XXXIX. Improfícuo

Os devaneios da morte passam diante dos olhos daqueles condenados pelas chamas ou pelos ferros fundidos enfiados em sua carne. Junto a isso, o berrar das crianças diante do inevitável atormenta os ouvidos das mães desesperadas ao verem o exício daqueles que cresceram ao seu lado.

O enorme banquete do vazio deleita os criminosos chamados de soldados, não há ninguém que os impedirá quando a última barreira de medrosos se quebrar. Em suas mentes, as fantasias mais proibidas pelos céus e pela terra se tornam mais vividas diante da fuligem de corpos cremados, enojando os que realmente lutam por um sentido fajuto e inexistente. Todos são marionetes que servem apenas àqueles que podem realizar, de fato, o que desejam.

Uma dessas ânsias está prestes a se concretizar com base na dor, a única que realmente importa no meio daquele mar de almas penadas. Seus olhos vidrados naquele que idolatra enquanto sua carne é completamente dilacerada pelo surgimento de cristais de carmesim por debaixo de sua pele são perturbadores no meio do caos. Uma besta sedenta por algo que todos sentem, todavia somente ele se delicia de tal desprazer.

O confronto dos últimos símbolos de poderio do Império Valôm está selado naquela cidade arruinada. A metrópole mais poderosa do mundo será a sepultura do perdedor, uma legítima vala comum lotada de milhares de desfigurados.

Quando nem se quer foi percebido pelo brutamontes, as pupilas focadas de Arsor notam os irrisórios ao lado do aclamado. Em sua mente perturbada, uma singela pergunta do porquê de tal companhia ao redor do detestável surge, mas é esquecido pelo clamor da glória.

Erguendo seu braço de cristal diante do sol como uma conquista, os olhares de desdém se direcionam a mais um ser profano, com uma repulsa mais sólida do que qualquer outra, se formando em corações lotados de amarguras.

O fraco sol escondido por debaixo das nuvens gélidas ilumina levemente as joias sangrentas apontadas para si, um pequeno resplendor da devastação. Ao mover seu braço de volta para o gigante, um sorriso se forma em seu rosto quando faíscas de luz saem de suas mãos como labaredas.

Tal tecido de luz se prende consigo mesmo até que um emaranhado de energia surge entre seus braços como uma corda esticada. O clarão de luz brilha tão forte como todo o incêndio em sua volta, chamando a atenção de todos diante do minúsculo sol branco, incluindo Wem.

Antes que pudesse fazer qualquer mísero movimento, o inevitável estrondo atinge seu corpo perfeitamente, devastando a sua carne da cabeça aos pés, queimando a sua pele e secando os vasos de sua carne sofrida. O gigante cai de joelhos ao primeiro golpe.

Diante do enorme clarão junto ao desabar de seu amigo, a jovem sonhadora parece desnorteada no meio do caos, enquanto olha para todos os lados, se perguntando de onde veio o golpe. "O que aconteceu? É um ser amaldiçoado?".

A resposta a tal questionamento veio de forma rápida, o caolho se aproxima com um ataque de sua espada. No mesmo instante, os olhos da jovem se transbordam com a escuridão e a luz branca, mas não há tempo para uma resposta, foi pega desprevenida.

Para sua sorte, ela sente um forte tocar em seu ombro, como se algo a empurrasse e, um pouco antes do metal afligir o seu pescoço, uma palavra sussurra em seu ouvido, "Dash". A sua visão se distorce em um mero instante, enquanto vê o golpe do invasor fracassar ao atingir a viela de pedra e cinzas.

Sadh a salvou mais uma vez por sentir um desdém concentrado vindo daquela pessoa estranha, um muito superior a qualquer rancor que Wem já lhe causou. Assim que os olhos trêmulos conseguem entender o que acontece em sua volta, um terror surge em ambos.

O braço cristalizado em vermelho brilha com a luz do fogo, mas não é o de Wem que tem tamanha beleza. Outra pessoa possui o membro rígido como uma cópia perfeita do brutamontes, enchendo a mente da jovem de inúmeras perguntas. "O que é aquilo? Maldições podem se repetir?". Mas uma não surge por saber a resposta, "quem ele é"?

Vestido de roupas imperiais degastadas pelo tempo e pelo sangue, o homem em sua frente expressa claramente quem é, ainda mais com as cinco cicatrizes em sua face, o último grande general do Império Valôm, Arsor.

A jovem nunca o viu pessoalmente, ele sempre esteve nas inúmeras batalhas que precederam a queda da coroa. No entanto, ela sempre ouviu sobre o último grande general do antigo poder durante sua curta ocupação do cargo, apenas um ano antes da tomada da capital.

Sua aparência é pior do que o retratado, as enormes marcas de dilaceramento deformaram totalmente o seu rosto, nem ao menos parece um jovem adulto de 24 anos por causa delas. Todavia, o que mais a atormenta é o sorriso alegre em seu rosto, está se divertindo no meio de tantas mortes?

Quando ele começa a avançar novamente em direção aos dois, o maior braço de cristal colide contra a lateral do corpo do agressor, destroçando seus membros como galhos secos enquanto é arremessado em direção às chamas. Seu sorriso se mantém mesmo diante do estado deplorável.

Wem se reergue sem nenhum dano em sua carne, a única prova do ataque é sua roupa definhada pelo escuro. O seu rosto parece mais sério do que o comum, talvez esteja preocupado por saber quem enfrenta.

— Wem! Você está bem? — Aurora corre preocupada em direção de seu amigo, mas ele faz um sinal para que ela parasse.

— Se preparem. — Ele adverte sem que sua face desvie dos entulhos em chamas. — Apenas sobrevivam contra o boneco.

— E-está bem. — Aurora aperta sua espada enquanto Sadh os rodeia com suas lâminas. — M-mas, que boneco?

O surgir de uma criatura profana das chamas ardentes responde pergunta da jovem incrédula. Diante de seus olhos, um ser retorcido e desforme se ergue tão alto quanto uma estátua, sobrepujando até mesmo as fagulhas das labaredas mais fortes enquanto observa os pequenos com seus olhos de botão.

No carmesim escaldante, sua carne é devorada até se tornar preta como o carvão, entretanto, tais partes escuras logo se desprendem do corpo distorcido e caem em direção ao chão queimado. Em seus lugares, um novo tecido surge para ser novamente destruído, um ciclo sem fim enquanto o fogo se alimenta das moradas.

O motivo de tal regeneração é bem perceptível, pois a luz do fogo clareia os cristais em seu enorme braço, outra cópia fajuta da Eternidade. A boca da jovem se seca ao ver o gigante, como é possível que outra coisa tenha a mesma maldição que seu amigo?

Quando ela observa melhor o boneco, percebe similaridades com o seu dono, apesar das distorções. Ambos usam a mesma roupa velha, junto às cinco cicatrizes nos rostos dos infelizes. É nítido que o boneco é uma versão errada do seu ser amaldiçoado, uma simples marionete mal feita.

Antes que pudesse fazer outras conclusões, a risada que ecoa entre as fuligens corta seu raciocínio perturbado. Escondido no meio do fogo, uma silhueta pisa sobre as brasas como se fosse nada, como se não sentisse a dor do carbonizar.

O seu sorriso lunático é o primeiro a se destonar do vermelho, sendo seguido pelo resto do seu corpo em chamas. Como o esperado, as suas vestes se definham ao pó e ao negro, mas sua carne resiste a tal carbonização.

— Há quanto tempo, Wem. — Arsor estende a sua mão como um cumprimento distante, mas o brutamontes não devolve tal "gentileza".

— O que você quer? — A voz do encasacado é robusta, mas ocasiona um pequeno sorriso no seu adversário.

— Como é a sensação de seu custo? — O invasor não responde à última pergunta, mas mantém seus olhos vidrados no ruivo. — É fascinante, não é?

Após estas palavras, o encasacado não hesita em avançar em direção ao caolho, o diálogo não resolverá nada. Em contrapartida, o alvo do ataque monta sua posição de batalha, mas não saca sua espada, afinal, ela seria facilmente destruída pelo barbudo.

Além disso, o enorme boneco de carne é enviado em direção ao provável casal, Arsor não quer empecilhos em sua tão aclamada luta. Dessa forma, a colisão dos cristais não tarda a acontecer, com faíscas saltitando no ar como pequenos vaga-lumes em uma noite escura.

Mesmo que maldições idênticas se enfrentem, os atributos físicos são uma clara vantagem do mais experiente, o qual arremessa o seu oponente de volta para a fumaça negra. Por causa dessa pequena vitória, Wem observa o duelo dos mais jovens contra a besta.

Aurora consegue reunir um pouco das chamas em sua volta e os lança em direção à criatura como rajadas enquanto Sadh crava as suas adagas na carne disforme. Nada acontece com a besta imparável, apenas ferimentos supérfluos que são rapidamente curados.

Por causa disso, Wem se movimenta para ajudá-los, entretanto, Arsor lança mais de seus raios, aproveitando das chamas para esconder a canalização. Ao acertar o gigante mais uma vez, o invasor avança e crava seu braço avermelhado na barriga do encasacado.

— Não se distraia. — O grande general espreme os órgãos do gigante. — Eu sou seu oponente.

Wem desce seu braço cristalizado como uma guilhotina prestes a decapitar o seu inimigo, todavia, basta um simples balançar de seu pescoço para que somente seu ombro e seu tórax sejam completamente obliterados com o impacto.

Mesmo em meio ao seu corpo deformado, o sorriso não some de forma alguma do rosto do caolho, como se não sentisse dor. Tal fato não é para ocorrer, pois o encasacado ainda sente as dores de cada ferimento, apesar de se acostumar com elas.

Arsor arranca seu braço cristalizado da barriga de Wem ao terminar o rombo pela lateral do corpo, quase partindo o gigante ao meio. Após isso, se afasta rapidamente para que os dois se regenerem e se fortaleçam com o sangue que não toca o chão.

— Está empolgado? — O caolho parece mais descontraído do que deveria. — O inigualável finalmente está enfrentando alguém perto de seus pés!

— Já venci sua maldição antes. — O carmesim acumulado em seu braço é tanto, que seus dedos quase tocam a neve.

— Assim como todas as outras. — A boca cicatrizada do invasor encobre seus dentes. — Mas, ainda assim, continua em uma falsa esperança de exício.

O grande general saca finalmente a sua arma, entretanto, não aponta para o barbado, mas sim para seu próprio exército prestes a vencer a batalha.

— Todos esses seguem um sonho tão fajuto quanto o seu, todos desesperados. — A lâmina sem ponta fica paralela ao milenar. — Eles realmente acham que o Império Valôm pode renascer, morrerão junto a essa cidade traidora quando os reforços dos Sacros-Reinos-Libertos chegarem.

— Você é o líder deles. — Wem se prepara para avançar mais uma vez.

— São apenas pequenas peças para alcançar meu êxtase. — Arsor toma a iniciativa e a luta entre as eternidades continua.

Enquanto isso, o enorme colosso desforme humilha os dois novatos sem o menor esforço. Os ataques contra si são insignificantes, nem ao menos tardam seus movimentos. Por outro lado, não há acertos por sua parte, os dois pequenos conseguem fugir de seus golpes com bastante facilidade, porque a velocidade dele foi bastante debilitada pelo excesso de carne.

Dessa forma, um combate infrutífero se estende por algum tempo, com os únicos danos reais se concentrando sobre a pele de Sadh, devido ao custo de sua maldição. Por causa disso, Aurora fica apreensiva com a situação em que se encontra, já que perderiam quando a exaustão os alcançassem, além do que, Wem talvez precise de ajuda contra o outro grande general.

Mas o que ela faria? Provavelmente suas chamas e raízes não serão eficientes contra o copiador, afinal, Wem já venceu os detentores originais dessas maldições, talvez não seja diferente dessa vez.

Em meio a esse turbilhão de pensamentos, a jovem nem nota que os destroços de uma residência em chamas despencam sobre a sua cabeça. Por sorte, Sadh consegue alcançá-la no último instante antes do desastre, com os dois surgindo a alguns metros de distância.

— Ah! Obrigado... — A jovem corta a sua voz ao perceber o surgir de fios brancos em meio ao loiro de seu companheiro.

Mais uma vez, ele teve sua expectativa de vida encurtada por sua causa, mais uma vez se torna um peso. Por quanto tempo ela será um estorvo? Por quanto tempo será tão fraca, que nem ao menos consegue se manter segura?

Tal sentimento de impotência e culpa domina o seu coração com desdém de si. Ela não quer ver ninguém se sacrificar por sua causa.

Devido a isso, a jovem busca maneiras de ser útil, usando exclusivamente o fogo ao seu redor como sua principal arma. Entretanto, suas rajas de fogo são simplórias demais, só carbonizam a pele da besta por meros instantes antes que voltem ao normal.

Por causa disso, Aurora se sente cada vez mais patética diante de seus fracassos, nem por um momento ela pode ser útil?

Uma escolha errônea domina seus pensamentos enquanto ela corre entre as chamas de uma viela em escombros. Um pouco distante de da fumaça negra, uma praça cheia de árvores mórbidas pelo inverno prende o seu olhar, finalmente ela se vê digna para estar ao lado de seus companheiros.

Se não é possível vencê-lo com cortes ou queimaduras, basta aprisioná-lo de alguma forma, sendo que a madeira pode servir para ao menos retardá-los. Todavia, uma simples jaula ou correntes não bastarão para prendê-lo de uma forma relevante, precisará de mais raízes do que jamais controlou.

Sua mente formaliza a imagem daquele padre sádico, a dimensão de controle dele é muito superior à sua atual, porém, os dois detém a mesma maldição. Portanto, basta que ela utilize melhor seus dons para conseguir um efeito semelhante dos cadáveres com suas plantas.

Após esta conclusão, seu rosto vira em direção a Sadh, o qual já acumula diversos cortes em seus braços e rosto, cada vez mais profundos. Ela precisa ser rápida.

— Sadh! — A jovem grita com seu sonho em sua mente, mais um para se mostrar vazio. — Eu vou buscar reforços! Aguenta firme!

— O quê? — O loiro pula dentro de uma casa para se proteger de uma pedra arremessada pela marionete. — Vá rápido... e tome cuidado!

Aurora corre em direção à praça o mais rápido que suas pernas exaustas conseguem proporcionar. O suor que escorre de seu rosto pinga no chão, marcando sua trajetória tardia, mas ainda certeira à dor.

O desmoronar de uma enorme torre choca o campo de batalha sangrento, a luta dos grandes generais é implacável. Em meio a tanto poderio, meros civis armados com foices e forcados tentam impedir a inevitável ruína da cidade, mas nada podem fazer diante a avalanche de inimigos junto ao inexplicável.

Os invasores rompem algumas das barreiras humanas em volta da muralha, conseguindo adentrar cada vez mais na metrópole em chamas, assassinando qualquer resistência entre as vielas e abusando de qualquer indefesa que não conseguiu se esconder. O fim do cerco está bem próximo.

Em meio a isso, os dois braços cristalizados atingem seu pico de poderio ao arrastarem as pontas de seus dedos afiados no chão congelado. Seus corpos dilacerados por inúmeros cortes não tardam à se regenerarem como se nada tivesse acontecido, um combate sem aparente vencedores.

Mesmo com tamanha resiliência, a necrose no pescoço de Arsor permanece intacta junto ao seu desengonçado caminhar, o custo da maldição não afeta danos anteriores ao seu estabelecer. Por causa disso, a clara vantagem física é de Wem, pois este não sofre consequências de outros malfazejos.

Dessa forma, o invasor perde o duelo corpo a corpo, pois sua maldição de eletricidade precisa ser canalizada por algum tempo antes que a rajada seja desferida, além de que sua marionete não o ajuda diretamente. Apenas restou um confronto direto de duas Eternidades.

Enquanto o colidir dos cristais faz chover um brilho de minúsculas estrelas cadentes, os dois amaldiçoados se encaram como bestas em uma luta feroz pela vida. O embate ocasiona o afastamento dos dois e assim permanecem enquanto recuperam suas feridas e fôlego mais uma vez.

— Você se lembra de quando me marcou? — Arsor aponta para as cinco cicatrizes em seu rosto.

— Não. — Wem responde seco.

— Claro que não se lembraria. Um mero civil é insignificante. — O invasor ri bem baixo. — Ainda mais um executor qualquer.

— Não quero saber de seu passado. — Wem se prepara para avançar mais uma vez, mas para ao ouvir a voz de Arsor.

— Você perguntou o que quero, não é? — Arsor puxa sua espada presa em suas costas mais uma vez. — O motivo de seu sacrificar estas vidas é bem simples, eu desejo sua maldição ao meu lado.

— O que você quer dizer? — Ambos montam sua posição de batalha.

— Sabe qual o motivo para eu ter sido um executor? Não sinto medo, culpa, nojo, repulsa ou qualquer outra sensação. Tudo é monótono demais. — O caolho abre um grande sorriso. — Mas você é diferente, eu sinto algo ao seu lado, um sentimento que não nasci para apreciar.

— Que motivo patético. — Wem avança em direção a Arsor. — Por desdém você morrerá?

— Não importa se é desdém, amor, ou qualquer outro sentimento fútil. — O invasor aponta sua espada para céus, um golpe de execução. — EU SINTO ALGO!

Wem ignora o descer da lâmina e ataca diretamente o tórax de que oponente, desse modo, ambos são letalmente feridos, um com seu corpo atravessado e outro com um corte até seu umbigo. Todavia, Wem tem uma vantagem momentânea ao seu impacto arremessar Arsor mais uma vez, a sua força física é inigualável.

Nesse ínterim entre o erguer de seu oponente e a volta da luta sangrenta, Wem consegue olhar para a destruição do colosso de carne e botões. Diante de seus olhos, a cena da devastação de diversas moradas se forma, entretanto, algo parece o preocupar diante daquela carnificina. Será que é a ausência da Aurora?

Independente da resposta, o fato é que Wem avança em direção à réplica deformada, mesmo que metade de seu corpo balançasse junto às correntes de ar quente.

Enquanto nem o prometido reforço da jovem, nem a esperada vitória chegam, Sadh mantém sua luta contra a marionete sozinho. Suas adagas nada fazem além de feri-lo temporariamente, no entanto, ainda é necessário perpetuar os golpes, pois o loiro não quer que a atenção da criatura se desvie até outro de seus aliados.

Por causa disso, Sadh pode perceber algumas singularidades do ser de olhos de botões. Todo o caminho que percorre, um rastro inexplicável de sangue é deixado para trás, como uma gravura de sua destruição.

O loiro conclui que aquele talvez seja o custo daquela maldição, drenar o sangue de seu dono conforme o seu uso. No entanto, tal consequência é anulada ao usurpar o infortúnio de Wem, basta o sangue esgotado ser regenerado.

Além disso, a marionete não utiliza a outra maldição que Arsor detém, nem ao menos tentou utilizá-la. Tal fato pode significar duas conclusões: ou a besta só pode utilizar uma maldição, ou ela precisa de ordens diretas para uso. A princípio, é impossível concluir qual dos casos seria, pois o grande general pode estar muito focado em sua luta.

Desse modo, Sadh não acha brechas para uma possível vitória de sua parte, não há nada que possa fazer além de resistir ao cansaço. O qual parece se aproximar, já que utilizou tantas vezes as suas maldições, que seu corpo está cada vez mais velho e os cortes mais profundos.

Seus músculos já são prejudicados pelos ferimentos e pela idade, o que o torna mais dependente da origem dessas sequelas, um ciclo vicioso. Devido a isso, Sadh se pergunta qual idade o seu corpo tem, quanto tempo de vista lhe resta?

O envelhecimento o preocupa, até quando poderá seguir o restante da equipe? Quando será um estorvo? O quão idoso precisa estar para a Aurora perder totalmente o interesse sobre si?

Tais perguntas geram preocupações em sua mente de maneira tão forte, que diante do avançar impiedoso da marionete, ele hesita em dizer uma simples palavra. O impacto da besta é certeiro, não há defesas plausíveis diante tamanha monstruosidade, é o fim.

Seus olhos se fecham diante da morte quase certeira, mas esta nunca o alcançou. O estrondo do impacto acontece em frente a sua face aterrorizada pela própria impotência, todavia não é seu corpo que colide com o membro deformado.

O conflito de dois ódios toma o seu coração que pulsa forte, Sadh sabe o que isso significa. Por isso, suas pupilas azuis se rendem à luz do sol mais uma vez, para poderem vislumbrar a guerra de forças.

Wem impede o avança do colosso com seu próprio corpo, um legítimo duelo de aberrações. Apesar disso, a besta disforme o empurra lentamente para trás, as pedras da ruela junto a carne e ossos do encasacado racham e moem pela força estrondosa.

— Onde está a Aurora? — Wem questiona sem virar sua cabeça, está completamente dedicado.

— A-Aurora? — Sadh ainda parece desnorteado, mas basta chacoalhar o seu rosto para voltar à realidade. — Ela foi buscar reforços... acho que foi manipular plantas...

— Há quanto tempo? — O brutamontes gradualmente chega perto do loiro, o qual dá alguns passos para trás a fim de não se envolver naquele embate.

— Não sei... talvez cinco minutos? — Em meio à luta desesperada, a noção do tempo é distorcida. — Por que isso importa?

— A resistência de Sunderland acabou, a cidade está condenada.

A fala de seu detestável companheiro o atordoa, seu foco à criatura era tanto, que nem percebeu seus arredores. Diante da guerra em seu mais puro estado, seus olhos vidrados e trêmulos podem observar os horrores de um genocídio.

O combate acontece em cada esquina, em cada casa. Os corpos dos pais e filhos que tentaram proteger suas amadas se acumulam em uma enorme poça de sangue, um combate desleal e ilógico. Entretanto, os seus destinos foram menos sádicos do que os daquelas que não conseguiram se defender. As mulheres, sejam crianças, adolescentes ou adultas, são violentadas e abusadas diante dos mórbidos, enquanto seu choro e súplica apenas alimentam a gula de seus inimigos.

O caos da terra se mostra um pequeno vislumbre do inferno em carne e fogo, o desejo perverso é o que restou nas mentes diante de tanta desgraça. Promessa de vinganças, pedidos de desculpa antes do devaneio eterno, grunhidos de dor e choros traumatizantes ecoam entre as vielas pintadas de vermelho escaldante e congelante.

Na presença de tal carnificina, a mente confusa e atormentada apenas consegue focar na sua amada solitária. Será que ela pode ser pega? O que farão com ela?

Sua preocupação é tanta, que mal percebeu o formar de um brilho imenso, um minúsculo sol branco. Quando compreende sua situação, palavras tentam escapulir de sua boca, mas a ponta da língua radiante o toca como uma pequena mosca perdida em direção ao fogo de uma lamparina.

O estrondo do mais poderoso e temido fenômeno dos céus demora só alguns instantes a mais para ecoar pela desgraça, censurando, assim, o falar de uma simples palavra de quatro letras.

Sadh é atingido parcialmente pelo belo branco cegante, a energia que adentra por seu peito foi diluída por usar a distorção indevidamente. Todavia, os danos de tamanha velocidade ainda surtem pesados danos ao seu corpo, sua carne queima até os ossos e suas vestes se fundem à sua pele solta, o deixando em carne viva por debaixo de um manto tenebroso.

Além disso, o mais jovem tem extrema dificuldades para respirar, como se seu coração e pulmões não respondessem ao seu cérebro, está completamente nocauteado, mas ainda consciente. Por causa disso, ele pode observar o aterrorizante aproximar de um inimigo, o causador de toda aquela discórdia e ruína, Arsor.

A grandiosa espada é levantada aos céus como uma lança que desafia as mais altas nuvens de neve, o apogeu da ânsia da morte se concretiza sob o único olho daquele executor. Seu semblante não passa nenhum sentimento, como se fosse algo comum, uma simples tarefa a ser feita. Pelo menos é isso que seu corpo expõe, além de um sorriso, uma falsa felicidade, uma obsessão.

Descendo como uma simples faca em um açougue, o vento tão quente, mas tão gélido prenuncia o dilacerar. Suas correntes invisíveis balançam as roupas e cabelo loiro da peça de carne como um turbilhão em uma tempestade.

O silêncio entre os gritos e o cair é estranho, o mundo parece calmo mesmo diante do banquete do oblívio. Além do que, nada mais importa naquele momento à não ser o amargor de um passado fracassado, os arrependimentos de sua alma.

Quando a luz do metal reluzente se torna avermelhada pelo carmesim amargo, os olhos azuis paralisados pelo medo olham para a pequena dor constante em seu braço esquerdo, ou o que lhe restou dele.

O sangue que se esvai até o chão de pedra é semelhante a uma cachoeira descendo até o abismo, um belo tão horripilante. Além disso, outra arte rebuscada pela desgraça voa em uma direção qualquer, enquanto lança os pingos de uma chuva mórbida.

A execução falhou devido a uma interferência do ruivo, mas ele nada pôde fazer além de desviar a quase guilhotina. Por consequência disso, o braço de Sadh é amputado em um simples golpe, sua carne e ossos não fizeram resistência nenhuma, foi tão simples como o cortar de um papel.

No momento em que a mão gélida toca o solo, Sadh desaba sob seus joelhos, encostado em uma parede. Seu coração bate fraco e o pouco sangue que conseguia circular é desperdiçado pelo sangramento de vários cortes. Devido a isso, sua mente começa a fraquejar diante da falta de ar em sua cabeça, a visão se torna turva e branca junto aos outros sentidos, está prestes a desmaiar.

Sua última visão é o distante surgir de uma garota, diante do devaneio, a tal beldade parece como uma última estrela num céu vazio. Seu coração pulsa um pouco mais forte, ele não quer permitir que ela lute só, não quer ver sua amada ser machucada, entretanto, seu limite físico não é tão grande quanto sua perseverança.

Seus olhos se fecham, sua mente se apaga.

Diante desse turbulento caos, a chegada tardia da Aurora a aterroriza, seus olhos revelam o medo e a culpa que dominam seu ser. Seu amigo sofreu as consequências de sua fraqueza, de sua banalidade, isso é o que pensa.

Não há volta ou arrependimentos válidos, não há como mudar o passado. Esta dor, essa sensação de culpa e impotência a marcarão pelo resto de sua vida trágica, um futuro amargo causado pela sua própria ignorância.

"Se eu tivesse sido mais rápida? Se eu não tivesse ido? Se eu não tivesse o abandonado?". Tais lamentos corroem sua mente desesperada enquanto lágrimas escorrem pelo seu rosto cansado de si mesma. Todavia, a raiva não tarda a dominar seu coração, ela prometeu a si mesma que não permitiria que ferissem seus amigos por sua causa. Ela falhou.

Por causa disso, um ódio de si e do caolho incendeia seu coração com brasas bastardas. A raiva expressa em sua face marcada pelas derrotas e humilhações é uma que jamais sentiu em sua alma dividida. Sua mente faz outra promessa fajuta e inalcançável, matará Arsor.

Quando seus olhos se focam naquele que trouxe tanta desgraça, seu cérebro centrado no desdém mal percebe seu companheiro lutando contra as duas cópias, ele precisa de ajuda. Com um reunir de chamas ao seu alcance e poderio, a jovem rodeia sua espada em um brilhoso carmesim ardente. Irá atacar, não somente fugir.

Em um duelo de resiliência infinito, Wem tarda o avança do boneco com o sacrificar de seu corpo. Por outro lado, uma enorme quantidade de sangue esvai de seu corpo, o qual se acumula em forma de cristais em seu braço direito, o tornando cada vez mais deturpado e forte.

Todavia, tal esforço se concentra exclusivamente em um único alvo, deixando uma grande brecha para que o caolho ataque desprevenidamente. Com os dedos tão afiados como adagas, Arsor dilacera as costas do ruivo em um só golpe, deixando 5 cicatrizes semelhantes às dos seu rosto.

Após isso, nada mais fez, apenas observa o regenerar da carne de sua obsessão, como se estudasse o ato inexplicável. Sua concentração é tanta, que nem ao menos percebe o aproximar de rajadas de chamas.

Sua pele é carbonizada e marcada por gigantescas cicatrizes, porém são absorvidas em meros instantes. Tais ataques foram tão superficiais, que nem desviaram a atenção do caolho, simplesmente insignificantes.

Em resposta a isso, a jovem em fúria aponta seu dedo para o céu nublado pelas cinzas e neve. O chão treme devido a sua ordem sobre o que se esconde por debaixo dele e, em poucos segundos, raízes extrapolam a terra congelada e avançam em direção ao estático.

Tal ataque não é completamente ignorado pelo Arsor, parece que a Aurora chamou a mínima atenção do grande general. As árvores não conseguem tocar o seu alvo sem que sejam trucidadas ao se aproximarem, as garras de sangue as cortam em diversas fatias em um simples mover de mão.

Por causa disso, Aurora tenta combinar os contínuos ataques das plantas junto ao lançar de rajadas, mas até disso ele capaz de desviar. Em meio a sua crescente ira, a voz do desgraçado verbera por sua mente, a causando muita indignação.

— Por que você tem a maldição da Rell? — Sua fala entoa como uma conversa casual. — Não se passou tempo o suficiente para ela ressurgir.

Aurora nada fala, está focada demais em sua promessa prestes a ser quebrada. Dessa forma, limita-se a lançar mais chamas em direção ao seu inimigo.

— Além disso, você tem outra maldição. — Arsor arranca uma raiz da terra que almejava o atacar e aponta em direção à jovem. — O que seria isso? Você também pode copiá-las?

Enquanto aguarda uma resposta, Wem consegue uma brecha em seu confronto contra a besta e avança em direção a Arsor. Os dois colidem suas mãos de cristais e, mais uma vez, Arsor é arremessado enquanto sorri.

— Wem! — Aurora se tranquiliza com a chegada de seu amigo, já está frustrada com seus avanços sem danos.

— Enrole o boneco. — Wem se prepara para continuar seu combate contra o grande general. — Apenas resista enquanto eu não o matar.

— Mas como você vai vencer? Ele tem a mesma maldição que a sua! — A jovem se sente receosa em deixar um dos seus amigos duelar sozinho, ela não quer que outro seja derrotado.

— Arrumarei um jeito. Não morra. — O encasacado pula em direção a uma risada.

— Você não pode copiar, se não já teria feito com a de Wem. — Arsor retorna ao meio de centenas de soldados inimigos, todas as defesas da cidade ruíram. — O que você é?

Um enorme estrondo ecoa pelas vielas da cidade em chamas mórbidas, o último confronto dos mais fortes prenuncia a queda da maior metrópole do mundo. Enquanto seus socos são desferidos, um rastro de destruição e morte é assolado diante dos olhos verdes não vividos, desgastados pela dor.

Suas pernas correm mesmo que trêmulas, seus braços balançam mesmo que exaustos e sua alma luta mesmo que abalada. Apesar de todos seus esforços, todas suas tentativas e avanços, nada consegue fazer na marionete de carne além de fugir.

Mais uma vez está na deriva da batalha, uma mera peça de distração. Enquanto pula para desviar de um ataque de seu inimigo, ela se lembra das ordens de Wem, "Não morra". Nem ele acredita que ela possa vencer, muito menos si mesma acredita nisso, é uma inútil.

Seus olhos se encharcam ao ver Sadh desacordado encostado em uma parede. A jovem deseja acudi-lo de alguma forma, estar presente quando despertar, assim como ele fez com ela, ver um sorriso em sua face. Mas ela não pode fazer nada disso, ela não detém tal capacidade.

Mesmo assim, ela continua lutando o máximo que pode, mesmo que toda a vida desacredite em qualquer chance de vitória naquele duelo previsível, ela resiste.

Perto das muralhas, o desfecho daquela guerra se inicia. A queda do coração de Sunderland é inevitável, mas o que realmente decidirá um vencedor em meio àquele genocídio é um único e violento duelo.

Arsor luta plenamente com sua espada de execução, a utilizando para manter uma certa distância do brutamontes, pois em força física bruta ele é inigualável. Tal diferença se torna ainda mais discrepante pelo tamanho dos braços de cristais, o de Wem já ultrapassou o tocar no solo, com a sua mão se assemelhando a um pé ao ficar com a palma totalmente virada ao chão.

Por outro lado, tal diferença de poderio concede uma maior agilidade a Arsor, pois os golpes do gigante e seu andar se tornam mais lentos sem a ação direta do membro fortalecido. Devido a isso, o combate se resumiu a uma luta constante de desvios oportunistas e ataques contínuos.

A lâmina grossa e resistente do grande general começa a rachar e a perder o seu fio devido à ferocidade do combate, não durará muito tempo, basta um tocar em cheio do Wem para que uma chuva cintilante de metal caia. 

— Eu era um simples executor em uma pequena vila nas terras germânicas. — Arsor começa a contar a sua história entre os intervalos dos golpes, mas Wem parece o ignorar. — Nunca senti nada desde que nasci. Amor, tristeza, ódio e dor eram apenas mitos irrelevantes dos moradores e da minha família.

Em um golpe, Wem consegue acertar a barriga do grande general, espalhando seus órgãos por todo campo de batalha já inundado de corpos. Em contrapartida, Arsor desfere um golpe de sua lâmina direto no ombro do encasacado, quase separando o braço cristalizado do restante do corpo.

— Por isso aceitei o cargo de executor. Pagava bem e eu não sentia nenhum remorso ou julgamento da população. Um simples trabalho a ser feito. — Os olhos dele se vidram no regenerar do corpo de seu adversário. — Até que a guerra civil chegou até nós, um exército inteiro veio defender a vila comandada por um homem, não... uma beldade.

Wem tenta sufocá-lo com seu braço comum enquanto o seu de cristal se regenera, mesmo sem respirar, Arsor sorria. O braço direito do enforcado esmerilha os ossos de seu agressor, cessando o ataque.

— Eu me lembro bem da sensação, algo pulsava tão forte em meu coração, algo que eu não sei explicar. — Arsor tenta cortar Wem ao meio com o girar de sua espada, entretanto, basta o colocar dos cristais no caminho para que tal tentativa se frustre. — O monótono finalmente se esvaiu, a vida passou a ter sentido, ter significado.

Com os cristais pronto para uso, o ruivo soca diretamente o tórax de seu adversário, destroçando a sua caixa torácica e, por consequência, inutilizando seus pulmões e coração. Por outro lado, tal ataque deixou Arsor disferir um corte de sua espada diretamente na cabeça de Wem, arrancando-lhe os olhos junto ao partir de seu crânio, mas não é fundo o suficiente para dividir o membro.

— Fiquei obcecado, totalmente hipnotizado pelo seu desdém. Tentei chegar até você, não importa quantos soldados executei no caminho, eu só queria triscar no meu deus. — Aproveitando-se da cegueira temporária, Arsor prepara um relâmpago e o dispara antes que a visão do cultuado se regenere, causando ainda mais danos em seu corpo. — E quando finalmente pude te ver diante dos meus olhos, você que desceu até mim como um anjo. Dilacerou meu rosto com sua mão de carmesim, era tão bela com o brilhar de meu sangue.

Com a momentânea vantagem, o grande general gira a sua espada e acerta precisamente os dois joelhos da gigante, dividindo suas pernas e o fazendo cair. Após isso, ergueu sua lâmina aos céus, o mais alto que pode alcançar das nuvens. Uma execução.

— Com meu único e sangrento olho, eu vi sua glória entre as chamas dos corpos de meus conhecidos, só isso importava. — O braço de Wem acerta um golpe direto na cabeça de Arsor, destruindo completamente metade dela.

Todavia, tal brutalidade não foi o suficiente para extinguir a execução. A lâmina desce como uma guilhotina, mas o seu alvo não é a cabeça, mas sim o ombro direito, o braço de cristal é separado do corpo.

Em meio à dificuldade de raciocinar e respirar devido aos golpes, a mente do perturbado está muito alucinada para falhar. Outro ataque acontece, mas este fracassa em se erguer tão alto, limitando-se a apontar para a mais alta das chamas, o suficiente.

O braço comum do brutamontes tenta interromper o aproximar, mas é apenas estraçalhado junto à cabeça do ruivo, a execução foi perfeita. Instantaneamente, o corpo para de se mexer e nem se regenera, está sem vida.

Por outro lado, um crescer constante de carne surge pelo cristalizado, fazendo um sorriso deformado e tenebroso surgir na face de Arsor. Sua aposta funcionou, ele deduziu que a regeneração se origina do braço, o restante do corpo é completamente descartável.

— Por isso... não posso deixar... que você realize seu sonho... — Sua voz é tenebrosa devido a seu estado. — Não vou viver... no vazio de novo.

Outro corte é feito na carne regenerada para atrasar ainda mais a recuperação, a qual retorna do zero pelos cristais. Completamente indefeso, Arsor segura o dedo do meio do gigante com sua mão comum com muita dificuldade devido ao peso e ao tamanho.

Após isso, ele a ergue lentamente como um troféu, um símbolo de sua vitória, um desejo conquistado. Uma luz que escapou das nuvens grossas ilumina tal membro, um brilho perturbador de carmesim, tão belo aos olhos do homem enlouquecido.

Pela primeira vez na história, o Wem perdeu.

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