XXVIII. Tagarela
O frio estridente se ameniza lentamente, no entanto, nada parece a aquecer. Isso a intriga, Aurora sabe que está parada em algum lugar mais confortável que a grama nevada. "Onde eu estou?" é o que pensa.
O tempo também é confuso, se passaram dias ou semanas? É difícil medir quando está isolada em sua própria mente. Além disso, não sentiu nenhum toque ou afago de seus amigos, o menor que seja. "O que aconteceu?".
Aos poucos seus sentidos voltam, sendo o primeiro deles uma fraca audição. Apenas alguns ruídos e vozes retorcidas são audíveis, porém incompreensíveis a tal ponto que nem mesmo a ouvinte reconhece se pertencem a algum conhecido. Após isso, veio a luz branca, uma tão forte que sua visão é dominada somente por ela, não há espaço para formas, cores ou vultos. Seus olhos se abrem depois de muito tempo.
Não demora para que os tons se distinguem do singular, mas não são acompanhados de uma forma ou um contorno, apenas borrões. A partir desse momento, Aurora nota quando é dia ou noite, o tempo já não é mais um desconhecido. Além disso, a jovem sonhadora nota alguns vultos no momento que o fluxo de luz é interrompido. Eles são geralmente acompanhados com os ruídos incompreensíveis, todavia, tudo ainda se mantém rabiscado demais para que ela compreendesse e, por isso, limitou-se a sorrir, um sorriso não tão grande quanto o anterior ao inverno.
Os longos e entediantes dias se passam e, lentamente, seus sentidos retornam. As primeiras coisas a se consolidarem perante seus olhos são as suas mãos, que ainda têm os contornos borrados. A coisa que mais chama sua atenção são as marcas do passado, desde as mais simples como pequenas marcas de queimadura a grandes cicatrizes em suas mãos. A mais nova delas é no seu braço direito, exceto o dedão, todos os seus dedos têm uma cicatrize semelhante, um retalho bem perto do palmo.
Os pontos ainda a incomodam, por parecerem remendos da sua própria carne, que corrige grosseiramente os seus erros. A fim de explorar o ambiente em sua volta, Aurora segura o que está em seu alcance, notando, assim, a limitação do membro recém ferido. O fraco apertar da sua mão direita a amedronta, as batalhas têm consequências permanentes.
A audição evoluiu logo em seguida, a jovem consegue notar o tossir, o gritar e o falar daquele cômodo. Finalmente, ela consegue conversar com alguém que a visita constantemente, com o seu semblante se transformando em uma imagem, é uma freira.
Aparentemente a fiel é jovem, usa roupas longas e negras, que destacam o colar de madeira com uma cruz. Seu rosto ainda é uma incógnita para a jovem recém desperta, no entanto, a mulher parece ser uma boa pessoa. A devota explica do que se trata este ambiente, uma enfermagem na Catedral de São Rafael.
Aurora se intimida com a resposta, porque suas experiências no passado não valorizam tal templo. Todavia, a freira a tranquiliza, afirmando que ali só há boas pessoas, as quais salvaram a vida dela.
A pergunta sobre seus amigos é feita logo no início. "Eles estão bem? Estão aqui? Me visitaram?", os diversos questionamentos consecutivos atordoam a devota, que explica que ainda não é permitido visitas devido ao seu estado.
Aurora discorda, para ela seu corpo já está em plenitude. Entretanto, com um simples puxar da sua perna ferida, a devota comprova indubitavelmente que a jovem sonhadora está completamente equivocada por meio de um grito de dor. Seu corpo chegou no auge do desgaste e demorará muito tempo e esforço para que ela possa sair pela porta pesada.
Os olhos da jovem sonhadora não negam sua decepção, afinal, pensou que a parte mais difícil já havia passado. Enquanto se lamenta, a jovem cristã pede licença para tratar outros internados, mas a Aurora pergunta seu nome antes que ela sumisse atrás das cortinas, "Amice" é a responta que lhe foi dada.
O barulho monótono volta a dominar o ambiente, a já velha garota aperta seu punho enfraquecido mais uma vez, não consegue nem realizar a menor dor sobre seu palmo, está fraca, muito fraca.
Há muitas coisas para se arrepender ou lamentar, apesar disso, Aurora tenta se manter positiva de alguma maneira, se ilude que o seu sonho está mais perto do que nunca, o tal desejo insensato.
O correr de passos efêmeros chama a sua atenção, a risada que ecoa pelas enormes paredes de madeira pode ser ouvida por todo o salão de uma maneira que é difícil direcionar sua origem. Contudo, Aurora descobre facilmente a origem de tal êxtase, uma vez que a emissora de tal gargalhada rasteja para dentro de suas cortinas.
Aurora a encara com surpresa e, antes que ela conseguisse falar algo, uma menina tampa a sua boca com as mãos. Por estar mais próxima, seu rosto é mais nítido do que a da freira, sua face é redondinha, com olhos marrons bem claros, quase um âmbar exaltando sua beleza jovial. Além disso, seus cabelos negros chegam até os seus pequenos ombros, já suas vestes se assemelham a de Aurora, é uma paciente.
— Xiu! Não me dedura! — A menina solta a boca de Aurora e faz um sinal de silêncio. — Se não eles vão me pegar!
— Eles quem? — Aurora questiona ainda confusa antes de ter sua boca tampada mais uma vez.
— Fala mais baixo! — A criança implica com uma voz mais alta que a da própria Aurora. — Os padres querem me pegar e me obrigarem a beber aquela coisa horrível! Bluh!
— O que eles te fazem beber? — A jovem de olhos verdes pergunta com seriedade, talvez devido à sua desconfiança com igrejas.
— Um remédio, eu acho, mas eu não preciso! — A menina se levanta em cima da cama para se exibir. — Olha só como o meu corpo está fortinho! Não precisa de remédio amargo!
Aurora ri com a ação da criança, a qual parece não gostar da zombamento sobre sua imagem de resiliência.
— Ei! Não é para rir da minha resistência! — Ela balança a cabeça como reprovação. — Eu vim aqui só para te salvar desse remédio e você me trata assim?
— Só para me salvar é? — Aurora leva aquilo como uma brincadeira de criança.
— Sim! Na verdade, não... eles nunca me deixam vir aqui! Falam que meu corpo é fraco! Blá, blá, blá! Tudo bobagem desses padres! — A menina move sua mão como uma boca. — Ai, eu vim aqui para ver se é tão perigoso, mas só tem doentinhos e pessoas machucadas, como você!
— Bem... é de se esperar de um hospital, né? — Aurora encara melhor a menina, nota suas roupas mais "autorais" recheados de manchas de tintas e desenhos bobos. — Você está muito tempo aqui?
— Eu acho que sim, mas tem pessoas que estão a muito mais tempo do que eu. — Ela realça a diferença de permanência com os braços. — Você deve ser novata né? Nem tiraram seus curativos!
— Acabei de acordar. Nem sei a quantos dias estou aqui. — Aurora percebe o rosto que a garota aproxima seu rosto do dela.
— Então você nunca saiu da cama? Aqui é enooorme! Tem muito lugar para correr das freiras! Vou te mostrar todos os meus esconderijos quando você melhorar... — Sua fala alegre é suprimida quando diversos passos ecoam pelas paredes. — São eles! Deixa eu me esconder com você!
— Mas onde? Se ficar debaixo dos lençóis vão te notar. — Aurora começa a olhar ao redor a procura de um esconderijo, mas sua visão borrada não facilita.
— Eu já sei como me esconder aqui! — A de cabelos negros fala com confiança nas suas habilidades. — Só não deita no travesseiro até eles irem embora!
A menina se rasteja pela cama até chegar nas costas da Aurora, onde ela pega o travesseiro e retira todo seu interior, só ficando o tecido. Após isso, empurra toda a parte confortável para deixado da cama e, por fim, entra na fronha para se esconder um poucos antes que a cortina fosse aberta.
Um padre vasculha rapidamente o local e, ao constatar que não há ninguém ali, fecha a cortina e caminha para o próximo paciente. Demora alguns minutos até que vasculhem tudo e partam para outra sala.
A menina dá uma risadinha quando os passos deixam de ser audíveis, saindo do seu abrigo com um sorriso triunfante.
— Eu te falei que sabia me esconder. — Ela diz orgulhosa. — Agora estamos seguras por algum tempo, não vão dar remédios até me acharem!
— Eles não tão te procurando com muito empenho? — Aurora fica surpreendida pelo contingente de pessoas atrás da de olhos quase âmbares.
— É por que meu pai vai dar uma bronca muita grande neles se não me acharem! — Ela ri novamente. — E eles nem podem me deixar de castigo, meu pai não deixa.
— Seu pai manda nos padre? — Aurora se surpreende cada vez mais com aquela inusitada garota. — Ele é o bispo daqui?
— Não, não! Ele é um militar! Sempre me conta as histórias do campo de batalha! — Ela fala com muita admiração. — E você está toda acabada, também deve ter muitas histórias! Me conta uma!
— E-eu não sou uma soldada... não sei se minhas histórias são tão boas assim. — Aurora tenta não dizer muito sobre si.
— Se não fossem boas, não teria essa cicatriz na boca. — A menina aponta para o corte no seu lado esquerdo. — Nem meu pai tem uma cicatriz dessa!
— Foi uma briga bem intensa... — Ela passa a mão sobre o curativo que se estende por todo maxilar. — Ficou muito feio?
— Deixa eu ver. — A criança se aproxima e começa a olhar o ferimento, como se quisesse ver ao além dos tecidos de algodão. — Para mim você é muito bonita ainda! Além de ficar ameaçadora agora! Ninguém vai querer se meter com você de novo!
Aurora ri novamente, aquela garota é muito espontânea a tal ponto que não parece medir suas palavras. Com certeza não foi muito freada no passado.
— Obrigado por gostar! Isso me deixa menos preocupada. — Aurora sorri, um sorriso um pouco maior, do que ela fez quando acabara de despertar.
— De nada! — A menina parece orgulhosa. — Agora me conta a história dela!
— Você ainda quer ou...? — Aurora tem sua fala interrompida.
— SIM! — A menina praticamente grita. — Não vou sair daqui até me contar!
Aurora suspira ao ver que não há saída. Antes de contar sobre seu embate, ela decide ocultar alguns detalhes, pois a menina não precisa saber sobre as maldições ou sobre seu passado.
— Bem... tudo começou numa floresta longe daqui, eu acho. — Aurora mede muita suas palavras. — Eu estava com meus amigos numa cabana, até que um homem do mal apareceu.
— Um homem do mal? Mas por que ele atacou vocês? — A menina parece ser mais inteligente que a Aurora pensou. — Tipo, ele não ia atacar pessoas aleatórias no meio de uma floresta, né?
— Então... ele era um bandido! — Aurora improvisa. — Ele queria roubar nossas moedas que passaríamos o inverno!
— Que malandro! — A criança parece se interessar na história. — E depois?
— Ele esperou que eu fosse sozinha para fora e, quando fui pegar madeira para a fogueira, ele me atacou! — Aurora parece se divertir com os espantos da ouvinte.
— E você lutou? — A garota se anima.
— Lutei! Eu consegui espantar ele, mas fiquei muito machucada, como pode ver. — Aurora mostra os curativos. — Então tive que ser salva pelos meus amigos, que me trouxeram até aqui.
— Uau! É a primeira história que ouço de uma guerreira! — Ela parece se encantar. — Um dia eu também vou para batalha! Vou lutar do lado meu pai!
— Que legal! Só não se machuca demais que nem eu, hahaha! — Aurora não tenta incentivar esse sonho ardoso, por experiência própria.
— Mas falta algo na sua história. — Aurora fica apreensiva enquanto a menina pensa. — Cadê seus amigos?
— Meus amigos? ... Eu também não sei. — Aurora pensa, quantos dias fazem desde que despertou, e nenhum deles a visitou. — Mas devem estar pela cidade, esperando eu melhorar.
— Devem estar por aí na cidade, meu pai também some às vezes por alguns meses, mas sempre volta! — A criança fala inocentemente, como se não temesse a vida do pai na guerra, deve confiar muito nele. — Ah! Quase que eu ia esquecendo, qual o seu nome?
— Conversamos tanto e sabemos os nomes uma da outra! — Ambas dão uma risadinha. — Eu me chamo Aurora, e você?
— Que nome bonito! Parece com você, pois seus olhos brilham! — A garota sorri. — Agora o meu é...
Antes que pudesse concluir, a cortina se abre bruscamente, revelando assim, algumas freiras acompanhadas de um padre. Todos olham para a menina sentada no canto da cama, a qual cochicha para sua nova amiga: "Acho que falei alto demais".
Sem muita resistência, ela aceita sua derrota na brincadeira de gato e rato, não tentando fugir diante do cerco. O padre suspira com reprovação antes de segurar o braço da criança.
O homem é velho, deve ter perto dos seus 60 anos. Fisicamente, tem a postura torta acompanhada de uma barriga bem grande. Já seu rosto, é redondo com uma pele murcha e acidentada, só se salvando com seus olhos castanhos.
— Ah! Padre Bjorn, eu estava conhecendo minha nova amiga! — Ela olha para a Aurora.
— Seu pai está por um fio me cortar minha cabeça! — O padre dá uma bronca. — Além de que você não pode interagir com doentes!
— Mas ela não está doente! Só está machucada! — A menina contesta.
— Então peça para o seu pai quando ele for te visitar. — O padre a puxa para fora da cortina. — Até lá você não pode vir aqui.
— Aaaaah! Nem você sabe quando ele vai ter tempo para me visitar! — A criança olha para trás, vendo a Aurora pela última vez. — Tchau! Eu me chamo Luar!
— T-tchau! — Aurora responde não tão alto.
A cortina se fecha e o monótono volta a se impregnar no pequeno ambiente.
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