muitas podres em seu cesto de frutas, uma delas alimentou seu vício com a bebida.
Celine não sabia, ainda, se aquele garoto seria mais um alimento em decomposição ou algo lindo que acabou de brotar e permaneceria saudável ao ser regado. A ruiva não sabia, e nem poderia saber com tão pouco conhecimento dos últimos meses de amizade, que Murilo Veronezi Souza vinha de uma árvore que só dava seres fiéis*.
O moreno ergueu as sobrancelhas levemente enquanto tomava seu cappuccino quando a ouviu, depositou logo em seguida a xícara no pires, Celine jurou que tinham se passado mil anos desde que havia aberto a boca para começar a falar.
Não entregaria tudo de cara, tentaria ao máximo contar e ao mesmo tempo não, para ver como seria a reação do homem com expressões e feições brasileiras e francesas. Uma análise meticulosa dos elementos da horta antes de ingerir o fruto.
— O que? — Murilo enfim quebrou o silêncio.
Celine sorria brevemente toda vez que ouvia o sotaque do companheiro de cafés e danças, era curioso para a menina como ele puxava o "en" que proferia para um som mais parecido com um "in"; a forma como ele conseguia inserir a sonoridade muito extensa na letra "w" de "what", quando esta passava quase despercebida na boca do europeus. Brasileiros e seu jeito aportuguesado de falar qualquer palavra em inglês.
— Fui convidada para uma ocasião especial — ela falou.
Souza depositou os braços ao lado do corpo, totalmente relaxado. Mesmo com uma abertura que a expressão calma dele atribuía para a fala dela, Celine entendia que até agora não haviam motivos para o garoto se enfurecer, uma vez que não citou a La Danse em nenhum momento.
Como se estivesse respondendo e ao mesmo tempo pedindo para que a amiga continuasse a falar, Murilo ergueu ainda mais as sobrancelhas e movimentou um pouco o rosto para o lado.
Celine suspirou e desviou o olhar, teria que ser agora. O momento em que tudo ruiria ou o instante que Murilo se provaria seu amigo de fato. Iria pegar a maçã e girá-la, ver se estava pobre, com bichos ou... intacta. Não queria saber a resposta, por mais que uma delas pudesse despertar a verdadeira alegria em seu coração.
Demorou muito para continuar. Murilo resolveu cortar o silêncio novamente, sentindo-se torturado com aquele suspense. Seria uma notícia boa? Uma ruim? Até agora parecia somente uma... notícia, uma informação que colocava sua amiga contra a parede e ele não conseguia, por mais que tivesse vasculhado em sua mente, um motivo para tudo aquilo.
— Celine, o que foi? Está me preocupando...
A garota o olhou corando, seu fino e pequeno corpo parecia quase tremer, enquanto os cabelos ondulados e laranjas caiam em seus ombros estreitos. As mãos dela estavam juntas debaixo da mesa, tomando o máximo de cuidado para não esbarrar sem querer na madeira pintada de branco do móvel.
Os olhos grandes e queixo obtuso faziam o rosto dela parecer sempre melancólico e repleto de medos. Murilo sabia que sua amiga era tímida e que tinha pavor ao toque ou aproximações — já que ela teve uma infância e adolescência com Epidermólise Bolhosa.
Ele detestava que muitas vezes desejava abraçá-la para fazer o mundo dela não temer tanto e, mesmo assim, não podia por nada, temia machucá-la de alguma forma. Aproximaria-se caso a garota fizesse isso primeiro. Via como ela arregalava o olhar sempre que ele dava alguns passos mais próximos dela — a garota vivia com medo dos outros de forma instintiva.
— Eu... eu fui convocada pela La Danse para um evento na próxima semana — Celine, enfim, venceu seu medo.
Até porque a dançarina não tinha alternativas. Peter, um dos sócios da companhia, acertou os detalhes com ela e a informou que no dia seguinte iriam colocar cartazes informando o evento. A menina pensava que se Murilo fosse ficar sabendo, era melhor que fosse primeiro por ela. Se ficasse com inveja e irritado, que seja primeiro na frente dela e não pelas costas. Gostava de se torturar de certa forma, mas entendia que a verdade nua e crua era bem melhor do que uma ilusão que começa doce e depois tende para um gosto ácido na boca.
Pela surpresa de Celine, Murilo esboçou um sorriso de orelha a orelha e, no momento de exaltação, quase levou as mãos de supetão para os pulsos da amiga. Logo que ergueu os braços, viu a expressão da companheira se arregalar e ela até se inclinou um pouco para trás. O garoto se conteve, encostou novamente as costas no assento e, sorrindo calorosamente, falou:
— Que ótimo, Cel! Fico feliz por você! Qual evento vai ser? — o coração de Celine parou de martelar pelo pavor e começou pela surpresa e incredulidade do que ouvia.
— Está... feliz por mim?
— Mas é claro! Vai ser a sua primeira vez em um evento e... poxa vida! É só o seu primeiro semestre! Parabéns!
A garota não conseguia mais esconder o sorriso que preenchia seus lábios e fazia os dentes aparecerem. Celine levou as mãos aos cabelos vermelhos e os tirou de frente do rosto, colocando uma mecha ruiva para trás de uma das orelhas.
Desviando o olhar de Murilo, a dançarina deixou o sorriso tomar-lhe a face e soltou um riso de alívio por não ter vivido o pesadelo que criara em sua mente. Tinha sido uma tola, óbvio que ele não seria como os outros, ele era mais do que qualquer um. Os brasileiros são incríveis mesmo, ela pensou. Quando voltou a encará-lo, Murilo falou:
— Vamos! Me diga! Qual evento terá sua ilustre presença? — ela soltou mais um riso.
— Pensei que ia... ficar com inveja de mim, como imagino que os outros ficarão. — Murilo fez uma careta, cruzou os braços os apoiando na mesa, fez um não teatral com a cabeça e falou:
— Pelo amor de Deus! Tá maluca? Sou seu amigo!
— Sendo assim... obrigada — ela falou olhando a pupila do rapaz brilhar sem parar.
— Deixa disso... me conte logo, qual o evento? — Celine respirou fundo.
— Sabe o novo sócio majoritário? Que está até ousando mudar o nome da La Danse no conselho?
— Sei, mas nunca o vi, só ouço falar, o que tem ele?
— Então, vou me apresentar para o evento de recepção dele.
— Poxa! Isso é incrível! Todos os sócios vão estar lá, todos os professor e... até os assessores de imprensa da companhia. Você vai ser vista por todos! Isso é incrível! Espero que consiga um patrocínio antes que o ano termine.
— Não seja bobo! Não é para tanto. É um evento interno e...
— Mas um evento interno cheio de gente importante.
— Bom, sim, me convenceu — Murilo sorria mais que a própria amiga com a notícia. Celine levou o restante do café que estava no copa até a boca, se deleitando com o calor e gosto amargo.
— E quando vai ser?
— Semana que vem.
— Já? — Murilo arregalou os olhos assustado. — Como isso? Avisaram quando?
— Ontem e amanhã vão colocar os cartazes na escola.
— Que pressão! Me desculpe, mas... é uma responsabilidade e pressão de certa forma...
— De certa forma? Claro que é! Sou uma caloura, tenho medo dos olhares que vou receber de veteranos quando eles virem que eu vou me apresentar no evento do novo sócio majoritário.
— Os leões vão mesmo se enraivecer — Murilo comentou brincando.
Chamar dessa forma os professores, antigos e novos alunos da La Danse, era uma piada interna entre os amigos, já que uma vez ouviram do tutor de dança mais louco que eles deveriam encarnar um animal quando dançavam e, o daquele homem, era um leão.
— Vão e tenho medo — Celine confessou. Murilo fez mais uma careta e pegou seu café. Antes de tomar, comentou:
— Pode deixar que eu te protejo desses predadores — o coração da menina se encheu por completo. Não se conteve e desviou o olhar enquanto o amigo tomava o café.
— Mas me diga... — a voz macia de Murilo entrou em seus ouvidos e a menina o olhou de volta — já pensou na coreografia? Imagino que vá pegar uma que já sabe porque... não há tempo para ensaiar uma nova.
Celine sorriu bastante com a pergunta do amigo. Claro que ela havia pensando, seria a mesma que a fez passar nos testes cruéis que a La Danse impunha aos milhares de candidatos das poucas vagas que tinham. Sem nem ser respondido, e somente lendo a expressão da companheira, Souza cerrou os olhos e falou:
— Já até sei qual é... O Cântico do Cisne Negro — Celina concordou rapidamente com a cabeça, Murilo suspirou — Cel, vai ser incrível! Vai ser... um espetáculo do paraíso.
— Ou do inferno... — ela completou. Não parecia triste, mas soou estranha. Murilo não compreendeu e ficou confuso. Supôs que a colega estava, mais uma vez, se auto sabotando e imaginando o pior.
— Não pense assim, Cel, não vai ser ruim, em nenhum sentido. Se te escolheram, foi por um bom motivo: você é muito, mesmo, boa no que faz. Eles não escolheram um dos veteranos, escolheram você que está há três meses! — Celine deu de ombros.
— Penso que... sim. Pensando assim, de fato. Mas... comentei isso por outro motivo, além de não me achar tão boa assim...
— E qual seria o motivo? — Celine soltou um riso breve e levou as mãos até o rosto de vergonha no que pensou, Murilo bebericou o café com uma sensação de que a colega, mais uma vez, tentaria fazer uma piada idiota como nas tantas outras conversas que tiveram.
— Vai detestar a minha piada — ela disse entre os dentes. Murilo revirou os olhos, engoliu o restante do café na boca, acertou em cheio no que ia vir.
— Sabe muito bem que dou risada até mesmo com as suas piadas mais estranhas.
— Certo... — ela disse tirando a mão do rosto — bom, vai ser o evento de recepção do mais novo sócio com o nome mais... estranho de todos? Julgo que teremos uma recepção diabólica e minha apresentação deve seguir o mesmo caráter. — Murilo deu uma risada muda, fez que não com a cabeça, se inclinou um pouco para Cel e falou:
— Com certeza.... — Murilo falou, respirou fundo e completou:
— Não é todo dia que ouvimos falar que uma pessoa se chama Lúcifer Samael Morningstar.
☕☕☕
*Murilo Veronezi Souza faz parte do "Giovanaverso", rs, ele é um personagem secundário de Apatia, um drama sobre saúde mental, um livro escrito por mim e disponível nessa conta do wattpad.
Para quem leu essa obra: sim, ele saiu do interior paulista e está estudando na Europa. Chique, né? Rs. Além disso, Dançando com o Diabo acontece lá em 2.040 em diante.
Agradeço por ler até aqui!
Comente, vote e converse comigo!
Até o próximo capítulo!
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