36
CAPÍTULO TRINTA E SEIS:
꧁ Porto seguro ꧂
Cambaleante, entrei no meu dormitório escuro e fui direto no banheiro esconder a roupa com meus vestígios sujos e tomar um banho.
Quando me sentei na banheira minhas pernas não paravam de tremer e eu me perguntei como consegui voltar para o dormitório andando. Andei torto, mas cheguei. Foi difícil fingir plenitude ao passar por um grupo de garotos mais novos na comunal e tê-los me encarando como se soubessem o que tinha acabado de me acontecer.
George é muito bom com as mãos. Muito, muito bom. Excelente, eu ouso dizer. Absolutamente... fantástico.
Mesmo após nossa separação, eu sinto como se seus dedos estivessem dentro de mim. Tento até reproduzir a sua façanha, mas me repreendo tão logo, tenho é que me concentrar!
Saio do banheiro enrolada em uma toalha e, guiada pela memória, encontro meu baú e me visto com pouca preocupação se a roupa está do avesso ou não. Lentamente, vou para a cama de Pamela e me enfio debaixo das cobertas, sei que ela está acordada, ela sempre leva mais tempo do que eu para dormir e eu não estou com tanto sono.
Sem nem tentar fingir, a minha amiga rola para ficarmos frente a frente e eu busco por suas mãos com as minhas frias. Ela não demora em estendê-las.
— Oi, Karia.— ela cumprimenta, está tão escuro que é o mesmo que conversar de olhos fechados, não consigo distinguir a menor curva do seu rosto.
— Oi, minha linda.— cumprimento com um sorriso mesmo que tenha certeza que ela não vai me ver de jeito nenhum— Estou aqui essa noite, viu? Só para você.
— Sabe que eu não vou te apedrejar se preferir dormir com seu namorado, não sabe?— ela pergunta, nossa conversa se baseia em sussurros para não acordarmos as outras.
— Eu sei, mas sei também que tenho estado distante esse último mês.— lamento— Desculpe, prometo ser uma amiga melhor daqui para frente...
— Não, Karia, nenhum momento você foi uma amiga ruim ou negligente, pare de falar baboseiras.
— Se tem uma coisa que eu aprendi é que se você diz que está sentindo minha falta é porque eu não estou tão presente quanto deveria.
— Não, não foi isso que eu quis dizer, você pode ter uma vida longe de mim, Karia, não nascemos coladas. É só que.... tem tanta coisa acontecendo essa semana que eu... sinto falta das épocas melhores, e quando penso em "épocas melhores" só consigo me lembrar do Nik e de você. De todas as bobagens pelas quais passamos juntos.
Franzo a testa, preocupada, mas permaneço em silêncio para que ela se sinta a vontade para falar até onde bem entender.
— Lembra do nosso segundo ano quando eu estava tão puta com minha mãe que acabei aparecendo na sua casa no meio da noite e você me escondeu no sótão por uma semana inteira sem falar para seus pais o que estava acontecendo e cuidando de mim como se eu fosse um passarinho com a asa quebrada?— ela recorda.
— Eu lembro.— confirmo, não esqueço de nossos momentos, principalmente desses tão impactantes.
Que Pamela não se dá com a mãe não é segredo. Elas tem uma relação insuportável, onde a mãe de Pamela quer que ela seja perfeita o tempo todo, além de ser extremamente narcisista. O seu pai nunca deu as caras e todo o rancor que a senhora McCartney guardava dele, ela descontava em Pamela com palavras agressivas e até alguns tapas nos piores dias.
Em meados de junho, Pamela apareceu na minha casa. A chuva de verão a pegou desprevenida, me lembro perfeitamente de sua imagem carrancuda, magricela e trêmula na minha janela. Ela vestia uma camiseta preta, bermuda e sandalhas, seus cabelos eram compridos na época, ela era mais branca ainda do que é hoje.
Seu pulso estava roxo e ela o segurava e me encarava com impotência. Nós não moramos perto uma da outra. Ela veio até minha casa andando, por dois dias, só para que sua mãe surtasse de vez. Que escolha eu tinha se não acolhê-la?
— Fiquei com tanto medo quando ela nos encontrou.— ela admite— Pensei que ela me mataria, mas você fez com que seus pais falassem com ela para que ela me deixasse ficar. Todos os Saint Thomas se comprometeram a cuidar e proteger de uma garota que praticamente invadiu sua casa no meio da noite. Sobrou até para Regulus Black, uma vez... Nik me chamando para passar um tempo em sua casa mesmo quando seu pai dizia que não cuidaria do filho de ninguém, já bastasse o seu único para lhe dar dor de cabeça.— ela riu e eu a acompanharia, mas não consegui— Acho que nunca disse o quanto sou grata a todos vocês. Principalmente a você, Karia. Eu te amo, sabe?
— Eu também te amo, Pam.— engulo em seco e entrelaço os nossos dedos, aproximando-me mais um pouco dela tanto pelo frio que estou sentindo quanto porque estou com uma forte vontade de abraçá-la. Eu não estou com um pressentimento bom— O que está acontecendo?
— Ah...— ela sopra uma risada fraca e funga— não sei... eu acho que não estou me sentindo bem.
— Você não fica mal por qualquer coisa, amiga, me fala o que está acontecendo.— insisto, preocupada.
— Eu só... acho que sou uma pessoa ruim. Tipo, eu não mereço você, nem o Nik, vocês merecem uma amiga tão melhor do que eu.— ela diz com a voz embargada— Eu sinto muito mesmo.
— Ei, é claro que merece. Você merece o mundo.— tentei soltar minha mão para tocar seu rosto, mas Pamela a segurou com mais força e eu não insisti.
— Há pouco mais que uma semana, recebi uma carta de casa.— ela começa, eu sei que ela está chorando e me desespera tê-la neste estado porque para mim Pamela é a garota mais forte da face da terra— Uma carta de minha mãe, onde ela me avisa que está doente e quer que eu vá para os Estados Unidos com ela, porque é onde ela sabe que encontrará o melhor tratamento.— o silêncio que nos cobre é absoluto, nem sei o que pretendia falar quando abro a boca para responder, mas ela completa— Minha mãe está morrendo, Dakaria. Minha mãe está morrendo e eu não quero vê-la.
— Eu não... não...— não sei o que pensar, o que dizer.
— Eu também não sabia.— ela diz, por um instante me questionei se ela estava lendo meus pensamentos, mas aí concluí que ela quis dizer que não sabia que sua mãe estava doente.
— Eu sinto muito, Pam...
— Não. Escuta. Esse é o ponto. Eu não sinto. Eu não quero vê-la, Karia, na verdade, parte de mim está aliviada que ela vai morrer.— e então ela começa a chorar copiosamente e eu fico estagnada no espaço e no tempo.
Eu pensei que tinha entendido que minha amiga odiava sua mãe há muito tempo, mas parece que eu nunca entendi a real dimensão disso. Até agora.
— Quando eu... quando eu terminei de ler a carta, tudo o que eu pensei foi... nossa, finalmente. E, meu Deus, eu sou um monstro, Dakaria. Me desculpa, me desculpa, eu não queria pensar assim, mas eu.. e-eu não consigo...
Antes que ela continuasse, eu a puxei para o meu peito e a deixei chorar. Fiz-lhe carinho nos seus cabelos curtos lisos e a senti se encolher nos meus braços. Ela deve estar tão confusa.
— Eu não quero ficar sozinha, Dakaria. Mas eu também não quero vê-la nunca mais. O que há de errado comigo?— ela soluça baixinho e eu tento encaixar as peças.
Pamela não tem uma família estruturada, nem grande. Sem tios ou tias, sem avós. Sua mãe é tudo que ela tem e essa mulher a magoou tanto ao longo da vida que nem com sua morte próxima Pamela se sente capaz de perdoá-la. Mas aí ela morre e Pamela fica sozinha, sem nenhuma alma com a qual ela divida o mesmo sangue. Ela não tem como se manter, mas sei que Nik e eu vamos fazer o que for necessário para que pelo menos ela tenha o básico, mas nunca seremos capazes de preencher as lacunas essenciais na vida de Pamela.
E de repente eu me sinto tão mal.
— Você não vai ficar sozinha. Eu não vou te deixar sozinha.— a prometo— Você não é um monstro, e você não vai ficar sozinha.— eu fico lhe repetindo tais palavras até que ela adormeça molhando meu pijama com suas lágrimas. Inferno, o que eu faço?
A culpa vem me assolar e eu só fico me julgando por ter me ocupado por tanto tempo apenas com George, sem prestar nem atenção enquanto Pam recebe uma notícia trágica que vai mudar sua vida.
O que eu faço?
[...]
— Você tem que ir ver sua mãe.— lhe digo quando ela sai do banheiro envolvida por um roupão azul, os cabelos mais escuros por estarem molhados, os olhos vermelhos justificando sua demora no banho. As outras garotas já saíram para tomar o café da manhã, eu passei a noite em claro pensando no seu caso e agora estou sentada na beirada da cama tentando manter uma postura ereta, as mãos entrelaçadas no meu colo.
Vi Pamela baixar os olhos para o carpete, morder a bochecha e respirar fundo.
— Não. Eu não quero vê-la, Dakaria.— ela repete com ênfase como se eu não tivesse entendido a parte mais importante de seu discurso.
— Pam, não se sabe quanto tempo ela tem, sabe?— continuo, calmamente.
— Com muita sorte, talvez ela chegue até o fim do ano.— ela me olha, sua parte vulnerável de ontem a noite já fora arrastada de volta para o calabouço.
— Isso está muito perto.— resmungo, mais para mim mesma do que para ela.
— Não me diga.
— Não digo que precisa perdoá-la.— digo, levantando-me. Pamela sacode a cabeça e, agressivamente, começa a revirar seu baú, atirando algumas roupas no chão sem necessidade— De forma alguma. Eu pensei muito sobre o que me contou essa noite e acho que é melhor você ir.
— Eu não quero vê-la!— ela vocifera para mim, levantando-se.
— Você precisa vê-la.— eu mantenho o exato mesmo volume de voz— Não é por mim, não é por ela. É por você, Pamela. Se sua mãe realmente está no seu leito de morte, você tem que se despedir. Tem que falar, não para mim, nem para Nik, mas para sua mãe como se sente, como está seu coração. Tudo o que você carrega.
— Quer mesmo que eu vá falar na cara da minha mãe que eu quero que ela morra?!— ela me pergunta incrédula, os olhos brilhando. Comprimo os lábios e a encaro de volta em silêncio, ela sabe que eu não quis dizer isso— Como você quer que eu seja sincera, Dakaria? Mais do que eu fui ontem?
Baixei o olhar e balancei a cabeça. Não, ela não foi totalmente sincera. Eu sei que não.
— E-eu...— ela gagueja, agora, com a luz da manhã congelante atravessando as cortinas abertas, eu podia ver perfeitamente a dor em seu semblante, a mágoa, a confusão. E isso eu tenho certeza que entendo, porque não há dor pior do que perder alguém que sempre esteve ali.
Nem de longe eu odiei meu irmão como Pamela odeia sua mãe, mas, ah, houve uma época que eu fiquei com tanta raiva dele por ter me deixado, por ter me seguido, por não ter sobrevivido no meu lugar. Eu cheguei a falar que o odiava em muitas daquelas cartas que o escrevi, então eu sei como é.
Apesar de toda mágoa, à sua maneira, Pamela ama sua mãe, porque uma relação de mãe e filha é muito mais complexa do que isso e como todas as outras coisas, houveram momentos bons entre elas.
— Eu não consigo, Dakaria.— ela me encara como se eu fosse ter a resposta certa. Posso não ter, pode ser só uma ideia que vai piorar tudo. Não poderia insistir, não poderia obrigá-la, só podia fazer uma coisa.
Forcei um sorriso amarelo e levantei os ombros.
— Eu vou te apoiar no que você decidir.
Ela sabe que eu estou sendo sincera, com todo o meu coração.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top