Capítulo 7 - Lamentações ~ Parte 4
Sua cabeça doía, sua visão permanecia embasada enquanto toda a casa era consumida pelas chamas. Ele olhou ao redor, vendo a madeira do telhado desabar lentamente junto as telhas, fechando uma das passagens. Droga, eu não devia estar aqui, não de novo. Ele pensa, levando a mão ao rosto, sentindo suas cicatrizes abertas e em carne viva.
— Merda.
Correu para o outro lado, atravessando a porta antes que fosse bloqueada, caindo no cômodo que reconheceu ser a cozinha. Em cima da pia, havia uma janela ainda fechada. O guerreiro puxou a espada, usando-a para arrombar as pequenas portas fragilizadas, que caíram no gramado do lado de fora.
Quando tentou sair, algo o impedia, um tipo de barreira invisível. Ele estendeu a mão, tocando o ar, sentindo uma estrutura gelatinosa, que brilha em azul turquesa sobre seu toque. Heilos aumentou a pressão e a superfície se curvou, em contrapartida, se ajustou a sua mão e não fez menção em se partir.
O fogo aumentou, fazendo com que Heilos procurasse outra saída. Sem muitas opções, ele cruzou o fogo e retornou para a sala, se dirigindo para a porta de entrada e a arrombando com um chute, fazendo com que pedaços de madeira caíssem sob seu corpo.
Do lado de fora, um mar de sangue iluminado pela luz prateada da lua, e cadáveres de soldados inundou sua visão, enfeitando o jardim de forma macabra. Aquele cenário era familiar, então, houve um aperto em sua mente. Ele gemeu de dor, com as mãos apertando a cabeça. Sua respiração se tornou ofegante e seus pulmões, repentinamente, pareciam começar a não se encher de ar.
— Essas são as suas lamentações.
Uma voz sussurrou. Heilos, entrando em desespero, olhava fixamente para sua imagem refletida lá fora, pronta para matar duas pessoas em específico.
— Não faça isso...
— Veja o que você fez. Sofra com isso.
Quando seu reflexo concluiu o serviço, Heilos urrou, entrando em total insanidade. Ele avançou, atacando a parede gelatinosa, a atravessando com a espada e a rasgando da sua altura para baixo.
A memória se distorceu até desaparecer, o mergulhando no escuro.
***
Kauane olhou ao redor, se encontrando em uma floresta,e percebendo trajar penas e palha para cobrir suas partes íntimas. Um vulto passou por ela, um javali ferido, então, uma pessoa para ao seu lado. Outro nativo, assim como ela.
— Ubiratã? — sua voz sai em um sussurro, quase que imperceptível.
— Kauane? Porque está aí parada? — diz o nativo, de pele queimada e longo cabelo negro preso em um rabo de cavalo baixo e mal feito, trajando apenas uma roupa de palha, que cobria unicamente sua genital. Ele olha para Kauane, apontando com a lança para a direção para qual o animal fugitivo se dirigiu. — Venha. Temos de pegar o jantar.
Mesmo descrente, ela sorri.
— Claro! Vamos pegar aquele javali!
Ela arrancou um galho fino de uma árvore próxima e passou a acompanhar seu companheiro na caçada. O animal corria desesperado, fugindo de seus caçadores, até que algo o atinge, o deixando empalado. Era grande e maciço, uma tábua de madeira repleta de espinhos afiados.
O javali chorou, seu corpo perfurado o matava lenta e dolorosamente, por isso, Ubiratã puxou de seu cinto uma faca de pedra, então, ajoelhou-se ao lado do animal, enfiando a lâmina em sua garganta e acabando com seu sofrimento. Kauane franziu o cenho:
— Você devia tê-lo acalmado, agradecido seu sacrifício.
— Isso não é necessário. É o destino dos inferiores sustentar os superiores, portanto, ele é nosso alimento.
— Do mesmo jeito que você precisa ingerir testículos crus de animais para consumir sua fertilidade?
Quando seu rosto se tornou vermelho, Kauane começo a rir.
Para a ignorar, ele começou a esfolar o javali com maestria, tirando seus órgãos e pendurando na lança, para serem aproveitados depois. Enquanto isso, ela manteve sua atenção na mata, as plantas se movimentavam mais do que o normal em dias como esse, o que a fez erguer a lança improvisada.
— Seja quem for, saia. Já vi você.— ela diz com firmeza, logo alguém sai da mata, era um nativo de outra aldeia.
Ubiratã se levantou e fez a indígena abaixar a lança.
— Eu sou Ubiratã. Antes de mim, meu pai caçou nesta floresta com o pai dele. E logo ensinarei a meus filhos a caçarem aqui. Essa floresta é nosso território, e continuará a ser até que os deuses não permitam mais.
O visitante era baixo e mal nutrido, parecia não comer direito a muito tempo, e estava acompanhado de algumas mulheres, anciãos e garotos jovens demais para serem considerados homens, mas que estavam ali, empunhando lanças, prontos para defender o grupo. Ele os olhou em súplica e, ao reconhecer o território da tribo a qual Ubiratã pertencia, ergueu as mãos, mostrando peixes amarrados a um galho.
— Por favor, permita nossa passagem. Não desejamos conflitos, não neste momento. — Kauane o olhou com dúvida, ele resolveu se explicar. — Nossos guerreiros foram derrotados, nossas terras foram tomadas. Buscamos por um novo lar. Por favor, aceitem nossa oferta.
Com isso, Ubiratã entregou todo o javali para o nativo sem hesitar, pegando os peixes em seguida. Uma troca justa.
Com esse sinal, o nativo e seu povo começaram a caminhar. Logo, Kauane e Ubiratã se viram cercados, entretanto, não eram guerreiros, por isso, passaram pacificamente pela dupla. Eram apenas nativos inocentes, em sua maioria eram mulheres feridas carregando suas crianças e objetos mais valiosos, acompanhados pelos mais velhos, entretanto, eram mais do que a dupla esperava .Nesse momento, Kauane cometeu o maior erro que poderia cometer no momento, olhou nos olhos de cada um dos viajantes. O medo estava impregnado em suas almas, suas faces haviam sido marcadas pelo mais puro terror. Como se tivessem presenciado de perto a fúria dos deuses.
— Espere! — ela chamou o homem que entrou em contato com eles, ele a olha. — Do que estão fugindo?
— Da ira daqueles que vieram de além das águas. — ele responde, logo desaparecendo por entre seus companheiros.
Naquele instante, Kauane sentiu medo, lembrando-se do que viria a acontecer. Ubiratã, ao perceber, puxou a garota consigo para sair daquele lugar. Após um tempo de caminhada, ela foi capaz de ouvir vozes, a aldeia estava logo a frente.
Algumas mulheres banhavam seus filhos; as mais velhas brigavam com os maridos de suas filhas; as crianças brincavam de um lado para o outro; e outros grupos de caça chegavam pelos outros lados, trazendo consigo alimento.
Na grande fogueira, a carne foi assada, o cheiro estava forte o suficiente para fazer Kauane quase babar. O jantar foi farto, todos foram capazes de experimentar um pouco de cada carne presente.
Cedo da manhã, todos ainda descansavam em suas ocas, feitas de troncos e cobertas por tranco de palmeiras, no entanto, Kauane não se permitiu dormir em momento algum. Seus olhos, aguçados como os de uma águia, continuavam a observar todo o perímetro, sem deixar nenhuma informação para trás.
Em algum tempo, quando alguns homens já haviam despertado, todas as plantas em torno da aldeia passaram a se mover, então, homens trajando roupas de couro saíram da mata, portando armas de fogo.
Kauane se ergueu, puxando uma flecha e a pondo no arco. Não, eu não posso fazer isso. Se eu fizer, tudo estará acabado. No entanto, por mais que resistisse, ela tinha de seguir o fluxo da história, portanto, mesmo sem ser seu desejo, ela largou a corda de fibra, fazendo a seta cortar o ar e atravessar a cabeça de um dos invasores.
— Veja o que você fez. Sofra com isso.
A aldeia se tornou um pandemônio, todos entraram em frenesi e o combate entre os nativos e os estrangeiros teve início. Os que se consideravam civilizados passaram a atirar contra os "selvagens", que lutavam para proteger sua aldeia e não faziam ideia do que eram aquelas armas, que largavam fumaça acompanhada de um som ensurdecedor. A aldeia e seus arredores haviam se tornado um campo de batalha, manchado de sangue e pólvora.
Ubiratã, percebendo que seu povo estava em desvantagem, tirou Kauane da árvore e a arrastou com ele e outros nativos para a floresta, com alguns dos colonizadores atrás.
A melodia da água corrente se tornou mais perto, juntamente com o som aterrorizante de uma cascata, enquanto, aos poucos, os outros nativos que fugiam com eles caiam abatidos quando clarões iluminavam a mata.
— NÃO! — Kauane gritou, lutando contra Ubiratã ao pé da cachoeira, em cima da grande pedra que dividia a água em duas metades durante a queda. Com isso, ele pode ver o desespero brilhando no olhar de sua amiga. — NÃO PODEMOS IR!
— Temos de pular! Kauane!
— Não! Não podemos! Você vai bater a cabeça numa pedra! Vai morrer! Temos de achar outro caminho!
— Não tem outro caminho!
— Tem sim!
Desta vez, os papéis se inverteram. Kauane passou a levar Ubiratã consigo, pulando de pedra em pedra para não serem arrastados pela correnteza.
Entretanto, outro tiro ecoou, e o corpo do indígena se tornou pesado para ela. Ao olhar para trás, seus olhos se arregalaram, o peito de seu companheiro estava cheio de sangue. Ela viu seus lábios se contraírem em um pequeno sorriso e seus olhos se fecharam, seu corpo tombou em seguida, caiu no rio e sendo arrastado para a queda.
Kauane chorou, sentindo-se culpada por não ter impedido sua morte, mesmo tendo essa segunda chance. A memória se distorceu, tomando o rumo verdadeiro, onde ela, que estava afundando após pular da cachoeira, viu Ubiratã bater a cabeça em uma pedra submersa e morrer. Ela gritou, o som foi acompanhado por várias bolhas, então, sua visão escureceu.
— Essa é a sua lamentação.
Kauane soltou o ar, encarando a escuridão fria e cruel. Era impossível se esquecer daquela sensação, a sensação de seus pulmões estarem congelando toda vez que respira, a impossibilitando de falar.
Ela olhou ao redor, percebendo não haver nada, nem a água onde afundou, foi então que percebeu, ela havia atravessado um portal assim que chegou perto do fundo do rio.
Que sensação estranha. Tão familiar, mas tão estranha.
Kauane lembrou-se que Raniel havia lhe explicado sobre isso, ao atravessar o portal de qualquer jeito, ela havia ficado presa em uma fenda entre o espaço e o tempo, tanto de Hydarth quanto de Daechya. Deixando-a congelada por mais de quatrocentos anos, incapaz de envelhecer, incapaz de acordar das próprias memórias até ser despertada de seu sono.
O Zashti. Ele foi sua salvação. Quando usou o Kniga pela própria vontade pela primeira vez, acidentalmente a libertou de sua prisão.
Zashti, tudo que tenho hoje é graças a você. Devo cumprir o que prometi, ajudá-lo a completar sua missão.
Quando a escuridão começou a se quebrar e permitir a entrada de luz, todas as suas memórias passaram por sua mente, sem pausas ou cortes, ela sorriu, sentindo seu corpo voltar a se esquentar.
— Eu não me arrependo de nada.
***
Estava quase amanhecendo. Sieron mantinha as mãos estendidas para sentir a quentura do fogo, ele havia feito uma fogueira para esquentar os corpos de seus amigos e, quando percebeu que Kauane estava muito fria, pôs seu casaco de pele sobre ela.
O primeiro a despertar foi Heilos, puxando o ar com força e tossindo, xingando os deuses e a névoa. Por um instante, o viking se preocupou, mas logo relaxou quando o guerreiro ameaçou o espírito do lago de morte. Então, concluiu que ele estava muito bem.
Kauane foi a segunda a acordar, tossindo e cuspindo água. Para ajuda-la, Heilos virou-a de lado, para que a água fosse expelida com mais facilidade.
— O... O que aconteceu?
— Vocês foram arrastados para dentro do lago. — Sieron diz, respondendo a pergunta da nativa Hyd. — Os tirei de lá antes que fossem devorados. Vocês demoraram tanto para acordar, que pensei que haviam morrido.
— É. Eu morri. — Kauane e Sieron olham confusos para o guerreiro. — Morri por dentro. Aquele desgraçado me fez ver os meus arrependimentos...
— Ele fez o mesmo comigo...
— As nossas lamentações. — Heilos e Kauane dizem em uníssono, de forma triste e pensativa. Sieron apenas torce o nariz.
— Percebi. Mas Alisha ainda não acordou...
Naquele instante, cortes profundos começaram a aparecer no corpo da garota. Suas veias se tornaram visíveis sobre a pele, que aos poucos ganhava um som escuro enquanto o cristal da pulseira brilhava tentando conter aquela ação.
— Estão matando ela! Temos de acorda-la! — Kauane, agitada, pega um pedaço de madeira da fogueira e o preciona nas costas da mão da Hyd, a queimando. — Não teve efeito!
Sem aviso, a cor escura começou a recuar. O cristal brilhou em tons de vermelho e dourado. No lago, um redemoinho foi formado e a névoa retornou, se tornando densa com mais rapidez que antes; Heilos e Sieron puxaram suas armas; Kauane abraçou o corpo de Alisha para protegê-la; e o cristal, sobrecarregado, se partiu em diversos fragmentos.
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