XXXV. Trégua

A mente humana é confusa, pelo menos a dela é. Afinal, diversos sonhos estranhos passam diante de seus olhos fechados, o que eles significam? São soltos demais.

Um deles toma destaque no meio de tantos outros deformados ou errados. Nesta alucinação, somente uma imagem estática e breve surge, um sorriso alegre de sua mãe. Apesar do pouco tempo, uma mistura de sensações surge em sua alma, uma com saudade e a outra com incômodo. Tais sentimentos contraditórios são justificáveis, esta é uma das lembranças que não foi censurada, escondida no fundo do seu ser.

Por que a mera imagem de sua mãe causa tanta divergência? Por que sente saudade de alguém que não a amou? Algo está muito errado, incerto e borrado.

Aos poucos, o profundo sono enfraquece diante do mundo real, não importa o quanto esconda de si mesma ou da realidade, as consequências sempre surgem. Talvez fosse bom continuar naquela ilusão, mas as margaridas criam raízes mais profundas a cada dia, a cada memória restaurada.

Os olhos da jovem tão cansada e ferida se abrem lentamente, as suas pupilas são muito pesadas naquele momento. Tudo que via a princípio é um agitado teto de madeira, que vibra conforme impactos fortes ocorrem.

Todavia, tal visão logo é sobreposta por uma face preocupada e aliviada de uma adulta jovem, Amice a observa. A devota abre um pequeno sorriso forçado, está tentando acalmar a jovem quase inconsciente, pois a dor não demorará a chegar.

Aurora sente suas mãos formigarem por alguns instantes, após isso, uma pontiaguda e áspera dor domina ambos os membros machucados, com maior destaque no esquerdo. Quando seus olhos descem em direção ao braço, a jovem percebe o que acontece diante de seus olhos, seus dedos quebrados e curvados são recolocados em seus devidos lugares pela freira, causando uma enorme agonia na recém desperta.

O processo é extremamente violento e doloroso, haja vista a deformação dos ossos das mãos. Lágrimas escorrem dos olhos da jovem, se tornando mais espessas conforme mais dedos são tratados. Nem ao menos ela pode se contorcer de angústia, cordas apertadas a prendem na cama trêmula.

Quanto mais tempo a recolocação demora, mais as amarras são pressionadas e esticadas, parecem prestes a ceder à tormenta daquela jovem. Se intrometendo na operação, o rosto amigável de Luar surge na tentativa de reconfortá-la, mas a mente dominada pela dor é ineficaz na compreensão das palavras gentis e incentivadoras de uma criança. Dessa forma, não pode ajudá-la naquela tortura necessária.

Quando todos os distorcidos retornam às suas posições originais, a jovem sonhadora ainda é incapacitada pela agonia estridente, demorará algum tempo para seu consciente esquecer tamanho desprazer. Ao mesmo tempo da agonia, Aurora nem percebe que seu amigo Sadh também está presente no cômodo, porém, ainda incapaz de falar devido ao deslocamento da mandíbula.

— Como você conseguiu a deslocar dessa maneira? — Bjorn pergunta ao analisar o osso. — Isso doerá muito.

Em um movimento rápido e forte, o padre consegue empurrar a mandíbula de volta ao seu lugar, deixando uma dor enorme como lembrança daquele fracasso. Com isso, Sadh finalmente consegue gritar para aliviar seu longo sofrimento, o padre realmente não poupou palavras.

Alguns segundos depois, mexendo a sua boca, Sadh constata que ela foi realmente realocada adequadamente. No entanto, a sua musculatura facial está exausta pelo esticar exagerado, pelo menos poderá falar sem grandes problemas no futuro.

Após isso, o devoto abre a sua boca ensanguentada e faz um pequeno curativo ao redor da língua cortada por seus próprios dentes, o qual não demora a se manchar de carmesim. Devido a isso, o loiro fica alguns segundos movendo o membro retalhado, é estranho a sensação e o falar.

— O que aconteceu com vocês? — Bjorn pergunta assim que Sadh parece recuperar. — O que está acontecendo lá fora? A catedral irá desabar!

— Bem... — O loiro olha para a Aurora em sofrência enquanto sua mão é imobilizada. — Moretti atacou a minha... filha... e eu tentei a proteger. Não sei o que aconteceu após isso.

— Moretti a atacou? — Bjorn olha a Luar. — Eu disse que essa amizade não acabaria bem!

— O meu pai não faria isso! — A criança o defende. — Meu pai é um herói de guerra! Algo deve estar errado!

— Seu pai? — Sadh a olha com certa raiva.

— Sem brigas! — Amice fala ao terminar de imobilizar o último dedo. — Temos que ir para um local seguro.

— Não tem como saber onde é seguro! — O padre olha ao redor, estão em um pequeno armazém. — Para a catedral inteira estar tremendo assim, dois exércitos devem estar se enfrentando!

Bjorn desvia seu olhar para o chão e se pergunta quem está invadindo a catedral, a santa igreja? Por que Meroveu faria isso? Não há lógica.

Ele sabe que não é isso que está acontecendo lá dentro, se tivesse uma batalha generalizada, os soldados do reino protegeriam a cidade, mas não há movimentos além do cair da neve lá fora. Apesar de sua fé, talvez os mitos que ouviu sobre seres com capacidades sobre-humanas sejam reais, demônios se enfrentam nesse momento.

— Sadh? — A voz da jovem ferida corta o pensamento de todos.

— Aurora! — O companheiro caminha até ela e a abraça gentilmente. — Me desculpe, e-eu não consegui te proteger.

— Tudo bem. — A de olhos verdes sorri levemente. — Ainda estamos vivos.

A jovem percebe a dificuldade no falar de Sadh, além do que sua voz parece estranha devido à falta de parte da língua. No entanto, ela apenas aprecia isso, ele tentou realmente a proteger, mesmo que tenha se exposto. Ela promete a si mesma que retribuirá da mesma forma.

— Eles estão lutando? — Aurora cochicha no ouvido do loiro, para que ninguém mais ouça.

— Sim, eu vi o começo da batalha. — Sadh responde na mesma altura. — Não temos como participar, estão em um nível completamente diferente.

Aurora fica receosa, com o escalonar daquilo. Mesmo que Moretti tenha a torturado, ele ainda é o pai de Luar. O que aconteceria com os tratamentos dela, caso ele falecesse? Ela morreria pela sua doença?

Além disso, pelas histórias que a garotinha conta, o grande general não parece ser uma má pessoa, porque sempre tentou a proteger. Ele tem bons motivos para detestar a Aurora, seja pela proteção da filha ou pelo rancor da guerra, por isso, suas ações são justificáveis.

— Nós temos que parar a luta. — A jovem fixa seu olhar na criança, a qual retribui com sorriso.

— Não precisa se preocupar, Wem vencerá, eu tenho certeza disso. — Sadh odeia admitir isso.

— Não estou falando disso... ele é o pai dela. — Aurora continua no abraço para os demais não suspeitarem do diálogo.

— Ele quase te matou... quase me matou! — O mais novo não aceita tal desculpa.

— Se ele morrer, vamos ter que sair da cidade... — Aurora sai do abraço e o olha fixamente nos olhos enquanto coloca suas mãos imobilizadas nas bochechas dele. — E eu ainda estou muito machucada para andar, não quero ficar presa nas costas de outros de novo. — Ela sorri.

— M-mas... — Sadh cora um pouco com tal sorriso em sua frente, ele não consegue contrariá-la nesse ponto, há certa lógica em suas palavras. — O que você quer fazer? A gente não consegue imobilizar nenhum deles.

— Não precisamos disso, eu acho. — Aurora abre um sorriso ainda maior e o abraça mais uma vez. — Tenho uma ideia! — A jovem encara a criança que se lambuza com um pedaço de carne de porco.

Enquanto esse diálogo acontece, a batalha dos mais fortes apenas se intensifica, com as paredes estando cada vez mais perto de desmoronar. Diversos escombros mostram o rumo da batalha tão letal, bastando segui-los para achar o epicentro do tremor.

A grande Capela de São Rafael é devastada neste confronto, nem mesmo as imagens de santos podem se salvar da destruição. O primeiro a aparecer entre as cortinas de poeira é Moretti, o qual já acumula cortes e lesões pelo corpo, sua defesa impecável está falhando.

Por sorte, nenhum é fundo o suficiente para matá-lo de hemorragia. No entanto, o real perigo está no custo de sua maldição que o corrói lentamente por dentro.

Mesmo diante da sua situação precária, todas as sombras possíveis se tornam seu arsenal, o qual se mostra ineficaz para deter o brutamonte, afinal, ele ainda continua atacando. Wem surge dos escombros gravemente ferido, diversos cortes profundos assolam seu corpo, porém, estes são rapidamente regenerados, como se nunca tivessem existido.

Além disso, o braço de cristal acumula tanto sangue da extensa batalha, que as enormes pontas dos dedos carmesim tocam o chão. Um braço desproporcional até mesmo para o maior dos homens, até mesmo para bestas selvagens daquele mundo.

Dezenas de sombras não podem pará-lo, a luta já está quase decidida, bastam mais alguns litros de sangue. Moretti sabe disto, mas não consegue encontrar alguma possibilidade de vitória, nem mesmo seu novo poder pode o ajudar nesse momento.

— Como você chama essa variação da maldição? — Moretti pergunta, almejando conseguir mais um pouco de tempo. — Você já deve ter visto muitas.

— Despertar. — Wem responde antes de avançar com a garras vermelhas.

As sombras tentam o deter, rasgando suas costas até suas costelas sejam expostas, mas nada disso funciona, o limite já foi ultrapassado. Mesmo com todo seus esforços, a morte certa se aproxima, não adianta resistir ao inevitável.

Todavia, Moretti prometeu a si que não desistirá enquanto sua filha estiver em seus braços. Em vários momentos da guerra, o oblívio espreitou sua alma, mas nunca o alcançou, sempre saiu vivo. Não será diferente desse dia, ele ainda observará sua filha dormindo à noite.

O rei cogita usar seu despertar mais uma vez, no entanto, não sabe ao certo como ativá-lo, apenas o utilizou por puro instinto de sobrevivência na primeira vez. Além disso, o novo focus de necrose aparentemente é aleatório, algum órgão importante pode ser danificado. Nem ao menos ele sabe em que área do seu corpo está necrosado devido à utilização anterior.

Mesmo assim, prolongar a sua morte é a melhor alternativa, talvez a explosão lhe desse alguns minutos para pensar em um plano decente. Por isso, suas sombras avançam sem escrúpulo em direção ao brutamonte, destruirá todas que consegue de uma vez para o atrasar o máximo possível.

Em um ato inesperado, Wem cessa seu avanço e volta para trás um pouco antes da escuridão o alcançar, provavelmente ele previu o plano de seu oponente. Uma presa encurralada arriscará de tudo.

Wem se distancia o suficiente para que Moretti não arriscasse persegui-lo com suas sombras. Dessa forma, o seu corpo tem a liberdade de se regenerar sem se preocupar com novos cortes.

— O que você quer? — O ruivo questiona enquanto o encara ameaçadoramente.

— Você é o invasor. — Moretti tenta parecer imponente, mas a dor dificulta a sua postura. — Não lhe devo nenhuma resposta.

— Você nos atacou primeiro. — O brutamonte dá alguns passos para frente, a luta está prestes a recomeçar.

— Com qual deles você fez um acordo? — O rei aproveita a situação para conseguir mais tempo e informações. — Aurora é a cláusula?

— O que está insinuando? — A fúria fica mais nítida no rosto do ruivo.

— Você está a fortalecendo com maldições. — Moretti abre um sorriso. — Ela foi a moeda de troca para que você desistisse do Império Valôm? Você não abandonaria um governo criado para concluir seu objetivo, afinal, você foi um dos fundadores, não é?

Wem cessa seu andar, todavia, sua face não muda em nada, continua tão séria quanto antes.

— Quem a ofereceu? Meroveu ou Helt? — A voz do grande general se torna mais astuta. — Ela sabe disso?

— Sabe do quê? — O rosto do brutamonte finalmente fica completamente enraivecido.

— Que apenas a tolera para juntar o máximo de maldições possíveis, ela é apenas mais uma de suas tentativas de morte. — As sombras de Moretti se aglomeram nos pilares da única entrada da capela. — Você nunca pensou em outra alma além da sua.

Sem uma resposta à tal insinuação, Wem corre em direção ao grande general, o desfecho da luta está prestes a ser decidido. Por sua vez, Moretti prepara suas sombras para desabarem a entrada.

Em um movimento repentino, Wem agarra o chão com seu braço cintilante e, sem aparente esforço, arranca parte dele e o joga em direção ao rei, causando assim o bloqueio da visão devido às centenas de destroços. Em resposta a isso, o necrosado derruba as colunas da entrada, desmoronando toda a parede.

Apesar de não sofrer danos, Moretti não tem certeza se derrubou as pilastras no momento certo. Além disso, uma nuvem de poeira cobre toda a catedral, Wem pode estar se espreitando nela. A escuridão não demora para cercar o seu mestre, formando a incrível defesa mais uma vez. Por onde o brutamonte atacará?

A baixa visibilidade é uma clara vantagem para o ruivo, este foi o plano daquele arremesso, afinal, singelos detritos não conseguem passar pelas dezenas de sombras. Gotas de suor caem do queixo do rei, mesmo em pleno inverno, seu corpo está mais quente do que nunca, usando toda a reserva disponível para enfrentar aquele monstro.

Apesar de não o ver, Moretti tem certeza de que o seu inimigo não está soterrado, a sensação do ódio é crescente. Contrariando suas expectativas, semblantes surgem inesperadamente da poeira, três pessoas se juntam àquela zona de batalha: Aurora, Sadh e Luar.

Com o ouvir da palavra "Dash", estes três se posicionam bem entre os grandes generais. Tal ousadia quase suicida parece ter seus efeitos, pois o combate parece se extinguir, pelo menos momentaneamente.

— O que significa isso? — Moretti os cerca com algumas sombras, mas não os ataca por causa de sua filha.

— Estamos aqui para acabar com essa luta! — Aurora discursa improvisadamente enquanto se sustenta no braço de Sadh, ainda não consegue ficar de pé sozinha. — Não precisamos nos matar, não é Luar? — Aurora a cutuca com o ombro, mas a criança parece distraída.

— Eu estou com medo, Aurora. — Luar se esconde por dentro da gola de seu vestido. — Parece que tem algo que observando na fumaça...

— É-é só falar o que combinamos... depois a gente pode sair daqui. — A jovem sabe que tal sentimento é oriundo da maldição do Wem, por isso, tenta a acalmar com um toque em sua cabeça.

— Está bem... — A tagarela respira fundo e enche seus pequenos pulmões com confiança. — Pai! Não machuque minha amiga nem seus companheiros! Eu gosto muito dela para ver vocês brigando!

Imediatamente após dizer tais palavras, Luar olha em direção à Aurora e pergunta cochichando se falou certo. Em confirmação, a jovem sorri de boca fechada e balança sua cabeça positivamente.

— Wem, também não é para atacar! Ninguém precisa perder alguém importante hoje! — Aurora olha para a nuvem de poeira, mesmo não sabendo ao certo onde seu amigo está.

— Luar, venha para o meu lado. — Moretti estende sua mão de madeira. — Agora.

— Não, não! Só vou se você prometer que não brigar mais! — Luar abraça a perna da Aurora. — E também falar que eu fui uma boa garota enquanto você estava fora!

— Nós não somos mais inimigos! Podemos resolver isso com... — Aurora para o seu discurso ao ver um semblante se destonando do pó.

Wem surge através da nuvem com passos lentos e não ameaçadores. Sua mera presença muda totalmente o rumo daquela conversa, ele que dará as opções da trégua. Sendo seu primeiro movimento ficar de frente aos intrometidos.

Luar se esconde por detrás das pernas de Aurora devido ao medo, o brutamonte realmente parece um monstro diante os olhos infantis.

— Não viemos para lutar. — Wem se vira em direção à Moretti. — Apenas buscamos tratamentos na catedral.

— E por que eu acreditaria nisso? — O rei mantém sua postura defensiva. — Vocês já mataram dois seres amaldiçoados. O que te impede de estar atrás da minha maldição?

— Eu já teria te caçado se fosse isso. — Tal frase chama a atenção do necrosado. — Você não quer ser um mero pião daqueles dois. Sua luta já não é contra mim.

— Você se vendeu a eles. — Moretti reforça sua postura defensiva.

— Eu não sigo nenhum deles. — Os cristais avermelhados começam a se dissolver em uma fumaça carmesim, retornando lentamente ao formato inicial do membro direito. — Você não precisa segui-los também.

— Por que você está fazendo isso? — O grande general continua alerta. — Acha que não posso te matar? Que não sou um oponente digno?

— Nós dois temos pessoas que não queremos perder. — Wem vira seu olhar para os três jovens que observam a conversa sem entender a profundidade da discussão.

— Você mudou. — Moretti também os observa um pouco. — Ela te mudou.

Wem fica em silêncio, uma grande tensão pesa nos ombros dos intrometidos, será que eles entraram em um acordo? Ou aquela iniciativa deles foi inútil?

— Eles não permitirão que eu me retire de suas influências. O tratamento da minha filha é a moeda de troca. — A postura de ambos já não é mais agressiva.

— Finja ser leal. Você não precisa perdê-la. — Wem estende o seu braço esquerdo em direção ao rei. — Pode vê-la crescer.

Moretti fica algum tempo o encarando desconfiado, após isso, observa a condição deplorável de seu corpo sofrido. O frio finalmente vence e começa a atormentar a destroçada pele do homem velho, prosseguir com a luta será suicídio.

Tudo que já fez foi para evitar que aquela triste noite se repetisse. Sua filha sobreviverá, mesmo que ele tenha que desafiar os mais poderosos desse mundo. Ele já abandonou princípios e aliados para poder ver sua última criança sorrir, não será agora que fará diferente.

Moretti aperta a mão do Wem. A luta dos mais fortes acabou.

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