XXXVIII. Guerra

As mais altas bandeiras estendidas em direção ao céu nublado prenunciam o começo da guerra, a tão proclamada batalha de Sunderland em fim chegou à muralha da metrópole. Dezenas de milhares de soldados, sob o mesmo brasão imperial, cercam a glória capital de Occitânia tão rápido, que as forjas continuam a fumegar como se nada acontecesse.

O marchar de tamanha legião vibra a terra e chacoalha a neve no topo das pedras empilhadas, tal exército parece imbatível enquanto cata o hino imperial o mais forte que pode. Além disso, seu poderio é ainda mais alavancado pelo montar de centenas de catapultas estilo manganela, aríetes e torres de cerco. Como um exército tão grande conseguiu se locomover sem ser percebido?

Na única defesa da cidade, os sentinelas tocam os sinos de alarme desesperados, no entanto, suas utilidades são questionáveis, dado ao fato de que é impossível que alguém naquela metrópole não tenha percebido a gritaria que verbera pelas vielas em pânico.

Correndo o mais rápido que consegue, Moretti se move em direção ao simplório castelo ao meio do desenvolvimento no coração da cidade. Ele nem ao menos sabe o que realmente está acontecendo no lado de fora, apenas escuta o marchar.

Em seu caminho, a neve que mancha o chão é totalmente desfigurada pelas centenas de passos desesperados dos moradores da futura ruína. Seus rostos expõem o pavor que passa por suas mentes perturbadas enquanto procuram seus familiares ou abrigos, todos igualmente inúteis naquela situação.

Uma multidão se formou nos arredores do centro político, com súplicas por proteção dominando os ouvidos do rei, apenas um ruído comum para uma pessoa que encarou a guerra por sete anos. O tamanho do desespero do povo é tanto que nem ao menos notam a presença dos sem mãos em seu meio, o que pode ser justificado pela falta de presença dele para o povo, um monarca discreto.

Seus olhos se prendem à principal entrada do edifício rochoso, no entanto, não conseguem ver se quer uma brecha naquele mar de pessoas, as quais empurram, cada vez mais, uma barricada de soldados com escudos e porretes. Suas posições estão prestes a serem quebradas pelo levante.

Obviamente, o grande general não se enfia naquela confusão generalizada, pois não há formas de entrar naquele local sem que dezenas de pessoas o sigam. Por consequência, seus passos vão na direção oposto, bem em frente a uma pequena praça vazia, a não ser pelo resto das tendas de tecido sujo e por dois soldados do reino.

Ao se aproximar deles, o rei é reconhecido e reverenciado brevemente, dado a urgência da situação. Os homens explicam que estão o aguardando para o início da reunião com o alto escalão militar e o acompanharão até lá.

Moretti nada diz, apenas demonstra pressa por seus olhos cansados e, assim, não demora para ser levado para uma passagem secreta perto de uma estátua.

Enquanto o caos se instaura por dentro da muralha, três pessoas se espreitam pelo bosque sem vida, vendo ao longe o preparar das catapultas pelo exército invasor.

Os olhos da jovem tremem ao ver os símbolos de seu passado dominando o horizonte prestes a ser arruinado. O escorrer de suor em sua pele e o forte bater de seu coração devido ao treinamento e ao beijo são ainda mais intensificados, mas dessa vez fortalecidos pelo medo.

Por alguns minutos, não há reação de nenhum deles perante os invasores, tudo ainda parece impossível demais para ser verdade, a guerra e a morte já deveriam ter acabado.

Todavia, tais preocupações são esquecidas ao se depararem com o aproximar de homens vestidos como a antiga guarda, os quais adentram na inóspita floresta, procuram provavelmente por sentinelas ou passagens secretas escondidas por baixo da neve. Por este motivo, os três companheiros se escondem mais fundo no bosque, até que não se distinguem dos pálidos brancos e marrons.

A boca da jovem se seca rapidamente enquanto observa, pelo topo das muralhas, o cessar das forjas fumegantes. Tal cena a faz lembrar das chamas que engoliam a cidade naquela noite tão clara, e isso a amedronta, pois uma parte de si não quer se recordar.

— O-o que vamos fazer? — Sua voz gagueja enquanto sussurra tão baixo, que ninguém em sua volta a escuta.

— Droga... — Sadh expõe o seu desconforto em seu rosto, uma mistura de medo e frustração por interromperem seu momento com sua amada. — De onde esse exército surgiu? Não deveria ter sentinelas avisando ou algo do tipo?

— Deveria. — Wem parece observar todos os cantos do cerco. — Alguém sabotou a cidade.

— Sabotou? Quem sabotaria Sunderland? — Sua pergunta não tem respostas claras, até mesmo para o brutamontes. Receoso, seu rosto se vira em direção à jovem quieta, desse modo, ele percebe seu tormento. — Está tudo bem, Aurora?

— S-sim... — Ela chacoalha a cabeça, tentando se trazer de volta à realidade. — Só estou com medo...

O tremor de seu corpo é suavizado quando algo quente a encobre, pois o passado deixa de afligi-la por um momento. Os braços de Sadh rodeiam seu corpo com um toque suave de companhia junto a um sorriso um pouco forçado dele para que o terror nos olhos já não tão verdes como uma esmeralda se extinga.

Tal afeto surte um certo efeito, a jovem sorri de volta para seu talvez já não amigo. O momento íntimo dos dois no meio da futura guerra é observado por apenas um ser, Wem, o que tal prende seu olhar atento nos dois por alguns segundos.

— Vamos embora. — O brutamontes anuncia com sua voz grossa, assustando um pouco os abraçados.

— O-o quê? — A sonhadora vira sua cabeça em direção ao amigo sem que mova seu corpo. — Como assim?

— Esta luta não é nossa. — Wem se vira para o bosque e dá alguns passos. — Se levantem logo.

— Mas e a Luar? O Moretti? A Amice? — A jovem aflita se levanta e lança seus braços aos céus como discordância.

— O procurado de mil moedas de ouro é o comandante desta invasão. — O mais velho nem se vira para falar, apenas se mantém estático. — Vocês não estão prontos.

— A-aquele dos folhetos? — O rosto do mais novo se apavora ainda mais. — Por que ele está aqui?

— Ele está... me procurando. — Ele volta a caminhar para a floresta. — Vamos.

— E-espera! — Aurora fala em tom mais alto, todavia, não o suficiente para alguém de fora os escute. — Por que ele está te seguindo?

O encasacado não responde, apenas continua andando para frente, como se não quisesse falar o motivo. Com o silêncio como resposta, Aurora dá passos rápidos em direção a seu companheiro e agarra seu casaco, porém é puxada junto a ele.

— Ei! Me responde! — A jovem diz enquanto seus pés deslizam pela neve, uma tentativa fútil de resistência.

— Vingança. Ele é o último general do Império Valôm. — Wem cessa seu andar, mas não devido ao esforço físico da jovem. — Abandonei a capital, ele tem motivos.

— Ah!... — Aurora solta a roupa do seu companheiro e se imerge em seus pensamentos.

Apesar do medo e do rancor em seu coração, a jovem sabe que abandonar a cidade que a abrigou não é o correto, ela não esquecerá como fez quando começou sua aventura.

— Não podemos deixá-los lá dentro sozinhos! — Seu rosto parece amargo, como se pensasse se realmente quer dizer aquilo que sua alma manda. — Eles são nossos amigos! Me ajudaram a me recuperar e a treinar, mesmo sabendo quem eu sou.

— Vocês podem morrer, não posso garantir sua segurança para sempre. — Wem a olha com preocupação, mas um sorriso parece o surpreender.

— Se eu me preocupasse muito com isso. — Aurora aponta para algumas cicatrizes em seu corpo. — Eu não continuaria até aqui!

— Você tem certeza, Aurora? — Sadh a olha com certo receio, mas recebe apenas um sorriso e um balançar como resposta.

— Fujam se algo der errado. — Wem fica de joelhos para sua altura corresponder com a deles. — Cuidarei do resto.

— Aé! — Aurora o abraça em uma mistura de felicidade, ansiedade e medo. — Mas como nós vamos entrar? Já cercaram tudo!

— Podemos usar a entrada da última vez. — Sadh aponta para o lago congelado, que ainda não foi cercado.

— Ah! Tem outro portão naquela direção? — A sonhadora não tem menor ideia do que ele se refere, ela não estava consciente quando adentrou pelo esgoto.

Enquanto isso, o túnel de pedra vibra devido ao gritar e ao desespero acima, com um pouco de terra gélida adentrando no local devido ao minúsculo mexer das rochas. No meio disso, três homens seguem o caminho iluminado por uma pequena e quase morta chama em uma tocha de madeira.

Os dois que assumem a liderança parecem estar com medo diante da morte, todavia, o mais velho logo atrás dele não aparenta estar tão apavorado, já a viu em sua frente há muitos anos.

Quando a passagem subterrânea tem seu fim, um dos soldados empurra a pedra sobre sua cabeça para o lado. Dessa forma, uma saída no pequeno castelo de pedra se revela, trazendo uma luz forte àqueles olhos já acostumados com a escuridão.

Um rosto amigável para o grande general surge desta pequena escotilha, Pascoal sorri forçadamente para o seu senhor, entretanto, é notório a preocupação por de trás dos dentes amarelados.

Segurando a madeira moldada, o servo ajuda o seu rei a sair daquele buraco, recebendo em troca um olhar não tão severo. Porém, os outros dois guardas não saem do túnel, o protegeram de invasões civis, afinal, é provável que alguém tenha os visto mesmo naquele caos.

— Quantos são? — Moretti caminha rápido por um corredor, sendo seguido por Pascoal.

— Estimam algo próximo aos 20 mil homens. — O servo lê um relatório em suas mãos suando frio. — Temos apenas 3 mil soldados regulares em nossas muralhas.

— Convoque ajuda dos templários na fissura. — O grande general mexe com sua mão estática em um dos seus bolsos, até que surja um cigarro com uma linha seja fisgado por um dos dedos de madeira. — Talvez sirvam para dividir o número de invasores.

— Mandamos pássaros com mensagens, mas não recebemos nenhuma resposta. — Pascoal fecha o relatório e o entrega diretamente à Moretti. — Devem ter sido atacados antes de cercarem a cidade.

— Não. Já saberíamos disso se fosse o caso. — A imagem de Meroveu surge na mente dele por alguns segundos. — Estamos sozinhos.

— Uma coligação dos Sacros-Reinos-Libertos deve chegar em poucos dias. — Pascoal tenta o tranquilizar.

— Quem está nos cercando? — Moretti parece já saber a resposta de sua pergunta.

— A resistência imperial... — A fala do servo é cortada.

— Então não chegarão a tempo. — Moretti cruza uma grande porta de madeira. — Prepare a fuga de minha filha, cuide-a com sua própria vida.

— Senhor... — O leal parece confuso com a afirmação de seu rei, pois não há formas de furar a grandiosa muralha com catapultas tão rápido. Todavia, segue exatamente o que lhe foi mandado.

Um alvoroço acontece no salão da guerra, com gritos enfurecidos e discordantes ecoando até para fora do edifício, desafiando, em igualdade, o apelo popular. Apesar disso, os generais corruptos e ineficientes saem derrotados daquela discussão, dado que a ordem do rei é absoluta naquele momento. Não há outros líderes para discordar.

Se retirando por passagens secretas, os soldados de alta patente se reúnem com seus homens medrosos e logo os movimentam à muralha e aos portões. Além disso, há uma convocação de civis para a guerra, com armas e armaduras simples de tecido esquecidas no estoque sendo distribuídas pelas ruas, formando batalhões completamente amadores e despreparados.

Cercado por uma guarda pessoal de soldados, Moretti caminha até o principal portão da cidade, onde preparativos para uma defesa imediata são feitos. Caldeirões cheios de cobre fervente são alocados no topo da muralha junto a bestas enormes para combater as torres de cerco e escadas. Além disso, um paredão de soldados com enormes escudos e lanças se forma ao redor da entrada, formando um legítimo corredor polonês.

Mesmo com tamanha defesa, o rei parece insatisfeito com a situação, pois um combate casa por casa parece cada vez mais vivido em sua mente. Os soldados não estão preparados para uma luta contra o irreal, o desconhecido.

Prova disso é a soberba na defesa absoluta na provável entrada, nem se quer consideram o romper das gigantescas pedras. Tal despreparo foi um dos fatores que tornaram a queda da capital do Império Valôm tão fácil, Moretti não irá repetir o mesmo erro.

— Peguem todas as armas e armaduras das forjas. — O grande general olha para um seus vassalos. — Por ordem da coroa, serão compensados posteriormente.

— Tal ação já foi feita, meu senhor. — O comandando da guarda pessoal se curva ao falar. — Mas não há um grande estoque de armamentos na cidade, praticamente só restou a produção diária.

— Como assim? — O olhar do rei é ameaçador, com as rugas na testa se misturando com as cicatrizes da guerra.

— Uma grande compra foi feita em todas as forjas ontem... a Igreja Católica comprou todos os armamentos. — O soldado se ergue novamente, não há mais nada a falar.

— Peguem qualquer coisa que possa ser usado como arma e deem aos civis. — Moretti olha para o chão com certo desdém, parece que se tornou um empecilho para um dos donos do mundo. — Após isso, os agrupem em grupos de 50 homens ao redor da muralha, serão nossos reforços.

— Assim será feito, meu rei. — O comandante se retira com alguns de seus subordinados, deixando apenas dois como guarda pessoal de Moretti.

— Vocês, vão para a catedral e sigam os comandos de Pascoal com suas vidas. — Moretti apenas os olha por meros instantes antes de avançar em direção ao topo da muralha. — Isso é uma ordem real.

Sem contestação, os soldados rumam em direção ao santo templo, deixando assim o rei desprotegido. Todavia, não é como se eles realmente ofereçam qualquer defesa útil para o grande general, seu tempo em serviço comprova isso.

Quando chega ao topo nevado, a imensidão de invasores impressiona os olhos sofridos do monarca, além disso, está perceptível que estão prestes a atacar devido à prontidão de seus instrumentos de guerra. As catapultas estão carregadas com enormes pedregulhos, torres de cerco já se enchem com centenas de soldados e o poderoso aríete de carvalho com 3 metros de diâmetro é ainda mais reforçado com uma camada de metal em sua ponta. A invasão é iminente.

Tal terror é confirmado com o som de uma trombeta, a Guerra de Sunderland se inicia.

O estrondo de milhares de passos ecoa pela metrópole, causando uma sinfonia de gritos de desespero junto ao cortar do vento pelas pedras e pelas milhares de flechas. As primeiras fagulhas de destruição são oriundas do bater dos projéteis na muralha, causando a morte de dezenas de soltados sobre a sua defesa e o estremecer dela. No entanto, a mesma resiste aos choques contínuos.

Após o primeiro ataque, os homens remanescentes começam a devolver a hostilidade com arcos e bestas, atrasando minimamente o avanço das tropas terrestres inimigas. Todavia, estas se aproximaram o suficiente para lançarem flechas pesadas e incendiárias sobre a muralha, a contornando e caindo sobre os tetos de palha e madeira das casas e sobre as barracas de tecido barato.

Desse modo, um enorme incêndio consome as moradas dos desesperados em pouco tempo, causando mais uma adversidade na tão árdua defesa. Apesar disso, o fator esperado pelos generais se concretiza, os invasores não conseguem perfurar o grandioso paredão de pedra e, por isso, sobem escadas de mesmo tamanho para tentar realizar a invasão.

Tal decisão se mostra falha, pois os caldeirões de bronze incandescentes são despejados sobre tais oponentes, destruindo a carne daqueles que ousaram desafiar o reinado. A defesa da cidade mostra-se consistente apesar da diminuta força braçal, causando pesadas baixas contra o invasor.

Entretanto, tal resistência inabalável começa a se deteriorar com o chegar dos mecanismos de guerra adversários. Apesar da maioria ter se arruinado no trajeto, algumas torres de cerco chegam à muralha, com suas dezenas de soldados sendo os primeiros a invadir de fato a cidade.

Ainda assim, a guarnição consegue segurá-los sobre a porta de suas construções, porque são mais bem treinadas e experientes do que meras milícias e bandidos. Neste momento, Moretti se encontra em frente ao portão junto a dezenas de soldados que o protegem, o rei sabe que a verdadeira batalha não será sobre as muralhas, afinal, se este fosse o caso, já teriam enviado o exército profissional dos imperialistas.

As rodas pesadas do aríete prenunciam sua chegada com o ruído de corpos esmagados em seu trajeto, ele está de frente ao portão. As inúmeras flechas de bestas infincadas sobre o teto da imponente arma mostram o quão dedicados foram defensores na tentativa de pará-la, tudo em vão, ela chegou ao seu alvo.

O barulho da corrente se mexendo expõe o primeiro choque do tronco reforçado contra o paredão de ferro. A muralha treme como nunca com a colisão dos dois gigantes, além de soltar pequenos pedregulhos, poeira e neve do embate, mas o colosso rochoso resiste mais uma vez.

Diversas batidas atordoam os ouvidos daqueles que apontam suas armas à entrada selada, todavia conforme os esforços do oponente se revelam fúteis à grandiosa engenharia da muralha, um sentimento de tranquilidade surge nos rostos dos prováveis vencedores desse cerco.

No entanto, tal emoção é completamente trucidada ao surgir do inexplicável diante de seus olhos apavorados. Um enorme barulho de metal se entortando ecoa pelas vielas em chamas, o portão impenetrável começa a ceder.

O aríete parece se despedaçar mais a cada batida, entretanto, suas marcas de força são seladas e expostas no metal deformado e nas pedras trincadas. Uma força inigualável colide a cada grito dos invasores, o que está empurrando a arma de guerra?

O suor escorre pelo rosto dos defensores, não só pelo fogo que consome vidas inocentes em suas costas, mas também pelo temor do inevitável conflito. Um pouco mais racional, Moretti se prepara para luta, roubando as sombras de seus próprios homens para reforçar a entrada. O medo nos seres deles é tanta, que mal parecem notar que as sombras do seu mundo sumiram, estão apavorados pela inevitável morte.

Com um arsenal de dezenas de escuridões, Moretti aponta as armas escuras em direção ao portão quase arruinado, ninguém passará por aquele pequeno estreito. E, assim é feito, o metal robusto se parte como argila e os blocos de pedra se desmancham como areia, os destroços caem sobre os já desnorteados enquanto uma avalanche de moribundos adentra pela entrada principal.

Quando o primeiro soldado ousa erguer sua lança contra os invasores, seus olhos se fecham diante o contato que nunca chegou. Seus ouvidos ouvem o dilacerar da carne, o choque do metal e o grito da morte, mas nunca tais desgostos se aproximam o suficiente dele, como se um exército lutasse em seu lugar, mesmo ele sendo o primeiro na linha de frente.

Seus globos oculares se abrem ao perceber um genocídio acontecendo em sua frente. A morte se deleita com o massacre dos invasores diante do nada, seus corpos são dilacerados com golpes de lanças e espadas, mesmo que não haja nenhuma os tocando, afinal, todos os militares olham aterrorizados para aquela cena.

Moretti é o que comanda a luta entre os dois regimes, suas sombras devastam qualquer um que tente ultrapassar as pedras que ele defende. Notando isso, os invasores na linha de frente tentam evitar pisar na pilha de corpos, mas os inúmeros em suas costas os empurram até o abatedouro.

O ar se torna pesado conforme o incêndio expele fumaça negra e os corpos soltam o cheiro do oblívio, o que dificulta a respiração daquele que tem seu corpo necrosado a cada instante. Entretanto, ele se mantém estável em frente à morte, mesmo que as manchas negras consumam seus braços e barriga.

O som do desmoronar de pedras chama a sua atenção por alguns instantes, a muralha volta a estremecer mais uma vez. Um pouco distante do enorme portão tombado, os blocos soltam poeira como se algo tentasse os atravessar com uma força inacreditável, uma força semelhante àquela que empurrou o aríete.

Movendo algumas sombras naquela direção, Moretti ordena que alguns soldados consumidos pelo medo cerquem a região, provavelmente uma nova entrada será feita na já não tão imponente muralha.

O chacoalhar da última camada de rochas prenuncia o novo fronte de batalha, com os soldados e sombras apontando suas lâminas em direção ao esperado mar de inimigos. Tal expectativa é quebrada com o surgimento de um ser estranho por detrás da poeira levantada com o rombo na muralha, que os aterroriza ainda mais.

Uma aberração avança implacavelmente sobre o paredão de lanças, porém os singelos espetos não são o suficiente para pará-la. Seu ser destorcido e repugnante se assemelha minimamente a um humano, mas sua altura de 5 metros junto a suas deformações mostram que aquilo não é natural.

Além disso, seus olhos são substituídos por enormes botões costurados em sua carne e sua boca é selada por fios que mais se assemelham a correntes encravados em seus lábios tortos. Tal ser irreal trucida aqueles meros soldados já apavorados, nem mesmo as sombras podem realizar algo além de supérfluos cortes na monstruosidade.

O medo finalmente se expressa no rosto do grande general ao ver a morte jogando seus homens ao fogo como carvão ou os desmembrando como folhas secas. Todavia, tal horror some tão rápido como surgiu, bastando um simples piscar para que o repugnante se torne uma grande bolha de sangue.

Os litros de carmesim deslizam pela terra já manchada pelo desgosto e chegam aos pés dos vivos e corpos dos mortos. Antes que qualquer um pudesse se perguntar o que realmente aconteceu diante de seus incrédulos olhos, centenas de invasores ocupam o espaço do deformado, finalizando o abate daqueles atordoados pelo ilógico.

Em resposta a isso, o rei rouba as sombras dos invasores no portão e as envia em direção ao novo fronte de batalha, o qual também é reforçado pelos civis mal equipados e despreparados. Eles não durarão muito tempo.

No meio do caos instaurado, o grande general tem dificuldade em manter seu foco em dois lugares, por isso, mal percebe o entrar de uma certa pessoa caolha. A enorme espada em suas costas se projeta tão alto, que se assemelha a uma lança no meio da carnificina.

Quando esta haste some devido ao sacar da arma, a guerra de fato começou, uma verdadeira continuação daquela noite tão clara pelas chamas, o último esforço do que restou do Império Valôm.

Entre os inúmeros soldados, uma espada sem ponta e robusta aponta para o rei enquanto sangue de seus inimigos e aliados caem sobre seu fio. Basta uma simples palavra para que a queda da maior cidade seja selada. "Usurpar".

Mesmo diante dos gritos de medo, das súplicas diante da morte, do ruído do queimar de histórias e do ecoar do encontro de metais, o rei ouve tal palavra como se ela surgisse em sua mente, como se fosse dedicada a ele e somente a ele.

Seus olhos observam a fonte de tal sussurro tenebroso e ficam incrédulos pela cena que veem. As sombras que roubou são desafiadas por semelhantes que não lhe pertencem, criando uma luta fútil entre coisas intocáveis, uma batalha sem fim.

No entanto, tal inutilidade serviu para abrir um caminho entre as sombras para um único homem. Sua espada de execução raspa pelo chão avermelhado, soltando faíscas pelo ar enquanto um pequeno sorriso marcado por duas cicatrizes em seus lábios dá Boas-vindas ao responsável daquele cerco, Arsor.

Os dois grandes generais se encaram por alguns instantes, com o forte ventar quente prenunciando a batalha de dois seres amaldiçoados. O primeiro movimento é realizado pelo invasor, mas não é agressivo, pois ele se limita a tocar em seu pescoço, que se necrosa com manchas negras.

Enquanto isso, Moretti não hesita em enviar mais sombras em direção a seu oponente, não há tempo a se perder. Todavia, o invasor faz o mesmo, o que ocasiona mais uma vez no inútil combate.

— Estou surpreso por você ainda estar vivo. — Arsor aponta sua espada para frente, está prestes a atacar. — Onde está o Wem?

— Ele não está aqui. — O rei se cerca de sombras, montando sua defesa absoluta.

— Não está? — O invasor avança em uma velocidade estrondosa. — Como é a sensação de mentir?

O conflito dos grandes generais se inicia, como mais um dentre tantos que lutam pelas suas vidas no meio da guerra. A escuridão inexplicável avança em direção ao caolho, mas este utiliza as sombras sobre seu domínio para retardar o ataque indefensável.

Moretti logo percebeu que o seu inimigo está poupando o escuro em sua volta, não o utilizando demasiadamente. Talvez isso seja uma limitação de sua maldição? Copiar algo com o poder limitado?

Não é essa a resposta, o infame grande general novato não teria sua fama com tão pouco, a grande promessa do antigo poder não seria tão fraca. Portanto, deve haver outra restrição, talvez o local onde a necrose surgiu tenha o forçado a se limitar, o pescoço certamente é uma área bem delicada.

Entretanto, o sem mãos logo nota o rápido expandir da pele morta, muito superior ao seu, mesmo com uma quantidade menor de sombras. Este é o verdadeiro custo daquela maldição, se apropriar de outras com o custo elevado.

Então, basta que o defensor segure a batalha até que seu oponente se mate pelo seu próprio poder, o que deveria ser possível caso Moretti conhecesse realmente a extensão daquela maldição.

Fugindo como um rato, Arsor apenas escapa das lâminas escuras enquanto tenta achar uma brecha para conseguir se aproximar, bem, pelo menos é isso que parece. No entanto, quando o mesmo se esconde em uma casa prestes a ser consumida pelas labaredas que tocam o céu, algo distinto acontece.

Uma luz branca inexplicável surge no interior da morada, escapando através das frestas das portas e das rachaduras das paredes. Tal luminosidade desafia até mesmo o brilhar do carmesim ardente, tão claro como a lua em uma noite escura.

Em resposta a isso, Moretti se protege com mais escuridão, as quais portam coisas reais como pedras ou corpos, não há o que se esperar do desconhecido. A dúvida logo foi resolvida quando um estrondo atravessa o campo de batalha e a luz se projeta para frente em uma velocidade inimaginável.

Um raio puro e belo atravessa o chão marcado pela morte, tornando a areia vermelha em seu caminho em um vidro retorcido e calamitoso.

Dessa forma, o brilho de cem luas chega no que se rodeia pelas trevas em um simples piscar. Não há defesa nem resposta para algo tão instantâneo, sequer há algum pensamento em resposta, a luz que ilumina seus olhos é a mesma que o atinge.

Apesar disso, o golpe devastador ainda é algo físico e lógico, mesmo que sua origem seja do inacreditável, portanto, ele segue as regras desse mundo. Por causa disso, o enorme clarão tende a chegar ao chão da maneira mais rápida possível, assim como todo raio.

O turbilhão energético chega até seu alvo, mas atinge somente uma das pernas do homem antes que encontre seu caminho ao solo. O resultado disso é a obliteração completa do membro.

Sua carne se queima até seus ossos rachados, enquanto sua pele derrete e se une às vestes carbonizadas. Além disso, seu sangue ferve no mesmo momento em que seus vasos estouram, causando uma hemorragia interna grave no principal defensor da cidade em chamas. Por causa disso, o grande general cai de joelhos, sem a capacidade de andar.

A dor tarda a chegar, pois a mente do rei ainda se foca em seu oponente, pois ele não parará com um simples acerto. O caolho surge atravessando a parede de madeira fragilizada da morada, o choque deve ter afetado ainda a durabilidade das tábuas, por isso, sua ruptura é tão simples.

Dessa vez, sua movimentação não se restringe à fuga, mas sim ao ataque, o último deles. Em seu avanço, as sombras não reagem em primeira instância, o seu mestre continua atordoado pelo golpe.

Esta era a maldição de um general do movimento do Contra-Império, um possível grande general caso a guerra civil continuasse. No entanto, tal conhecimento ocasiona, no saber do custo daquele devaneio, a perda parcial do movimento do membro afetado.

O correr inconstante e turbulento do seu inimigo apenas reforça isso, e por causa disso, Moretti teve o luxo de não reagir de imediato, ele nunca o alcançará dessa forma, porque as sombras já estão prestes a alcançar. Uma singela luta não tardará a guerra.

Mesmo que a escuridão quase o toque como uma navalha, Arsor não parece se preocupar com o vazio negro em sua volta, está convicto. Tal presunção se deve ao surgimento de algo em suas costas, os botões em uma cabeça distorcida.

O surgir do gigante costurado é a partir do completo nada, semelhante às lâminas de Sadh. Devido a isso, não há planos de contenção de tal monstruosidade, o sem mãos nem ao menos sabia se aquele ser pertence ao caolho, poderia ser de outro amaldiçoado no meio daquela guerra.

A carne retorcida não surge ao todo, por ser desnecessária naquela situação, o combate acabou. Apenas um dos enormes braços da criatura emerge da carne de seu dono e aponta para o rei, um golpe limpo e inesquivável pela condição do alvo.

Algumas sombras formam uma pequena resistência ao corpo deforme, entretanto, não conseguem deter tamanha força em tão pouco tempo. A carne dilacerada pelas lanças escuras não afeta a besta, nem ao menos parece sentir dor.

Nesse momento, o comportamento da criatura o lembrou de Wem, inconsequente em lutas e imparável. Além de os dois terem outra semelhança nefasta, ambos ultrapassaram a defesa impecável do antigo marceneiro.

Os braços necrosados defendem inutilmente o golpe devastador do horrendo, servindo apenas para diluir o quebrar de ossos em seu peito. O corpo velho do homem de bigode é arremessado sob as cabeças de seus soldados apavorados e exaustos pelo contínuo avançar da legião inimiga, colidindo assim com a muralha dita invencível.

A mente do derrotado reveza entre o branco e negro, com apenas um flash do mundo real se formando em seus olhos cobertos de sangue. Nestes vislumbres, ele nota seus braços dilacerados sobre suas pernas imóveis, mas o que mais o atordoa é o leve caminhar de Arsor em sua direção.

Moretti se desdenha pelo seu fracasso, tudo o que fez, tanto que sacrificou foi em vão. Nem ao menos poderá se despedir da sua filha pela sua fraqueza, assim como foi naquela trágica noite.

Mesmo que fracamente, o rei sente seu pescoço ser apertado enquanto sua cabeça é apontada para cima. Junto a isso, uma voz o situa do que lhe enforca, uma que não parece deter ódio ou rancor, apenas ansiedade. "Onde está o Wem?".

Nem ao menos o vitorioso pergunta sobre a sensação da morte, da decepção ou do arrependimento, isto não importa agora, não para sua mente inerte.

Completamente incapacitado de dizer algo, os punhos sujos de carmesim apertam cada vez mais de impaciência até que desistam desse interrogatório improdutivo. Por consequência, a espada de execução é sacada e apontada para os céus repletos de flocos de neve devorados pela fumaça antes que toque o chão, ela executará sua principal função.

Entretanto, seu trajeto é bruscamente interrompido, deixando apenas as correntes de ar gélido atingirem o quase defunto. Tal mudança repentina não se deve a nenhuma interferência externa direta, muito menos uma resistência do antigo marceneiro. Simplesmente Arsor tem sua obsessão clamada, uma que ele tanto busca, o ódio.

Seus olhos se vidram na direção que seu coração repulsa e, quando a sombra de um brutamontes se distingue da desolação e das chamas, o invasor abre um sorriso tenebroso, mas sincero.

Enquanto Wem se aproxima do epicentro do caos junto a seus companheiros, uma espada de execução aponta para sua imagem.

"Usurpar".

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