🦋 Capítulo I: Criança Borboleta🦋

"Isso é algo com que lido a vida inteira
Vou parar de deixar meu passado de lado
É assim que deve ser
Agora olho para cima e te vejo no céu" Butterfly (Demi Lovato).

O quão trágico pode ser a vida de um sujeito fadado à solidão? E, ainda, o que poderia na sua infância causar um rebuliço de confusões emocionais para tamanha distância dos demais? Há muitas respostas, a que serve para Celine era o diagnóstico que recebeu antes mesmo de saber pronunciar uma palavra se quer.

Os médicos não entendiam porque a pele da prole se enchia de bolhas. A mãe biológica havia morrido no parto, o pai nunca apareceu e deixá-la em um orfanato assemelhava-se a uma perversidade no estado tenebroso que o bebê se encontrava.

Ao receber qualquer toque, a pele desfiava em pequenas bolhas vermelhas que explodiam minutos depois. A epiderme parecia o maior perigo daquela criança, já que, ao invés de ser a parte do corpo que a protegia do mundo, era tão frágil como uma borboleta e sucumbia a feridas com marcas.

Os profissionais da área da saúde decidiram deixá-la no hospital por mais algumas semanas — até que os exames fossem feitos e, assim, pudessem saber o que assolava aquela pobre criatura.

Quando o resultado foi dado, todos ficaram espantados e amedrontados, teriam que ter um enorme cuidado ao tocar a criança de qualquer forma para não deixá-la machucada  — eles obtiveram noção do real perigo: era uma criança borboleta*.

Essa pequena nasceu com a pele mais frágil de todas e foi perigosamente rodeada com mais afinco pela mortalidade até ultrapassar a infância.

Num ato de loucura e amor, Eva, a médica que fez o parto, adotou o bebê. Isso porque se considerava a única preparada para salvar e cuidar de um ser tão frágil, além de temer muito que qualquer outro não soubesse proteger a criança.

Epidermólise Bolhosa Simples (interna e externa) foi o que ditou a vida daquele pequenino ser humano, a doença genética e rara proporcionava bolhas severas — que fisicamente se assemelhavam a queimaduras de terceiro grau — no momento em que ela recebia qualquer toque mais forte do que um sutil passar das pontas dos dedos.

Além de causar engasgamento com a ingestão de qualquer coisa, fosse sólido ou líquido, uma vez que a doença daquele bebê atacava, também, a parte interna de seu corpo em determinadas partes que ligavam a boca a boca do estômago.

Antes de pronunciar uma única palavra, Celine já era cuidada como se fosse tão frágil e sensível como as asas de um inseto; era tocada com uma sutileza descomunal, já que a mãe adotiva compreendia muito bem os perigos que cercavam a filha; era alimentada com conta gotas e soro intravenoso.

Até os 10 anos, a prole apenas foi tocada quando extremamente necessário, vestia roupas finas e com tecidos especiais, além de visitar os médicos mais do que os aniversários de seus coleguinhas de turma — os quais apenas ia com acompanhamento da mãe. Comia com extrema dificuldade e ingeria cápsulas que dilatavam a glote e restauravam o tecido da garganta.

Era extremamente proibido tocá-la quando ela era criança — o aviso havia sido dado assim que foi matriculada, as condições de sua saúde foram explicadas de forma minuciosa por Eva a todos da instituição que confiou a segurança e educação escolar da prole.

Deixou bem claro que a pequena poderia falecer se recebesse um soco ou tapa  — que em uma criança comum apenas resultaria em um vermelhidão inofensivo; que ela poderia morrer caso tropeçasse e caísse bruscamente; que a morte seria o destino se um engasgo não fosse visto a tempo.

Um forte impacto ou uma alimento entalado seriam como o quebrar de uma taça de vidro: tudo desmontaria, a pele não suportaria o choque e formaria um hematoma tão severo que poderia proporcionar uma  hemorragia externa, interna ou ambas.

Por isso, Celine não teve uma infância comum.

Tomava remédios controlados para assegurar a resistência da epiderme em seu estômago; usava tecidos especiais, sapatos e às vezes até mesmo luvas para evitar ao máximo o toque de terceiros e qualquer espécie de impacto.

Sem receber o que todos tinham sem alardes ou cerimônias, o toque de outra pele contra a sua, na infância sobreviveu uma espécie de prisão particular psicológica: não podia brincar de pega-pega; não podia ir em aniversário sem supervisão; não podia abraçar sem medo de receber o possível arder na epiderme; não podia ser criança sem sentir medo.

Viveu rodeada por perigos inofensivos para os outros; viveu sem saber o que é viver sem a ansiedade atrelada a si; viveu sem conhecer como é não ter a autoestima atacada por olhares de outrem; viveu sem inocência e liberdade da infância. Conheceu a depressão e apatia muito nova.

Eva, observando a solidão dolorosa da criança, perguntou se ela não se interessaria por aulas de desenho. A criança não demonstrou entusiasmo. Questionou se ela se interessava por algum instrumento musical, a luz aparentava desânimo.

Mas quando Eva tocou no assunto da dança, a prole ergueu os olhos brilhantes, tinha visto de relance um trailer de um filme na televisão em que uma mulher dançava belamente, mostrou imediatamente para a mãe quando a propaganda passou de novo na tela. A protagonista dançava balé.

Era Cisne Negro**.

Tentando se convencer de que aquela dança era uma das que mais poderia comportar movimentos suaves, Eva concedeu para a filha as aulas particulares de balé em casa. E, assim, pela primeira vez na sua vida, a menina sentiu controle de si mesma e autoestima a cada vez que acertava os passos.

Dançava sobre um tatame almofadado, o que não contribuiu para ela saber posicionar os pés retos no chão, contudo, assegurava sua segurança caso caísse das pontas dos pés usando uma sapatilha sem ponta.

Ao som das notas do piano, a criança dançava alegremente; Eva nunca tinha visto a pequena tão feliz, sorriu exacerbadamente quando entendeu que naquele momento a filha não se sentia só ou impotente.

Celine era livre, era ela mesma, ela tinha, enfim, se aventurado em algo no qual, em sua mente, dificilmente se machucaria.

Assim, a criatura frágil ficou viciada em dançar, pediu para ter aulas três vezes na semana (apenas uma não seria suficiente).

E, na adolescência, apesar da solidão, encontrava o seu refúgio com rapidez e facilidade, aceitava a dor de não ter muitas companhias, mas suspirava ao entrar no único lugar em que não se sentia só, já que estava consigo mesma na forma mais presente possível, encontrava-se nas aulas de balé.

Assim, a garota começou a dançar em uma sala de aula com o auxílio da mesma professora particular que a atendeu em casa. Não era mais totalmente sozinha, além da tutora, as melodias instrumentais faziam companhia ao seu interior rodeado de inseguranças e ansiedades.

Permaneceu até os dezesseis anos de idade dançando no ambiente preenchido pelos espelhos e, também, sem mais o colchonete abaixo de seus pés. Entretanto, não dançava com mais ninguém na sala, fora a professora.

A solidão foi sua companheira por uma parcela significativa de sua a vida, até a luz perceber que sua própria companhia, suas conquistas nas coreografias, as pessoas que vibravam por ela e a manutenção que fazia mentalmente para ter sua autoestima eram seus verdadeiros aliados e parceiros.

Isso porque, na adolescência, conheceu uma luta complicada e perversa: sentir-se bela para ter a aceitação dos outros; negava o toque por mania da infância, beijou poucas vezes e demorava para confiar nas pessoas anos recebendo comentários maldosos sobre a aparência sua pele, jeito retraído e tímido de ser e a vida regrada a medicação e cuidados criaram uma armadura de ressentimentos.

Não conseguia criar conexões com os outros com facilidade, vagarosamente se entregava a uma amizade e, quando o assunto era o amor, tentava ignorar. Além de sua família e amigos contados nos dedos, permaneceu isolada emocionalmente.

Por outro lado, sabia que com a idade a doença amoleceria e, assim, ela poderia viver cada vez mais sem medo e, ainda, dançar e ousar passos cada vez mais esplêndidos; poderia até mesmo realizar saltos grandes quando mais velha.

Essas eram as expectativas que a mantinham esperançosa, a mantinham viva, como uma chama acesa dentro de si que era alimentada toda vez que a música começava. Sabia que um dia ela não seria tão perseguida pelas bolhas, pela dor, ardência e medo que tanto a afetaram durante toda a vida que levou.

A cada dia que chegava perto dos dezoito anos, ia decidindo já a sua profissão. Apesar da relutância da mãe Eva, a prole queria ser uma bailarina, não importava os obstáculos que poderia ter —  afinal, a criança borboleta sobreviveu quando era a mais frágil de todas, ao nascer, o que poderia, agora, impedi-la de alçar vôo?

Ao completar a maioridade, não necessitava mais de tanta supervisão, tocava os pés no chão, saltitava sem sentir o coração acelerar de medo; dançava com paixão e liberdade. Tinha confiança em si.

Celine demorou muitos anos para entender que a condição da epiderme não era mais o que a aprisionava e a impedia de fazer o que quisesse; mas, sim, a superproteção da mãe na infância em conjunto do capacitismo da sociedade que sussurrava em seus ouvidos como ela não era capaz como os outros.

Mas Celine era muito mais do que capaz.

Agora, mulher, provaria para Deus, o mundo e até para o Diabo que poderia realizar qualquer atividade que desejasse, até mesmo envolvessem se tornar uma das melhores bailarinas da Europa Ocidental.

Com isso, estudou muito para entrar em uma das melhores instituições de dança da Inglaterra (país no qual nasceu); demorou anos para conseguir a vaga, mas não iria desistir.

A mãe lhe dava total apoio por um lado, por outro, tinha um severo medo da filha se mudar, já que a famosa La Danse, escola de dança, ficava longe de sua moradia...

Aos 21 anos, a amante da dança conseguiu a vaga que tanto desejou. Quando a menina passou no teste da escola que tanto queria, o coração de Eva foi a boca.

A ruiva saiu de Liverpool e foi morar em Londres, mesmo com a mãe relutando e rogando para ela permanecer sob sua vigilância e ir para uma escola mais perto. A bailarina não tinha tanto medo como Eva. Ao adentrar a vida adulta, notou que o toque já não era assim tão mortal, apenas o segurar forte de alguém poderia provocar as bolhas — e estas não eram mais tão rigorosas e doloridas como na infância e adolescência.

A doença estava se enfraquecendo.

Mesmo sabendo disto, a mãe mantinha o seu pavor, e com certa razão. Como poderiam entender a doença rara de sua filha? Como tomariam cuidado para que não a machucassem? Como aplicariam providências caso o pior acontecesse? A criatura havia sido uma criança borboleta, um ser tão frágil...

E, ao cuidar de algo tão delicado, a mulher tinha receio de vê-lá longe com uma preocupação descomunal, uma vez que para si a sua filha não era uma pessoa com condições estáveis de saúde.

Um simples cair na dança, a levaria para um impacto dolorido e, se não cuidado a tempo, até mesmo mortífero.

Por outro lado, não conseguia dizer não para a ruiva, uma vez que ela quase nunca demonstrou interesse e entusiasmos com nada, somente com as coreografias de balé e a vaga na instituição de Londres.

Eva, então, se certificou que a querida prole teria tudo na nova cidade; ela pagou a estadia e os estudos de Celine com suas economias; contratou os melhores médicos da cidade para o acompanhamento; obrigou que a filha continuasse indo ao psicólogo e a psiquiatra, já que eram cruciais para manter a saúde mental de uma pessoa ansiosa e depressiva devido as angústias instauradas pelo temor do toque desde a infância e pré-julgamentos na adolescência.

No momento da matrícula, da mudança e de todos os preparativos médicos, a mãe acompanhou a filha com afinco, com pavor de que a metrópole turbulenta pudesse causar sérios problemas em sua eterna criança borboleta — sabia da existência de perigoso que não pode controlar.

Discursou por horas com quase todos os profissionais do recinto de dança, certificou-se que ficassem ciente dos piores e mais nítidos detalhes do que poderia acontecer caso não tomassem cuidado com Celine.

Ao se despedir da filha, Eva pediu para que ela tomasse os remédios sem falta, que nunca esquecesse, que ao acordar fizesse a rotina de cuidado com os cremes como a mãe lhe ensinara e que nunca, em hipótese alguma, tivesse relações físicas de amizade ou amorosas com alguém sem antes explicar-lhe da forma mais séria possível as suas condições de saúde — como se as marcas no corpo da ruiva e os engasgos fossem imperceptíveis.

A mãe ainda a tratava como se a morte estivesse perto da criança.

Pediu que não poupasse detalhes, suspirou para que ela nunca faltasse ao acompanhamentos médicos e rogou para que sempre ligasse caso sentisse muito só, deprimida ou triste.

A garota concordou com tudo e sorriu para a mãe, ela amava como a mulher a adorava e a protegia — ou acha que podia protegê-la — de qualquer coisa, fosse objeto, animal, sentimento, pessoa, anjos ou demônios.

Realmente, Eva cuidava da criança borboleta como se ela ainda fosse uma, já que passou tantos anos com receio de acordar e vê-la morta no berço, com temor de um dia receber uma ligação da escola e saber que Cel estaria com hemorragias; com pavor de nunca mais olhar a pele clara, os olhos com de mel e os cabelos ruivos e lisos daquela que tanto amou desde o primeiro dia no hospital.

Cuidou com amor e intensidade, nunca deixou ou deixaria que algo ou alguém afetasse a filha. Mas entendia que ela não seria para sempre a sua pequena. Precisou desenvolver uma nova consciência com a idade adulta de Celine, exercitou o desapego e tentou soterrar até certo ponto sua superproteção.

— Cuide-se! Pelo amor de Deus! — a mulher profanou e deu um beijo suave no topo da cabeça da filha.

— Sabe que não acredito em Deus, mamãe — Cel disse soltando um riso baixo. Eva terminou seu carinho, encarou a filha com os olhos cheios de lágrimas, sorriu de lado e falou:

— Sei e respeito isso. Mas sempre vou te dizer que... — e a ruiva interrompeu a mãe.

— Que estou viva por conta de Deus. Eu vim do céu – e revirou os olhos para a figura materna.

— Exato, filha. Seu nome é Celine, e ele significa...

— Filha do céu, descendente do céu, já me contou isso milhares de vezes... — Eva deu um sorriso amarelo.

— Caso qualquer coisa aconteça, me ligue imediatamente!

— Não se preocupe tanto, eu ligarei.

Eva sorriu, deixou as lágrimas salgadas rolarem, já pressentia a imensa saudade que teria do sorriso doce, da voz lenta e do olhar tranquilo da pessoa mais linda, corajosa e extraordinária que um dia teve o prazer de conhecer.

Passou de leve as mãos sobre os dedos desnudos da ruiva. Suspirou, soltou eles devagar, foi até a calçada na frente do prédio em que deixou a criança borboleta hospedada — um bem no centro industrial de Londres, enorme e antigo, com grandes pilares no saguão que corriam os oito metros até o teto e lembram a arquitetura da Grécia antiga — rachaduras e poeira.

Quando o Uber parou em meio ao movimentar frenético da rua e o trânsito de pessoas na calçada em plena segunda-feira, Eva virou-se rapidamente e olhou a filha ali parada lhe dando tchau com um aceno sutil da mão esquerda.

A mãe sorriu para a filha e enviou-lhe um beijo pelo ar, Cel pegou ele e depositou-o no coração sentindo os olhos enxerem de lágrimas, sem a figura materna, imaginou que sentiria uma extrema falta das piadas sem graça, jeito fofoqueiro e carinhoso da mulher que tanto cuidou dela.

Por outro lado, seu coração se enchia de felicidade também, já que ela dançaria em uma das melhores escolas de dança da Europa, a La Danse.

Destemida e perseverante, queria e seria a melhor bailarina de todas. Ao ver Eva e o carro saindo até cursarem a esquina e desaparecerem, a bailarina entrou de volta no prédio encarando os próprios pés e imaginando o futuro.

E, assim, a criança borboleta saiu totalmente do casulo e voou em direção ao seu sonho.

🦋🦋🦋

*Criança borboleta é o nome dado para quem nasce com a condição genética rara chamada Epidermólise Bolhosa, uma doença que faz com que a pele seja tão fina quanto as asas de uma borboleta.

** Cisne Negro (2010) é um filme dirigido por Darren Aronofsky com a atuação de Natalie Portman.

Agradeço por ler até aqui!
Comente, vote e converse comigo!
Adoro críticas construtivas!
Até o próximo capítulo!

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top