XXXII. Apresentados
*Sunderland, um mês depois.*
O nevar sobre a capital esfumaçante é belo, já que cobre de branco toda a fuligem da cidade, só as chaminés das forjas não são sobrepostas. Tal clima não denuncia a instabilidade que a cidade passa, os recursos se esgotam rapidamente devido ao exorbitante número de refugiados, talvez não restará comida até a primavera. Além disso, há outros perigos fora das muralhas, os quais nem mesmo seus governantes conhecem.
Devido ao clima, as vielas estão vazias, nem parece a tão movimentada Sunderland. Mas isso é temporário, basta um dia de sol para que todos os estoques sejam rapidamente vendidos na cidade mais rica do mundo.
Um som metálico vibra toda a cidade, o sino da catedral toca para indicar o auge do sol escondido nas nuvens gélidas, o meio-dia chegou. Dentro da estrutura, os fiéis e os pacientes se mantêm aquecidos com ajuda de roupas reforçadas e cobertores de pelos, com os mais privilegiados tendo direito a uma lareira.
Em um dos cômodos com temperatura amena, três mulheres se encontram, sendo elas Aurora, Amice e Luar. As duas últimas estão sentadas em um banco, enquanto a jovem sonhadora é a única a se manter de pé.
— Você consegue, Aurora! — A mais jovem estende seus braços como apoio. — Só mais alguns passos!
— Não se force demais! — A freira adverte. — Vá no seu ritmo!
— E-está bem! — Aurora tenta se equilibrar sobre suas pernas fracas enquanto dá pequenos passos em direção a uma corda no chão.
— Se você cair, o seu almoço é meu! — Luar sorri enquanto a freira lhe dá uma cutucada. — Que foi?
O último passo é o que mais balança, suas pernas tremem e suam de tamanho esforço. Apesar disso, a jovem se mantém determinada na conclusão da árdua tarefa, é a primeira etapa para sua melhora. Por causa disso, quando a corda é, em fim, ultrapassada, todas as garotas demonstram alegria, com destaque para Luar e Aurora, que se abraçam segundos antes das pernas da jovem cederam, ocasionando a queda das duas.
— Ai! — Reclama a criança. — Você me deve o seu almoço agora. — Ela sorri.
— Mas eu passei a corda! — Contesta a Aurora, tentando se levantar de cima da menina só com os braços. — Não vou te dar comida nenhuma!
— Se forem brigar, pelo menos se levantem. — Amice segura nos braços de Aurora e a levanta. — Está ficando mais pesada! — Amice brinca enquanto a coloca na rudimentar cadeira de rodas.
— Está vendo, mais um motivo para dar sua comida! — Luar dá uns tapinhas na barriga da Aurora.
— Você já come demais. — Aurora aperta as bochechas gordinhas de Luar. — Sua comilona!
— Ei! Solta minha cara! — A criança segura os braços de Aurora. — Vamos comer juntas, então!... Pegarei sua comida escondida. — Luar cochicha a última parte.
— Vai pegar o quê? — Aurora pergunta cerrando os olhos.
— Nada! — A menina tagarela caminha até a parte de trás da cadeira e tenta empurrá-la, mas falha no processo. — Um dia vou conseguir empurrar essa cadeira maldita!
— Talvez a fizeram a prova de "luarnisses" — Amice toma o lugar da criança. — Vamos até seus quartos, o almoço já deve estar lá.
— Eu já venci várias engenhocas dessa! — Luar parece orgulhosa. — Essa só será mais uma na lista!
Luar se gabou tanto que nem percebeu que Amice está levando a Aurora para o seu quarto. A jovem vira seu rosto e observa o distanciar de sua amiga criança.
— Vou comer a sua parte! — Aurora encara a freira. — Amice, acelera!
— EI! — Luar grita enquanto corre em direção às duas. — Me espera!
Os últimos dias foram divertidos tanto quanto esse, não há muitas preocupações e o resultado dos tratamentos em fim chega, um momento de paz naquela jornada caótica.
O almoço será servido no quarto de Aurora por insistência de Luar, a criança não a larga de nenhuma maneira. O local é bem simplório comparado ao luxuoso quarto da pequena princesa, afinal, só é constituído de: uma cama de solteiro confortável; uma janela para a cidade e uma cômoda onde estão guardados seus pertences, incluindo sua espada. Todavia, todos os móveis são feitos de uma boa madeira, além do quarto ser aquecido, um ambiente melhor do que o anterior.
— Meu pai é muito legal, né? — Luar corre para a janela. — Até a visão da praça você tem!
— Ele é sim. — Aurora sorri enquanto sai da cadeira e sobre em sua cama. — Só de ter uma visão de fora, torna aqui menos chato.
— Sortuda! O meu quarto não tem janelas! — Luar se vira e vê Amice entrando com comida. — Almoço!
A criança corre em direção à porta e pega um prato de comida nas mãos da freira. Após isso, Luar encara o alimento a fim de identificá-lo, peixe cozido com legumes e pão.
— Ah! Peixe de novo não! — A criança parece decepcionada. — Já faz 4 dias que só vem peixe!
— O estoque de carnes acabou. — Amice abre um sorriso para disfarçar a situação. — Talvez chegue um novo daqui a um tempo.
— Você não gosta de peixe, Luar? — Aurora não hesita e experimenta o prato que lhe foi dado. — Quando eu estava nas cortinas, raramente vinha algo além de pão e legumes!
— Não, não! Eu quero carne de porco! — Luar ignora os comentários anteriores. — Vou fazer uma cartinha para o meu pai reclamando!
— Se você não comer logo. — Aurora coloca uma garfada de comida na boca. — Eu fou fomer fua fomida!
A criança a encara com os olhos cerrados, como se a jovem fosse sua inimiga mortal. Por isso, ela abre um sorriso maléfico antes de desviar o olhar.
— Quem comer PRIMEIRO vence! — Luar grita enquanto o alimento entra em sua boca rapidamente. — O Fencedor Fome a Fomida fo oufro!
Uma enorme corrida de comilança se inicia, os garfos ferozes fazem o mesmo movimento repetidamente, competindo entre si para decidir qual será o mais rápido. Enquanto isso, as bocas moem minimamente tudo que entra no alcance dos dentes. Ali, não importa a digestão futura, somente engolir o mais rápido possível é relevante.
Por começar na frente, além de ter uma boca maior, Aurora se sobressai e ganha a tão acirrada disputa após exibir seu prato magnificamente limpo. Como uma má perdedora, Luar observa com a cara fechada a alegria de sua amiga, ela não está a fim de perder sua comida que tanto desdenhou.
— Pode comer o resto. — Aurora notou o incômodo da jovem. — Eu só quis proteger minha parte de você!
— Na próxima vez eu venço. — Claramente, a criança ficou feliz em poder continuar sua refeição, mas tenta disfarçar. — Você só venceu porque começou na frente!
— Você tem muito a aprender antes que seja uma comilona no meu nível! — Aurora faz um movimento de mão que causa risada em ambas.
Após diálogos irrelevantes entre as duas durante a refeição, a comida em fim se extingue. Por isso, as duas brincam na cama de Aurora, desde o pega-pega, até mesmo de briga de cosceguinhas. A agitação foi tanta, que nenhuma delas percebeu que Amice já não está no recinto.
No meio da diversão, Luar percebe a espada estranha sobre a mesa, seus olhos brilham com aquela descoberta de tal maneira, que suas pupilas escuras parecem um estrelado céu, um tão belo quanto o gravado naquele vestido tão remendado da jovem.
— Isso é uma espada? — Luar corre em direção ao balcão e tenta levantar a espada com um enorme esforço.
— É-é sim. — Aurora se estica para pegar a lâmina da mão da criança. — Não mexa assim, você vai se machucar.
O momento de tensão é rapidamente aliviado quando Luar entrega a arma e pula na cama para observá-la de perto. Para a criança, apenas de observar os detalhes é como se sentir em uma batalha de seus sonhos.
— Uau! Ela é tão linda! — Luar parece deslumbrada, mas algo chama a sua atenção. — O que são esses negócios escritos?
— É uma língua que você não conhece. — Aurora desvia o olhar para não dizer a verdade. — Está escrito... nomes dos antigos donos.
— Sério? Que legal! — A criança parece ainda mais empolgada. — O que quer dizer esse daqui...
Antes que a criança concluísse sua pergunta, a porta atrás de si abre de repente. Uma freira coloca sua cabeça para dentro do quarto como se procurasse alguém, seus olhos se fixam rapidamente na criança sobre a cama.
— Luar, preciso que me siga. — Pede a devota.
— Não, não! — A criança se esconde por detrás de Aurora. — Você vai me dar remédio amargo!
— Não é remédio, menina, é uma surpresa. — A freira adentra no cômodo, é uma senhora relativamente velha. — Você gostará dela.
— E como você pode provar isso? — Luar projeta sua cabeça sobre o ombro de Aurora, encostando seu queixo no membro. — Não confio em quem me deu remédio amargo!
— O seu pai veio te visitar. — Quando estas palavras saem de sua boca, a menina rapidamente pula da cama desengonçadamente e corre em direção ao corredor. Nem ao menos se despediu da sua amiga.
— Pai! Cadê você? — A voz dela ecoa pelos corredores.
Aurora dá uma risadinha com a atitude da jovem, ela é realmente fascinada pelo seu pai. O olhar da velha freira de volta para a jovem sobre a cama, ela a examina um pouco.
— Amice ainda não tirou seus curativos? — A devota se aproxima. — Tenho que treiná-la melhor.
— Ela cuida bem de mim. — Aurora a defende com um sorriso.
— Curativos velhos não são bons. — A face de Aurora é jogada de um lado para o outro, a freira parece examinar com extremo cuidado — Além de nem serem mais necessários, está tudo cicatrizado.
— S-sério? — Aurora demonstra empolgação ao notar sua melhora. — Será que posso ver como está por baixo?
— Claro. — A freira confirma enquanto tira os tecidos sobre o rosto. — Depois pego um espelho para você.
O remover dos curativos não dói em nada, já que não há mais sangue seco grudado em sua pele fragilizada. Enquanto são removidos de todo seu corpo, Aurora pensa em como será sua aparência, afinal, inúmeras partes de si foram dilaceradas.
Sua mão sobe em direção a sua bochecha, para sentir a grande cicatriz por toda a sua mandíbula. É estranha a sensação do seu toque, porque consegue sentir a emenda por dentro e fora da boca. "Deve estar bem feio" ela pensa devido ao tamanho do queloide.
— Pronto! — A freira se afasta com um sorriso um pouco forçado. — Vou pegar um espelho.
A devota caminha em direção à porta e abre, todavia, ela não sai do quarto, apenas inclina seu corpo como se estivesse pegando algo. Talvez haja um carinho de utensílios lá fora. Dessa forma, a freira volta rapidamente com um pequeno espelho de mão e entrega para a jovem.
Aurora demonstra um certo receio em subi-lo em direção ao seu rosto, porém, após um suspiro, o levanta. Uma mistura de felicidade e tristeza imunda seu coração, ela está bem, está viva, está melhorando, mas aquelas marcas a lembrarão de como é fraca pelo resto de sua vida.
Sua face não é tão bela quanto a anterior ao inverno, suas escolhas moldaram a sua imagem. Está mais feliz do que naquele castelo, mas por que sente um vazio tão grande no peito ao se ver naquele estado? Ela realmente quis isso?
— O que você achou, querida? — A freira demonstra preocupação com a jovem, a qual não a responde. — Você pode ficar com o espelho... apenas o devolva para a freira Amice.
A devota se despede da jovem e caminha para fora do cômodo, há mais pacientes para serem tratados afinal. Desse modo, a jovem fica algum tempo sozinha, encarando sua própria imagem.
Após um tempo, o colocou sobre a cômoda e encarou o teto de madeira, não há pensamentos, tudo é muito estranho. Por causa disso, a jovem consegue ouvir nitidamente alguns passos pelo corredor, os quais parecem se aproximar. Isso a anima, afinal, hoje é o dia que Sadh costuma visitar. O que ele pensará de seu rosto?
Entretanto, suas expectativas são brutalmente despedaçadas com o abrir da porta. Sua tão querida amiga, Luar, esboça um enorme sorriso enquanto adentra no cômodo. Junto a ela, um homem passa pela porta, pois a criança puxa a mão de madeira dura dele com seus delicados dedos.
— Olha! Pai, minha amiga! — Luar os apresenta sem perceber a expressão nas faces deles. — O nome dela é Aurora! Muito bonito, né?
Os olhos de Aurora expõem seu pavor, seu corpo treme somente com a presença daquele ser que a castiga com o olhar. Seu coração bate tão forte que parece prestes a sair do peito, afinal, ela sabe que não há saída.
O homem mais forte dos Sacros-Reinos-Libertos a encontrou. Moretti em fim, aparece em frente aos seus olhos, um acontecimento que deveria ter acontecido naquela fatídica noite clara, a noite das chamas que tocavam o céu.
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