XXXVII. Efêmero

*Um mês depois, Sunderland*

A negra fumaça expelida pelas chaminés das grandes forjas nunca esteve tão alta, a produção é incessante. Por causa disso, uma nevasca de fuligem e neve cai sobre os tetos das milhares de residências dentro e fora das muralhas de pedra.

Praticamente não há construções complexas desprotegidas, pois o exterior é dominado por barracas montadas apressadamente, a crise migratória está em um ponto crítico. Demonstração disso são as vielas, que eram ocupadas somente por vendas e compradores, mas agora estes dividem espaço com refugiados e pedintes.

Apesar destes problemas, a metrópole ainda é vista, aos olhos do povo, como a cidade mais poderoso e rica do mundo, por isso tantos desabrigados a procuram como refúgio do pós-guerra. Por consequência, a criminalidade aumentou drasticamente por não haver empregos para tantos forasteiros, o medo nas ruas aumenta e mais armas são vendidas aos desesperados, causando assim a maior economia já vista na história da metrópole armamentista.

Aos redores da Catedral de São Rafael, o número de tendas aumenta drasticamente a cada dia, tornando o perambular por seus arredores cada vez mais difícil. Tal fato ainda é mais prejudicado pela falta de ordem deixada pela ausência dos templários, os quais não guarnecem mais o templo em uma suposta troca de contingentes, mas os novos homens nunca chegaram.

Fora deste caos, há uma floresta morta pelo inverno rigoroso, as árvores que ali se encontram não possuem nenhum vestígio de vida além dos seus galhos que apontam aos céus, está seca mesmo cercado de neve. Este ambiente abandonado pela vida é solitário, nenhum animal desperto anda por suas terras desoladas e, por consequência, não há presença humana.

Pelo menos é o que parece ao observar a imensidão do bosque, no entanto, com uma análise mais minuciosa, é possível ver quatro pessoas isoladas entre a massa seca, longe o bastante para não serem perturbados por bisbilhoteiros.

Enormes estrondos de metal junto ao cair de árvores revelam que combates fervorosos acontecem, todavia, não parecem realmente letais, pois dois deles apenas observam a luta dos mais jovens. As quatro pessoas cercadas pelo mar branco e marrom são: Aurora, Wem, Sadh e Moretti.

A jovem sonhadora corre entre a paisagem mórbida, se escondendo entre os tocos secos enquanto os toca até que comecem a se distorcer e se afundarem na terra congelada. Enquanto isso acontece, seu oponente, Sadh, não a deixa movimentar-se tão livremente com suas lâminas a seguindo em maior velocidade.

Em resposta a isso, Aurora ordena que as raízes já enterradas bloqueiem a rota das armas de seu amigo. Entretanto, elas são muito esgueiras e conseguem desviar da maior parte da madeira, além do que, as poucas que são encravadas se libertam rapidamente, cortando os pedaços das árvores.

Por consequência, um combate corpo a corpo acontece entre a destemida e as adagas voadoras, culminando no soltar de faíscas sobre a neve. Apesar de sua maior maestria com a espada, o enxame de cortes a encurralam completamente, o fim da luta parece próximo.

Todavia, o surgir de inúmeras raízes em volta da sonhadora a salva desse final quase certeiro, rodeando-a como uma muralha impenetrável. Sadh sorri ao ver o aperfeiçoamento das habilidades de sua amada, ela está se fortalecendo, o que trará uma menor dor para a mesma.

Mesmo com o orgulho em vê-la se aprimorar, naquele momento estão em um treinamento observado por dois grandes generais, por isso, ele não hesita em ordenar que suas armas retalhem a madeira gélida para alcançá-la. Tal pedido não demora mais do que alguns segundos, não pelos cortes em si, mas sim, pelo desfazer de tal barreira, com a jovem saltando e correndo para longe.

Apesar dessa atitude inesperada, o que mais chama a atenção é o sair de uma certa quantidade de fumaça do local, mas não há indícios de chamas. Será que ela se cobriu para tentar queimar a madeira e falhou no processo?

Se realmente for isso, a estratégia foi sólida, no entanto, o queimar de uma madeira praticamente congelada é improvável, ela apenas sacrificou árvore sob o seu domínio.

Com um sorriso, a jovem tenta novamente se distanciar o máximo que pode das adagas, tocando na madeira que consegue para distorcê-la. Tal comportamento é ilógico a princípio, pois o loiro detém uma clara vantagem em combates à distância. O que será que a baixinha planeja?

Ao vê-la sumir entre o bosque morto, Sadh é obrigado a segui-la para que ela não fuja do alcance de suas adagas. Desse modo, o combate se torna ainda mais dificultoso devido ao número de obstáculos da paisagem, em muitas vezes ela se esconde em seus pontos cegos.

Todavia, em certo momento a Aurora é cercada mais uma vez, com as lâminas apontando para seu peito enquanto se movem lentamente sem perder ou ganhar distância, apenas trajetórias irregulares para evitar as raízes.

— Você desiste agora? — Sadh se aproxima com um ar vitorioso.

— Não se pode desistir tão fácil! — Aurora se mantém em guarda. — Eu ainda vou vencer!

— Vamos fazer uma aposta então. — Sadh segura duas de suas lâminas. — Quem perder deve qualquer coisa para o vencedor!

— Qualquer coisa? — Aurora fica alguns segundos pensando em incríveis pedidos até achar o perfeito. — Você vai ter que me comprar outro daquele queijo reblochon!

— Se você ganhar. — Sadh abre um pequeno sorriso, também parece já ter feito a sua escolha. — Vamos recomeçar então.

— Está bem! — Aurora aperta a espada com ambos os punhos, todavia, só a mão do lado esquerdo faz uma pressão relevante, as sequelas das batalhas passadas estão cravadas em seu corpo. — Se prepare!

Sadh avança bruscamente com as outras cinco adagas flutuantes, é impossível dela conseguir repelir tudo isso. Em resposta, diversas raízes saem da terra e tentam parar os fios do metal, porém são destruídos em pouco tempo.

Além disso, eles são ineficientes em parar Sadh em si, com um duelo entre os dois acontecendo com o chocar de seus metais. As faíscas incandescentes dominam o claro dia branco, adicionando tons de vermelho e amarelo em um ambiente tomado pelo branco e pelo marrom.

Em estilo de luta, a de olhos negros e brancos é nitidamente superior ao seu adversário, o qual mal consegue acompanhar a maestria dos golpes mesmo com duas espadas. Sadh já notou isso anteriormente, por algum motivo a jovem detém o melhor combate dentre os três de seu pequeno grupo, mesmo sem ter nenhum treinamento adequado para tal.

O loiro se pergunta o que exatamente é Aurora, ela utiliza maldições, no entanto, não parece sofrer os custos delas, mesmo não as detendo em sua espada. Esta foi a única alternativa de resposta que ele encontrou para justificar sua amizade com Wem, não é possível que ela sinta o ódio e mesmo assim fique ao lado dele.

Cortando sua linha de pensamento, a sonhadora arrisca um chute na cabeça de Sadh enquanto distrai as mãos dele com sua espada. Notando isso, o mais novo desloca um de seus braços para se defender do golpe, no entanto, somente com uma arma e com a concentração abalada, a de olhos pretos e brancos afasta seu outro braço.

A distância entre a sua espada e a dele não é tão grande assim para garantir um golpe com o metal. Por causa disso, ela prefere enfincar sua arma na neve junto com o prender de seu pé no outro braço do loiro. Dessa forma, ela consegue dois pontos de apoio para tentar um segundo chute no mesmo alvo, precisando girar seu corpo para baixo para alavancar o golpe.

Com desespero, Sadh traz seu braço de volta para defender da pernada, garantindo que sua cabeça não fosse acertada. No entanto, imediatamente após o segundo chute falhar, ele sente seus ombros serem empurrados atrás, a garota os usou para pular para trás.

Seu corpo de ponta cabeça gira enquanto ela se afasta, desse modo, sua cabeça sobe enquanto suas pernas descem. Tal movimento inesperado tem um motivo esplêndido, a espada outrora presa no branco agora aponta diretamente para o pescoço de Sadh, o fim da luta parece próximo.

Quando o braço da mulher avança em uma direção levemente ao lado da carne de seu amigo, uma adaga intercepta o golpe, impedindo a única chance de vitória da Aurora até então. Por causa disso, a jovem cai desengonçadamente de bunda na neve fofa, mas não demora para se erguer e voltar a correr no meio do bosque, apenas esperando mais uma brecha para atacá-lo novamente.

— Que fod... digo... volta aqui! — Sadh corre atrás dela, ainda desnorteado com o glamoroso golpe que quase o derrotou.

Assistido ao embate de longe, Wem e Moretti veem o rápido progresso dos mais jovens, principalmente na utilização de suas maldições. A maestria, a tomada de decisão e a experiência se tornaram um ponto menos fraco, mas que ainda precisa ser muito bem desenvolvido.

Apesar de seu desconforto, Moretti se mantém focado no treinamento, com seus olhos apenas acompanhando o movimentar dos participantes. Por causa disso, um silêncio dominou o ambiente até que o grande general vire sua cabeça.

— O que ela é? — Moretti olha para suas mãos de madeira. — Não parece ter uma maldição.

— Eu não sei. — Wem responde após alguns segundos.

— Ela gosta de você, não é afetada pelo custo de nenhuma maldição. — O bigodudo encara finalmente o Wem. — Quantos semelhantes você já enfrentou?

— Um. — O brutamontes mantém sua expressão neutra.

— Ela é igual a ele? — Moretti suspira e se levanta do galho seco.

— Não, ele não tinha o lado... humano.— Wem pensa um pouco antes de dizer a última palavra.

— Humano?... Voltarei ao castelo. — Antes de andar, Moretti olha a jovem uma última vez. — Não a deixe perder seus olhos verdes.

Wem nada responde, mas parece compreender as palavras do já não inimigo. Enquanto os passos do rei são apagados na neve, o ruivo observa o desfecho daquele treinamento.

Aurora ainda insiste em fugir, mesmo tendo uma clara vantagem no combate próximo. Tal fato inquieta Sadh, o qual se pergunta se ela compreendeu a dinâmica da luta, mas é obvio que sim, ela já utilizou desta vantagem para quase vencer.

A única resposta plausível na mente do loiro é que ela está brincando, esticando o máximo que pode para se divertir ainda mais, isso, sim, é bem a cara dela. Por este motivo, Sadh decide acompanhá-la nesta brincadeira, pois não se divertem assim há muito tempo, desde aquele bosque na vila ferreira.

Lançando suas adagas sem preocupação, Sadh tenta acertar uns tabefes com elas para simular aquele dia, no entanto, a mesma desvia e repele os ataques com maior facilidade que outrora. Por causa disso, ele decide interceptar o caminho dela para mais uma rodada de combate físico. Este será o seu maior erro, a jovem deseja muito o seu tão aclamado queijo.

Notando a vulnerabilidade de seu amigo, Aurora faz sinal com a mão direita, como se ordenasse algo. Dessa forma, o mais novo sente o chão sobre seus pés tremer, mais raízes o atacarão.

Entretanto, dessa vez o avançar parece se diferir, pois a força do deslocamento da madeira é superior a todos os anteriores. Além disso, os buracos próximos causados por raízes vencidas começam a expelir fumaça, uma escura e fuliginosa. Neste momento, Sadh se lembrou daquele casulo, a jovem sonhadora conseguiu colocar fogo na madeira e o enterrou para que se propagasse sem risco de ser apagado.

As chamas saem da terra gélida enquanto consomem a madeira retorcida, cercando o garoto com fumaça e calor. Apesar da aparência brutal, o fogo parece fraco e instável, como se as árvores resistissem a se tornarem cinzas. A decepção fica estampada na face da jovem, pois esperava que um paredão vermelho surgisse para finalizar a luta, o que obviamente não aconteceu.

Desse modo, Sadh consegue fugir facilmente do cerco por meio de buracos na camada flamejante, destruindo completamente o plano de Aurora, que consiste em atacá-lo de surpresa por detrás do fogo. Além disso, as raízes ainda foram danificadas pelas inúteis chamas, tornando-as ainda mais fáceis de serem devastadas pelas adagas.

Por causa deste fracasso, a sonhadora decide reunir o pouco carmesim quente em volta de sua espada, tornando-a tão brilhante quanto o coração de uma forja. Após isso, ela balança seu minúsculo e fraco sol em direção ao seu companheiro, o que ocasiona no deslocamento parcial das labaredas e, por consequência, numa rajada de fogo.

Tal habilidade surgiu quando ela se lembrou da luta contra a Rell e copiou esta utilização do queimar, apesar de ainda ser notavelmente mais fraca e instável do que a da utilizadora original. Por efeito disto, o ataque a longa distância é repelido pela coligação de cinco adagas, as quais se juntam para formar um escudo que dissipa o fogo sem combustível.

Imediatamente depois da defesa, a jovem sonhadora corre em direção ao loiro o mais rápido que consegue para fazer um último ataque total, pois ela não tem fogo o suficiente para ultrapassar as lâminas e nem tempo para gerar novas fontes de calor, precisa vencer rápido.

O chegar da lâmina em chamas parece hipnótico e irreal, porque as labaredas tocam as mãos e o rosto da jovem já tão marcada, mas não adicionam novas cicatrizes, ela é completamente imune ao fogo.

As cinco lâminas livres avançam na tentativa de pará-la, no entanto, são repelidas como anteriormente, pelo menos servem para reprimir a já limitada chama. Quando o combate está prestes a acontecer, uma vitória para a sonhadora se torna cada vez mais plausível, porque o fogo lhe dá uma grande vantagem, porém ela ainda tem que pensar uma forma de usá-lo sem que machuque seu amigo.

Todavia, tais preocupações se tornam obsoletas no momento que Sadh abre um sorriso convencido de um vencedor. Basta apenas uma palavra para mudar totalmente o rumo provável daquela batalha, "dash".

Aurora sente o frio das placas de metal em seu corpo se posicionando sobre suas pernas e braços para evitar que ela dê mais um passo se quer. Apesar disto, o que mais a assusta é um fio de lâmina apontada para seu pescoço, a batalha termina.

O mais novo mantém suas duas adagas em volta da cabeça da sua oponente, se posicionando por detrás do corpo dela para não ser queimado pela espada flamejante, uma vitória sólida e absoluta. O tal sorriso não foi à toa, ele garantiu o que quer.

Após um tempo aceitando a derrota, Aurora suspira e levanta suas mãos para se render, o treinamento acirrado acabou. Em resposta a isso, Sadh abaixa suas adagas imediatamente para abraçá-la, são amigos no final de tudo.

Um pouco receosa, Aurora o abraça de volta, além do que não demora muito tempo para esquecer o amargor da derrota. Apesar do fracasso de sua estratégia, é inegável o seu aprimoramento no combate, ela só precisa de mais alguns treinos para aperfeiçoar o uso da "combustão" e da "obsessão" em sincronia.

— Você lutou bem! — Sadh mantém um sorriso amigável enquanto o abraço termina.

— Obrigado! — Aurora desvia o olhar para as madeiras dizimadas. — Mas eu podia ter vencido se não fossem essas raízes congeladas bobocas! — A sua cara fica emburrada.

— Você quer muito o queijo, não é? — A jovem confirma com a cabeça enquanto Sadh dá uma pequena risada. — Vou comprar ele para você então.

— Sério? — Os olhos verdes dela se tornam mais brilhantes do que a mais bela das noites.

— Sim, mas ainda vou pegar o que você me deve. — Sadh fala enquanto seu rosto se aproxima do dela.

— Está bem, mas eu não tenho muito dinheiro, mas posso conseguir se... — Sua fala é interrompida, ou melhor, sua boca é bloqueada.

Os lábios do loiro tocam os de Aurora suavemente, enquanto ele segura o queixo dela de uma forma gentil. A surpresa e a confusão da garota ficam estampadas em seus olhos incrédulos junto ao pequeno empurrar de seu amigo, mas basta uma pequena insistência por parte dele para que ela se renda ao afeto, assim como fez com o abraço.

Suas línguas se encontram enquanto a mente da jovem  confusa se torna branca com o tempo, a sensação é muito estranha, mas a agrada de certa forma, pois sua face não para de esquentar. Completamente corada, ela se entrega ao momento, tendo seu deleite junto ao tão apaixonado.

Observando de longe, Wem desvia o olhar da cena romântica para o campo com árvores retorcidas e parcialmente enterradas. Porém, tal atitude não parece ser ciúme, pois sua expressão se mantém a mesma, apenas uma cena habitual que ele já viu ao longo de seus séculos, uma que ele nunca poderá ter.

Após alguns minutos tão curtos, mas ainda assim tão longos, os lábios úmidos se separam para dar lugar a olhares apaixonados. O coração da jovem bate muito forte, mas não tanto quanto ao que roubou seu primeiro beijo, se intensificando conforme seus olhares se aprofundam um no outro.

Sua mente ainda se mantém atônita, tudo isso é muito novo para ela, nunca imaginou que alguém nutria tão belos sentimentos por si. No entanto, a face apaixonada do loiro talvez não fosse correspondido de igual força ao da jovem que acabará de beijar.  Aurora nunca enxergou seu companheiro dessa forma, apesar de não odiar o ato de afeto, seu coração entra em um pequeno conflito com sua cabeça.

"Será que ele gosta de mim? De verdade? Ou  só foi um momento de diversão para ele?". Tais perguntas atormentam ainda mais a sua confusão. Apesar da óbvia resposta, a inocência da jovem ainda faz a temer pela resposta que nunca virá.

 Um som estrondoso de trombeta ecoa pelas árvores enquanto bandeiras imperiais milhares de bandeiras estendidas em direção aos céus se aproximam da cidade tão imponente.

A guerra de Sunderland começou. 

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