💤Capítulo II: Um Sonho a Lúcifer💤

"Não tenho ninguém para chamar de meu
Por favor, ligue seu feixe mágico
Sr. Sandman, traga-me um sonho" Mr. Sandman (SYML).

Nenhuma das obras do criador, fosse as com características mortais ou celestiais, animadas ou inanimadas, poderia acertar qual era o único anseio íntimo, profundo e perturbador que infiltrou a mente e corpo do Rei das Trevas.

A inteligência de Amenadiel* não traria o conhecimento; a coragem de Miguel não alcançaria a vitória; a mensagem de Gabriel não portaria a verdade; a cura de Rafael não resolveria males; nem mesmo a fúria de Uriel colocaria fim naquele tormento que preenchia a mente do caído irmão.

Nada que existiu ou existirá poderia cogitar que logo ele, Samael, o antigo Portador da Luz, tinha um desejo comum, intrigante e um tanto inédito até mesmo para ele, o próprio capeta.

Até porque... um demônio seria capaz de desejar algo tão simples, corriqueiro e dado para tantos, se não para todos, os mortais e imortais? O próprio diabo ousaria invejar algo que todos, incluindo eu e você, fazem inconscientemente? Será que o Lúcifer, a Estrela da Manhã, comportaria uma ganância tão... usual?

O que os seres imaginavam era que, se o demônio desejava algo, poderia ser a destruição dos céus, o sofrimento de Deus, o extermínio da humanidade, até suponho que o Diabo poderia desejar nascer de novo.

Mas ele não ansiava nada disso.

É nas coisas mais banais que se escondem os resquícios de sanidade de qualquer um, com o anjo caído, não seria diferente.

Não importava todas as lendas sobre sua existência, as histórias infames a respeito de sua "escolha", o primeiro anjo caído continuava sendo uma criação do todo poderoso. Consequentemente, sonhar era algo que lhe daria um pingo de esperança. Entretanto, até isso o Deus tirou de suas capacidades.

Desde que havia despencado do mais alto lugar que algum ser poderia cair, Lúcifer suplicava para Sandman* lhe dar um sonho sequer, qualquer que fosse. Poderia ser somente uma visão idiota do passado; uma fantasia supérfula como as dos humanos; até mesmo um pesadelo que até o diabo teria medo, ele aceitaria.

Nos confins do ambiente mais torturante que existe, ao deitar a cabeça vermelha com a carne viva exposta no travesseiro, o demônio sabia tudo que iria acontecer; permanecia estático olhando para cima, fechando os olhos em uma tentativa fula de ter o seu único pedido atendido. Imaginava que nunca seria, nunca poderia ser, em qualquer hipótese, tentativa ou situação, socorrido.

O conflito mais perverso e triste que alguém pode ter é quando seu sono, seus sonhos, sua esperança, lhe são arrancados a força; martelados até o fundo do fim do mundo; escondidos das mais diversas e maliciosas formas. O mal que percorre o mundo dos mortais não era comparado com a dor que o Senhor do Inferno sentia toda vez que não podia sonhar.

Lembrava, somente, de quando havia caído. Não sonhava nem com isso, recordava, com consciência e olhos abertos ou fechados, do fim do início.

Sentindo o vento bater com força em sua face, asas, mãos e pés, ele foi notando que algo o queimava, torturando o recém caído anjo. A cor de sua pele mudou assim que Lúcifer viu que estava queimando vivo, as penas negras se soltavam aos montes varrendo os céus com as cinzas, as asas se transformavam em escamas pretas.

A cor de sua epiderme mudou para o vermelho vivo, uma vez que não existia mais a primeira camada que sempre esteve ali, o sangue e as veias foram expostos rapidamente. Sentindo-se indefeso e fraco, ele riu da cara de Deus.

Era como se cada centímetro do seu corpo fosse rasgado aos poucos, retirando-se a dignidade. Não estava somente nu, estava humilhado por ter partes de si retiradas brutalmente, de maneira tão distinta de como foram colocadas: com delicadeza e amor.

Chorava e ria percebendo que a queda não seria somente cair.

A sensação de impotência o tomou, a perversa certeza de que nunca seria perdoado, a maldade divina tinha lhe condenado ao seu próprio medo: ser roubado de forma tão intensa, rápida, que apenas o piscar de olhos seria o tempo suficiente para reagir. Não fez nada, deixou o Pai tirar a sua carne, já que foi Ele quem a colocou.

Depois disso, o cheiro de enxofre tomou-lhe os pulmões, vomitando sem parar, o recém criado capeta enxergou o líquido cinzento preencher o sangue que transmutou, substituindo a obra prima Dele por uma aversão a tudo que um dia ousou criar e se arrependeu.

O estalar mais alto de todos os tempos começou.

Os ossos foram triturados e aqueles que restavam subiram por suas costas. O cálcio vivo levantou a sua epiderme, provocando-lhe uma sensação tão angustiante que Lúcifer ultrajou o som mais estridente que fez até Deus ouvir nos céus. No instante que escutou, o Pai desatou a chorar pela primeira e única vez em sua onipresente e eterna existência.

A ponta dos canos feitos de cálcio puro caminharam pelo corpo do demônio atingindo sua cabeça e, assim, a explodiram, permitindo criar seus famosos e aterrorizantes chifres. A sensação foi tão forte que tomou a alma de Samuel, provocando-lhe um desmaio instantâneo.

Enquanto isso, os céus se escureciam, as nuvens, as virtudes e os anjos ficavam apreensivos. Nunca, desde o começo da criação do Paraíso até a falha obra da humanidade, eles haviam presenciado algo assim.

Foi a primeira vez que o Éden ficou sem luz, pois o portador dela tinha sido escorraçado. Tudo ficou nebuloso e sombrio, durante a catarse fúnebre do fim dos tempos, os seres angelicais ouviam com peso no coração Deus chorar tanto, tanto, sem parar, por expulsar o filho que mais amava de seu próprio lar.

A vida se sentia morta; a verdade se encarava no espelho e via a mentira;  as virtudes se encolhiam com pavor de serem aniquiladas e transformadas em pecados; os raios queimavam o próprio Céu sem serem controlados. Neste fatídico dia, até a fé perdeu as esperanças supondo que, se quem levava a Luz despencou, tudo desabaria em seguida. A escuridão preenchia pela primeira vez cada canto do Éden, enquanto o Pai chorava.

Tentando parar de sofrer, Deus respirou fundo, olhou o caos ao redor, se arrependeu de ter feito o filho despencar, o coração acelerava fazendo a galáxia que acolhe a Terra girar mais rápido em todo o universo. Ele resgatou sua misericórdia do coração, colocou a mão no peito e tirou uma bolinha azul brilhante e jogou na direção de Samael que caia, caia e caia.

Segundos depois, a mágica e indestrutível bola azul voltou, desta vez, amarela, maior e mais brilhante, Ele sorriu com lágrimas nos olhos. Deus tinha tomado a Luz de Lúcifer, foi quando este recebeu a incapacidade de sonhar e o Paraíso parou de tremer.

Assim, toda vez que repousava a cabeça no travesseiro de pedra, o Rei do Inferno sentia como se caísse de novo, pela milésima vez. Os chifres não apareciam como na primeira, sua pele não era queimada, mas o anjo caído suplicava para que a sua essência, aquilo que atribuiu o significado a sua existência, aquela pequena grande coisa que carregava consigo os sonhos, voltasse para ele.

Tudo que ele mais desejava era que Luz regressasse para dentro de si, amava-a tanto, até mais do que uma vez já amou o todo poderoso. Sentia como se uma parte de si faltasse, parecia incompleto, insatisfeito, incapaz e irresponsável, pois a completude, a satisfação, a capacidade e a responsabilidade dele estavam dentro dela.

A vida não era uma resposta, a verdade não era o caminho e a Luz de Lúcifer, desde aquele dia, não voltou. Ele fantasiava que ela estava presa, obrigada a ficar longe de seu único e eterno portador. Não poderia nenhum outro anjo segurá-la, se não, padecia e desaparecia. Somente Samael tinha poder para porta-la.

Por outro lado, o Diabo sabia, no fundo, mas não aceitava por completo, que até mesmo a Luz, sua amiga, companheira, mãe, irmã e amante havia desistido dele. O capeta deixava uma lágrima escorrer o rosto vermelho, o sutil sal invadia suas veias, toda vez que ele deitava, tentava dormir e não conseguia.

Sonhar, somente poder ter um único e idiota sonho, comprovaria para o maior e mais poderoso dos demônios que ela não havia desistido dele. Por isso, Lúcifer criou uma religião interna, secreta e impossível para Sandman. Fez inúmeros sacrifícios, inventou rezas, declamou poemas de fé. Mesmo assim, nada veio.

Ao se levantar, Mazikeen* o cobria com seu manto preto, vestia-lhe os sapatos, lustrava-lhe os chifres. O Rei do Inferno governava cada demônio de sua Terra com raiva, depositando o ódio por não ter a sua Luz, por não ter mais sonhos. Os trovões decoravam o ambiente junto da neblina sufocante; o Inferno não era fácil.

Seus servos aspiravam por derrubá-lo do trono, afinal, é o sonho do oprimido se tornar o opressor. Mas questionavam: quem, em sã consciência, poder e coragem, tomaria o lugar de Lúcifer Samael Morningstar? A resposta logo vinha na mente perversa dos seres das trevas: ninguém.

Nenhum outro ser conseguiria cair como ele caiu. Nada poderia suportar a dor, carnal e psicológica, de não saber quem é; detestar cada canto de sua nova personalidade e suspeitar que dali em diante ele seria não somente odiado, mas temido e rejeitado por todas as suas próprias criações e, principalmente, pelas obras de Deus.

Lúcifer não caiu porque quis. Caiu porque precisava cair.

Quando ele ainda estava nos céus, o Pai convocou uma reunião somente com o filho favorito, o que era até comum, devido à proximidade, afeto e amor entre ambos. Só que o portador da Luz sentia um arrepio em seus pelos do corpo e das asas, previa que o pior estava por vir. O mal de Deus cairia sobre ele.

O maior ser celestial que existe lhe contou que precisava ter um adversário, necessitava que os humanos temessem algo para recorrerem a Ele, devia e iria dar um motivo para os mortais desejarem o Éden. E o motivo seria aquele querido anjo em particular.

Com lágrimas ameaçando saltar das bolas brancas de seus olhos, o ser mais amado por Deus não questionou, não argumentou e nem ao mesmo foi contra o desejo do Pai. Concordou sem profanar uma única palavra se quer. O todo poderoso sentiu seu coração despedaçar aos poucos vendo como o predileto era, de fato, devoto e, por isso, assumiria a missão sem nunca falhar.

Agregando para si todas as forças dos céus e da Terra, não comentou com ninguém os planos de seu Pai, um dia somente o desafio e criou uma rebelião secreta e estes foram os motivos de sua prevista e necessária ida ao abismo.

Lúcifer sabia que não seria fácil, mas não imaginava que até mesmo a Luz seria retirada dele — depois disso, ele somente odiou, nunca mais amou e desconheceu a palavra perdão. O orgulho lhe tomou por completo.

Ao torturar as almas, depositava toda a amargura que sentia por Deus ter lhe roubado o único bem, virtude e peça que dava sentido a tudo desde que abriu os olhos pela primeira vez. Ao espancar as suas criações, os demônios, imaginava que era o Pai ali sofrendo em suas mãos.

Após milênios, ele não suportou governar o Inferno sozinho, todo aquele mal lhe remetia ao maior e mais cruel roubo da história da existência. Assim, Lúcifer decidiu criar os seus aliados que também teriam o poder de punir os pecadores. Sorrindo com malícia para Maze que o olhava apavorada, o anjo caído gritou e pode ser ouvido por cada ser das trevas:

— Hoje, o Érebo receberá os seus seis príncipes! — Dito e feito.

Da raiva e ódio presentes na violência, no estupro, nos homicídios e nas guerras, o dono do inferno criou Azazel, o príncipe da Ira. Retirando um pedaço de cada luxúria que uma vez tomou os desejos de todos homens que já haviam existido e daqueles que ainda viriam a viver, Lúcifer deu vida à Asmodeus.

Resgatando a inveja e a ganância vividas nos anseios dos mortais e que provocavam traições, roubos e mentiras, o Rei das Trevas pariu Leviatã. Sugando a gula de todos os reis que já existiam, fosse pela comida ou pelos bens materiais, e retirando as sujeiras das patas das moscas, ele fez Belzebub.

Sugando a preguiça e a autossabotagem que deixavam os homens inertes, indiferentes e extremamente improdutivos e incapazes de progredir, o capeta despertou Belphegor. Roubando um pouco da avareza, aquilo que fazia tanto ricos quanto pobres guardarem e amarem acima de tudo e todos os bens materiais, ouro ou dinheiro, Lúcifer concebeu o último príncipe do inferno: Mamon.

Por fim, satisfeito de suas realizações, o anjo caído sorriu para seus irmãos que logo tomaram seus postos no reino dos pecados e nos corações dos homens que já os portavam, cada um direcionado precisamente para um tormento da humanidade e que a impedia de chegar ao Paraíso. Maze ficou maravilhada, mas um tanto confusa e ousou questionar seu rei pela primeira vez:

— Vossa Majestade, é impressão minha ou falta o príncipe do orgulho? Se são sete pecados, não deveriam ser sete príncipes? — Indagou intrigada. O Rei do Inferno sorriu e gritou, não só para a demônia, mas para todos os seres mortais e imortais.

— Pois está olhando para ele. Eu, Lúcifer Samael Morningstar, sou o príncipe do orgulho e Rei do Inferno — com os olhos arregalados, Mazikeen se curvou e logo se ajoelhou diante dele. Ao olhar o restante dos súditos, o Rei das Trevas sorriu maliciosamente ao encarar todos os demônios se ajoelharem diante dele. Riu, com satisfação.

Desde então, Lúcifer não governou sozinho. Existiu dividindo os pecadores para os sub-reinos de cada príncipe, seguindo sua vida de uma forma mais calma, porém, mais tediosa com o passar da eternidade. Ele imaginou que iria se divertir, mas descobriu que não depositar seu tormento em todos causava-lhe tédio.

Até que Miguel o chamou.

Após passar 21 anos e alguns meses da vida de Celine, o diabo decidiu acompanhá-la mais de perto no começo de março. Até porque, dentro do ano de Cristo, 2.041, a menina completaria a idade de sua maldição em poucos meses. Curioso e desejando abandonar a apatia de sua atual rotina, o anjo caído desceu a Terra.

Notou, logo de princípio, como a mãe adotiva da mulher ruiva a ligava, no mínimo, cinco vezes ao dia para conversar por vinte minutos; como sempre enviava mensagens para a filha que ficava soterrada na tela do celular.

Samel irritou-se com tal comportamento da mulher, entendia o anseio da criatura por segurança e, mais ainda, o afundava nas trevas que a filha dela teve por toda uma vida. Tinha visto aquela cena muitas vezes, mas sempre se deliciava como se fosse a primeira vez.

O cenário da atual tragédia favorita do demônio era formado por uma mulher que segurava trêmula uma taça de vinho. Não era por acaso, Lúcifer assistiu de longe aquela peregrinação, e uma das pedras no caminho que Celine enfrentou foi o alcoolismo — além da doença rara da epiderme, ansiedade e a depressão.

A garota estava sóbria há bastante tempo e, com as aulas da academia de dança prestes a começar, não poderia voltar para a vontade avassaladora de se entorpecer. A ruiva tinha se viciado por conta de duas sensações excitantes que tinha com a bebida: a inacreditável emoção de ser invencível e o delicioso sentimento de não ter medo algum de que o amanhã chegaria com as consequências de seus atos batendo na porta.

Tinha vivido uma vida complicada demais com o que a bebida havia trazido, principalmente na adolescência. Adulta, tinha outro pensamento e ia frequentemente às sessões dos Alcoólicos Anônimos (AA) – muitas mensagens de sua mãe eram perguntando sobre isso.

Disfarçado de um bobo vulto preto, o Rei do Inferno chegou na janela do apartamento Celine naquela noite em que a tormenta dos céus gritava sem parar e a mulher parecia a um minúsculo passo de ceder novamente aos seus vícios mortais. Tentava recusar, mas a ansiedade e a pressão das aulas a tomavam por completo e sussurrava em seus ouvidos: somente uma taça de vinho.

Mas nunca era somente uma taça de vinho.

Através da luz de um relâmpago, o demônio foi iluminado rapidamente, fazendo a ruiva sair de seus devaneios pecaminosos, a jovem rapidamente se assustou com a sombra por trás da janela. Supôs que seria sua imaginação lhe pregando uma peça. Mal sabia que tinha encarado o próprio capeta.

Enquanto a atormentada jovem sentia angústia, medo e tremia sem parar, Lúcifer arregalou os olhos como nunca antes, pois tinha visto, no olhar brevemente iluminado daquela mortal, um vestígio de sua Luz. Ela brilhava por meio de Celine sutilmente, mas não o bastante para que Samael, seu antigo portador, não a visse.

Foi então que o Diabo sentiu novamente que poderia sonhar.

Determinado, convenceu-se a fantasiar-se de humano, enganar Celine e roubar-lhe a ínfima Luz que estava dentro dela — tinha um plano perfeito. Não ficaria mais nas sombras a vigiar como tinha feito, precisava resgatar a sua essência que parecia estar dentro daquela aparentemente simples mulher.

Naquela noite, como se fosse qualquer mortal comum, ele repousou a cabeça coberta de pele humana, olhou o teto do aposento que alugou do hotel, riu enlouquecidamente até cair no mais profundo sono ao imaginar como acabaria com a dançarina e tomaria sua Luz de volta.

Depois de milênios, Sandman atendeu ao seu pedido. Lucifer, enfim, sonhou.

🕯🕯🕯

*Esses nomes são uma referência ao personagem da série Lúcifer e aos personagens do Neil Gaiman (Amenadiel; Mazikeen e Sandman).

Agradeço por ler até aqui!
Comente, vote e converse comigo!
Até o próximo capítulo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top