Capítulo 16 - Família

Tudo havia sido consumido pela escuridão, o puro breu. Milagrosamente, um fio de luz alaranjado, que atravessava pelas laterais de algo denso, conseguia iluminar suavemente aquele lugar. Onde estou? Alisha se perguntava. Ainda com medo de algo ter errado, não ousava se mover. Mas sorriu quando, um tanto próximo, soou o canto assobiado de um Bem-te-Vi.

Bem te vi.
Bem te vi.

Então, sentou-se e olhou tudo ao redor. Estava em seu quarto, escuro por causa da noite e, pelas laterais da cortina, a luz alaranjada do poste conseguia entrar, revelando suas prateleiras, ainda ocupadas com as estatuetas que comprou, inclusive o dragão escarlate, que continuava glorioso em cima da rocha metálica. Alisha olhou diretamente para o dragão e sorriu de canto:

— É um prazer tê-lo conhecido, Krieger, dragão do fogo e da malícia. — ela começa, fingindo uma reverência respeitosa, então, seu sorriso se torna amigável demais, como o de alguém que não se preocupar com ameaças. — Mas, se você ousar devorar meu cachorro, sendo em sonho ou não, eu te garanto: irei tirar escama por escama sua.

Alisha se levantou, caminhando pelo quarto e percebendo que tudo estava como havia deixado quando partiu há aproximadamente seis meses Hyds atrás. De relance, pareceu que os olhos do dragão brilharam, aceitando o desafio e o achando divertido, então, fingindo que não havia visto nada, ela procura pelo livro.

Na mesinha, estava seu computador e, ao lado do monitor, havia algo grande. Era o livro que, estranhamente, não possuía mais sua aura densa. Estava trancado e a pequena peça octogonal jazia ao seu lado, parecendo uma pequena caixa de jóias prateada. Onde posso guarda-lo? Olhou ao redor, procurando um local para ele, então lembrou-se da parte do guarda-roupa que era reservada a sapatos. Arrastou a porta de correr para o lado e tirou todos os sapatos, pondo o livro lá dentro e o cobrindo completamente com os calçados, principalmente pantufas.

No celular, ela olhou as horas. Era 04h45 de uma madrugada de quarta feira. Alisha tinha aula, ela sabia, entretanto, estava muito elétrica para voltar a dormir. De rabo de olho ela viu seu tênis no armário e o pegou, juntamente com uma roupa de academia, então começou a se trocar. Não se esqueça de treinar. Zithar havia aconselhado.

Quando ligou a luz para pentear o cabelo e o prender em um rabo de cavalo alto, o espelho lhe revelou seu corpo. Aqueles desenhos, feitos com o tal óleo especial, não haviam desaparecido. Era bem como o homem havia dito: aquilo só iria sair se a pele dela fosse completamente retirada.

Logo, houveram sons de pancadas vindos de debaixo da cama.

Instintivamente, Alisha pegou a coisa mais próxima - nesse caso, a escova de cabelo - e apontou naquela direção. De debaixo da cama, um focinho preto e peludo apareceu, saindo dali juntamente com uma cabeça, cujos olhos castanhos olharam para ela com carência. A adolescente sorriu aberto e jogou a escova longe ao ver seu pequeno canino, então, se abaixou, o ajudando a sair debaixo daquela cama, que era baixa demais.

— Lucky! O que eu já disse sobre entrar debaixo da cama? Você fica entalado! — ela diz entre risos, recebendo lambidas carinhosas no rosto, tendo visão privilegiada da cauda felpuda balançar rapidamente de um lado para o outro. — Eu também senti saudades.

Ele se afastou. Se abaixou se espreguiçando, bocejando, então, se deitou e ficou a olhando, sem deixar de balançar a cauda. Alisha estranhou seu comportamento, então, seu sorriso desapareceu. Aquela atitude era normal demais para um cão que ficara seis meses sem ver sua dona.

Ela estranhou, até que lembrou-se de uma conversa que teve com Damian e Zithar na primeira vez que almoçaram juntos. Alisha voltará sã e salva para seu lar, e cuidaremos para que seus familiares não tenham memórias do seu desaparecimento. Ela trincou os dentes. Ninguém se lembraria de ela ter, misteriosamente, desaparecido por quase seis meses. Ninguém questionaria. Ninguém sequer desconfiaria. Daechya sempre foi um segredo e continuaria sendo até que ambas as dimensões começassem a interagir de tal forma que seria impossível não perceber, e agora, ela devia levar aquele segredo para o túmulo, ou então, desfazer-se completamente dele. Mas como? Ele havia sido dado para ela, não podia simplesmente deixar de lado, principalmente após jurar que as ações de Khoasang não sairiam impunes.

Suspirou irritada. Quando terminou de vestir a roupa da academia, pôs a coleira de peito em Lucky e desligou tudo, saindo do quarto com cuidado para que Richard não fosse acordado.

As garras de Lucky batiam contra o piso branco do pequeno corredor. Alisha, desesperada por silêncio, pegou o mascote nos braços e caminhou até a escada, pondo no chão primeiro o calcanhar e depois o peito do pé, visando evitar sons.

Ao passar pela porta do quarto de Richard, mesmo que ela estivesse fechada, Alisha pôde ouvir os sons do ventilador mesclados aos roncos altos do pai. Sorriu e abafou uma risada, impedindo que Lucky batesse as patas na madeira da porta, e desceu as escadas. 

Pegou a chave e saiu do duplex, trancando a porta com um click baixo e pondo Lucky no chão. O canino começou a caminhar, farejando todo o asfalto da estrada repleta de folhas secas e guiando Alisha pelo condomínio. As vezes ele parava para urinar um pouco em cada poste - para não perder o rastro de casa - e voltava a caminhar mais rápido.

As árvores, que possuíam poucas folhas, eram sacudidas pela fria brisa matinal, enquanto, ao longe, o sol lutava para nascer por entre os prédios e casas. Alisha inalou aquela brisa, agradecendo por ter conseguido perder o o verão, apesar de lamentar internamente ter perdido o outono.

Sua caminhada se tornou uma corrida quando sentiu seu corpo aquecer com o exercício. Lucky, com a língua de fora, aproveitava o vento na pelagem enquanto corria para acompanhar a dona. Alisha riu, percebendo que o cachorro estava totalmente bagunçado.

Em poucos minutos, chegaram a quadra do condomínio. Estava vazia. A quadra de futebol e basquete estava coberta por folhas secas. E os equipamentos de ginástica e malhação, instalados a muito tempo, estavam enferrujados e sem manutenção.

Alisha prendeu a coleira de Lucky a um dos equipamentos e se dirigiu para as barras. Sem se importar com a ferrugem, ela saltou se segurando na mais baixa e, com as pernas, começou a pegar impulso.

Estava sem pressa. Queria apenas aquecer, por enquanto. Respirou fundo. Seu coração batia mais rápido, o sangue corria por suas veias e seu corpo estava quente. Quando sentiu-se pronta, largou a barra e agarrou a que estava mais alta, sem deixar de pegar impulso.

Suas pernas subiram, ela girou na barra. Entrelaçando os dedos.  Mudando as mãos de lugar. Girando sem ameaçar cair. Lucky latia para ela, preocupado com o que a dona fazia, como se estivesse mandando ela parar e descer dali, mas ela não se importou. Alisha não desafiou só a ele naquele momento, como também a si mesma.

Na última vez que subiu, se manteve lá. Suas mãos seguravam com força na barra, mantendo-a de ponta cabeça. Seus braços, que antes tremiam, não tremiam mais. Ela não estava sentindo as dores daquele esforço. Os meses de treinamento que Heilos lhe proporcionou, também haviam a ajudado com aquilo. Era como Sieron havia um dia dito: ela sabia fazer, mas seu corpo não era forte o suficiente para aquilo. Claro, não havia sido em relação a ginástica, mas o que ele enfatizou também se aplicava a ela. 

Ela sorriu tristemente, imaginando se, de algum lugar, Heilos a observava e, com o objetivo de esconder o sorriso, virava o rosto e cruzava os braços fingindo que não havia visto nada.

Deixou-se cair quando o sorriso desapareceu. Seus tênis tocaram o chão e ela foi até Lucky, o desamarrando e deixando que ele a cheirasse e lambesse seu suor.

— Ei, está tudo bem, não precisa se preocupar.

Ele se colocou de pé nas patas traseiras para receber carinho nas orelhas caídas. Alisha estranhou ter de olhar para baixo para fazer isso, afinal, havia se acostumado com o tamanho exagerado de Nêmesis, que conseguia ser muito maior que ela mesmo nas quatro patas. O pequeno canino se esfregou na dona, e ela pôde sentir que ele tremia de frio. Ela o pegou no colo, o abraçando e correndo com ele de volta para casa.

— Rápido. — ela ri, vendo as orelhas de Lucky balançarem contra o peito dela.

Correu por um tempo até chegar em casa e entrar. O relógio da cozinha marcava 5h30 da manhã, ela decidiu tomar banho quente para se arrumar para ir ao colégio. A água morna a esquentou e encheu o banheiro de fumaça. No espelho, ela passou a mão no vidro, tirando a fumaça dele e olhando seu reflexo, pensando em como esconderia a estrela de oito pontas em sua testa. Do guarda roupa, tirou um estojo cheio de maquiagens antigas e começou a misturar diversas bases para conseguir o tom perfeito que iria mascarar as marcas sem alguém poder notar.

Após diversas tentativas, sendo algumas delas, frustradas, Alisha finalmente conseguiu esconder aquelas marcas, que ficariam empregadas em sua pele até sua morte. Inspirou e expirou, percebendo pelo espelho que seu corpo havia se tornado definido, como o de Kauane. Seus músculos haviam se desenvolvido, dando a ela maior resistência, bem como Sieron previra.

No horário certo, ela já estava pronta. Aquela calça jeans, juntamente com a blusa branca e o tênis, lhe causavam certo desconforto. Ela havia se acostumado a vestir preto, ou marrom. Havia se acostumado com... O anormal.

Tirou o tênis. Do fundo do guarda roupa, pegou um par de botas pretas e cano alto e calçou, sentindo-se um pouco mais confortável.

Saiu do quarto com a chave do livro na mochila e desceu as escadas.

O cheiro de café fervendo no fogão havia dominado a casa. O estômago de Alisha roncou e, após jogar a mochila no sofá, correu para a cozinha. Richard estava de pé, fazendo um par de misto quente e trajando uma camisa vermelha de manga longa, juntamente com uma calça jeans. Ele estava pronto para trabalhar, faltava comer.

— Alisha, como demorou. Achei que... — ele havia sido interrompido pela filha, que o abraçou apertado, visando se desfazer de toda a saudade que sentiu. Entretanto, ele não entende. — O que foi? Outro pesadelo?

— Não. Eu só... Vim dar bom dia.

Ele sorriu, dando-lhe um "bom dia" e a abraçando. Alisha queria chorar, fungar, o abraçar e ficar assim todos os dias, mas ela sabia que ele não entenderia. Ele não se lembrava. Logo, se desvencilhou do abraço, agradeceu pelo café da manhã e se sentou para comer.

Seus olhos se reviraram quando sentiu o gosto do pão, do queijo, do presunto e do café quente. Nunca havia parado para perceber o quanto aquelas coisas simples faziam falta. A última vez que comeu algo assim, foi na casa da feiticeira, que a alimentou com pizza, doces e refrigerante.

Richard olhava embasbacado para a filha. Ela comia desesperada. Tirava pedaços grandes e tomava um gole longo da cafeína. A jovem o olhou e sorriu, se desculpando, o rosto ficando vermelho de vergonha. Então, piscou algumas vezes ao ver o pai começar a rir, parecendo um retardado que ouviu a piada mais engraçada do mundo.

Os pratos foram lavados. Os dentes, escovados. E pai e filha estavam dentro do carro em pouco tempo. Ambos haviam ido pela pista principal, batucando e cantando, acompanhando as músicas que tocavam no rádio, conectado ao pendrive do adulto. Os vidros escuros estavam fechados e o ar condicionado, ligado. Não tinham medo de cantar errado, nem de cantar alto, apenas estavam se divertindo antes de um dia cansativo. Alisha sentia-se surpresa por lembrar-se da letra da maioria das músicas, ou ao menos, do refrão.

Ele estacionou na frente do colégio. Adolescentes e crianças entravam aos montes. Alisha apenas ficou parada, observando o grande prédio. Não queria entrar, mas tinha de agir naturalmente. Quando Richard foi embora, ela hesitou mais ainda. Entretanto, lembrou-se que alguém a aguardava, então, correu para dentro, cumprimentando o porteiro e subindo as escadas com pressa.

Ao chegar ao andar certo, abriu a porta com um empurrão, a ouvindo bater com força contra a parede. Alguns se assustaram. Outros a cumprimentaram. Poucos continuavam a conversar. E, no mesmo lugar de sempre, lá estava ela. Alisha sorriu, então, se dirigiu a amiga, tirando os fones de suas orelhas e a abraçando.

— Alisha. — Marla ri e retribui o abraço. Alisha sente o cheiro do hidratante, o odor de jasmim. — Bom dia, desastre ambulante.

— Bom dia, Marla.

Ambas se separaram. Alisha ficou olhando para ela, sorrindo, pensando em como foi capaz de sobreviver meses sem ela. Marla, aquela que, desde a infância, a apoiou. Aquela que foi seu braço extra sempre que precisava de ajuda. A defendia quando a chamavam de louca e fingia que via as Essências que Alisha via, apenas para levantar o punho e dar um sermão no nada. Alisha sempre soubera que ela não podia ver nem ouvir aqueles espectros, mas sempre ficara admirada com a coragem da amiga.

O professor de matemática entrou. Todos foram para seus lugares e a aula começou. Alisha estava desesperada, internamente. Afinal, havia perdido seis meses de aula. Seis meses. Havia sido muita coisa, e provavelmente iria repetir de ano.

Ela continuou estudando por todos os dias que se seguiram. E de novo. E de novo. E de novo.

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