XXVII. Sunderland
*Há um dia, Sunderland*
A noite gélida do inverno traz consigo pequenos flocos de neve, os quais anunciam o congelamento da terra daqui a alguns dias. Gigantescas como morros, as muralhas de Sunderland são implacáveis, pois centenas de soldados patrulham, dessa forma, eles mantêm a segurança da cidade mais rica do mundo.
O sossego se extingue quando o galope de dezenas de cavalos se juntam a ventania. Arcos são apontados em direção da tropa que se aproxima, apenas os esperam se distinguirem da escuridão. Todavia, a agressividade é suprimida quando as bandeiras do Reino de Sunderland são clareadas junto as soldados que chegam, o exército real retornou.
O portão é rapidamente aberto por dezenas de sentinelas, os quais puxam as correntes presas a madeira. Tal rapidez é justificável, afinal o rei de Occitânia venceu invasores eslavos junto a coligação dos demais reinos sacros, todos os militares querem um pouco dessa glória.
Os guerreiros recobertos por armaduras de placas adentram na cidade, além disso, são recebidos por outros homens que os esperam com alegria de vê-los vivos. Assim, com as histórias sobre a batalha, os soldados comemoram a vitória ainda na entrada.
Um cavalo preto como o carvão abandona o restante do batalhão, a pessoa que o monta parece apressada, todavia, logo é acompanhado por outro, o qual anda em um cavalo menos puro. Ao ficarem lado a lado, aquele que segue olha para o cavaleiro recém-chegado, constando ser o rei daquela metrópole, Moretti.
— Como está minha filha, Pascoal? — O homem com mãos de madeira pergunta com seriedade.
— Passa bem, ela perguntou quando você chegaria. — O serviçal abre um pequeno sorriso. — A Catedral de São Rafael mantém o tratamento dela perfeitamente, nem parece que ela está doente.
Moretti fica alguns segundos em silêncio, parece aliviado, mas ainda reflexivo e preocupado. Pela trajetória de seu cavalo, ele se dirige a santa igreja, local onde sua filha é tratada.
— Como está a região? — O barbudo muda de assunto após sua maior preocupação ser resolvida.
— Prospera como sempre... — Pascoal desvia o olhar inquieto. — Porém, grupos imperiais ainda atacam os moradores fora da capital.
— Já solicitou ajuda ao Sacros-Reinos-Libertos? — A voz de Moretti parece conter raiva.
— Nos disseram que a aliança tem problemas maiores, não se sabe a data de uma possível coalizão. — O serviçal parece temer a próxima fala de seu mestre. — Nem se quer debateram formalmente tal problema.
— Convoque uma reunião com o guardião da fissura, problemas na região são mútuos, temos que negociar uma possível intervenção da Igreja Católica. — Moretti solta um suspiro. — A grande cidade de Sunderland precisando de ajuda externa... a mais rica do mundo... até parece. — Ele ironiza.
— O templário virá em tempo hábil. — Pascoal parece anotar o pedido em uma folha de papel. — Só não compreendi seu comentário sobre a metrópole, quer conversar com os administradores para buscarmos uma maior autonomia?
— Não, eles são parte da vulnerabilidade estatal, corruptos! — Sua voz tem uma entonação odiosa.
— Você pode revogar seus mandatos caso seja necessário, afinal, você é o rei. — Pascoal fala como se fosse a coisa mais obvia do mundo.
— Um mero rei como eu não tem poder algum. — A fala parece atiçar o servo. — Somos renegados pela santa aliança e controlados pela igreja, ou melhor, por um único homem. — Moretti aponta para as forjas da cidade. — A maioria delas está nas mãos do Meroveu, todas compradas estrategicamente antes que a rebelião surgisse, ele sabia que aconteceria.
— Meroveu? O Grão-mestre dos templários? — Pascoal se mantém confuso. — Não há propriedades em seu nome.
— Basta ver as colossais doações feitas para a Catedral de São Rafael, caso siga os comboios, nenhum deles chega até o Vaticano. — Meroveu puxa um papel do seu casaco de pele de urso e entrega para o seu acompanhante. — Se ele controla as forjas e a ravina, a cidade é dele, não minha.
— Como alguém tem tanto poder? — Pascoal lê o papel. — O que o senhor vai fazer, meu rei?
— Eu? Vou ver minha filha dormir. — No momento que fala isso, chegam a Catedral de São Rafael.
— E a cidade? Temos que relatar para os Sacros-Reinos-Libertos! — O servo acompanha o rei até a enormes portas do templo.
— Nesse mundo, existem duas pessoas que jogam um grande e complexo jogo, apenas não seja descartável para um ou uma ameaça para o outro. — Moretti é recebido pelos padres do local os cumprimentando brevemente, mas antes de passar as portas olha para o Pascoal. — Não há nada a se fazer.
O serviçal fica olhando as portas se fecharem, completamente confuso pela enigmática frase do seu senhor. Depois de alguns segundos pensando, decide seguir o concelho de Moretti, apesar de achar que ele mesmo não se quer um pião nessa grande partida.
A próxima noite é tão congelante quanto a anterior, a única diferença é a quantidade de neve que cai do céu escuro. Alguns centímetros do branco se formam em cima das casas e das ruas, é a primeira grande nevasca do inverno, épocas de escassez se aproximam. Sobre as muralhas, fortes rajadas de vento atormentam os soldados de plantão, por causa disso, muitos deles se recolhem nas torres de vigilância para buscar abrigo.
Nessa falta de vistoria, não é difícil um pequeno grupo de três pessoas se esgueirar pelas sombras, a chegada nas enormes pedras empilhadas ocorre sem preocupações. Parece impossível escalar as tão íngremes defesas, caso queiram adentrar na cidade, terão que buscar outra entrada.
O tremular de frio da mais fraca agiliza os dois homens, eles não querem que a Aurora fique doente, isso poderá custar a sua vida. Por causa disso, não demora para que a solução se revelasse, os esgotos da grande metrópole. Os reforçados canos de robustas pedras acabam no leito de um grande rio, que por sorte se encontra parcialmente seco. Dessa forma, uma parte superficial era vista sobre as águas, é uma pequena parcela, mas indica que existe ar lá dentro, o suficiente para respirar.
— Será que dá para entrar por ali? — Sadh questiona sem ânimo pelo rio congelante.
— Terá barras de metal pelo trajeto. — Wem responde enquanto desamarra a Aurora de suas costas.
— Mas você pode rompê-las, né?
— Sim, mas haverá barulho. — O brutamontes segura a Aurora com seus dois braços e fica de frente a Sadh. — Leve a Aurora e passe das barras com sua maldição.
— Dá para fazer isso... mas ela vai ficar encharcada. — Sadh a segura com mais dificuldade que Wem demonstrava. — E eu vou perder algum tempo de vida.
— Leve-a para a igreja, suborne com isso. — Wem parece ignorar, além disso, ele mexe em seu casaco e puxa um saco de moedas.
— Como você tem tanto dinheiro? — Sadh pergunta enquanto vê dezenas de moedas de prata e bronze, até algumas de ouro.
— O serviço militar pagava bem, mas são as últimas. — Wem se vira e vai em direção a um bosque qualquer.
— Você não vai entrar? — Sadh pergunta antes de partir.
— A atenção causada pela minha presença é perigosa. — Wem responde antes de entrar no matagal
Sadh o observa até que suma de sua vista, aos poucos, o incessante sentimento de desdém se extingue, é a primeira vez em muito tempo que o ódio não domina seu coração.
— Até que em fim um momento sem ele. — Sadh fala para a Aurora, que obviamente não responde. — Vai ser um pouco frio, mas logo, logo você dormirá em uma cama confortável!
Ele respira fundo, ergue o corpo desacordado da jovem sonhadora o mais alto que consegue para protegê-la das águas fétidas e grita "Dash". Os dois somem do leito do rio sem que haja nenhuma priva de suas passagens, pois a neve continua a cair.
O repugnante fedor fecal acompanhado pela água na altura do pescoço torna a trajetória extremamente enojante. Além disso, a cada 2 metros há uma nova barreira compostas de barras de ferro enferrujadas, o que o força a usar a sua maldição exageradamente.
Até que o fim do córrego imundo chegasse, ambos já estavam completamente sujos pelos dejetos da cidade. O último bloqueio era o mais conservado, talvez os responsáveis pela metrópole queriam passar uma impressão para seus habitantes, todavia, é passável igualmente aos demais.
Em um momento de cansaço, Sadh deita a Aurora em suas pernas enquanto se senta no tão desejado chão. Os seus braços doíam pelo enorme esforço de manter a boca da jovem sobre a água, apesar disso, sente um pouco de paz por ter finalmente chegado na metrópole.
Além disso, era a primeira vez que está sozinho com a Aurora, mesmo que ela esteja desacordada, cheia de ferimentos e coberta de dejetos fecais, ele a admira muito. Foi um pouco da sua beleza somado ao seu ser que o mantém no grupo.
Após alguns minutos assim, Sadh lembrou-se do frio do chão nevado, rapidamente ele a ergue, deitando-a sobre seus braços doídos. A princípio, ele considera partir para a igreja, mas se lembra das condições de seus corpos, ele não podia deixar margem para que ela fosse recusada.
Por isso, Sadh decide procurar algum poço ou rio para que pudesse pelo menos limpá-la um pouco, tal tarefa é facilitada pelas ruas vazias, pois não tem questionadores. A solidão é um pouco estranha, apesar da noite, deveria ter um movimento baixo, não está tão tarde.
A sorte não é absoluta, porque ele não encontra um fluxo de água em nenhum lugar, só há moradias fechadas e ferrarias esfumaçantes. Por fim, chegam em uma grande praça iluminada por alguns postes com chamas fracas. Ao contrário do restante da metrópole, o movimento é absurdo, nem mesmo a neve espanta os moradores.
Ventos cortantes e esbranquiçados atrapalham a visão de Sadh, algo deve estar ocorrendo naquela praça, mas o que seria nessas horas da noite? Bem, ele não pretende descobrir; por isso, começa a girar seu corpo para ir embora, mas uma visão o impede, no canto da praça existe um poço.
A princípio ele hesita em ir, podem ser vistos, entretanto, o tremer da Aurora o pressiona. Escondidos nas sombras, Sadh avança lentamente para não ser visto. Com constante observação, ele acaba analisando melhor a praça. A mesma é enorme, diversas árvores secas compunham a paisagem junto a um rio que a divide ao meio.
Em seus ideais, Sadh espera que Sunderland fosse uma cidade "agressiva", onde a fumaça fosse o elemento de destaque, assim como aquela vila ferreira. Isso o impressiona, um campo verde rodeado das mais poluentes forjas.
Porém, isso não é o seu foco momentâneo, ele espreita perto do poço, apenas espera o momento certo. Assim, quando o movimento da praça se condensa no evento, ele rapidamente corre até a fonte de águas, encostando a Aurora na grama e depois puxa o balde o mais rápido que consegue.
Nesse meio tempo, consegue ouvir os gritos dos guardas que tentam controlar a multidão. Parece ser algo sobre mantimentos para o inverno, será que até mesmo a metrópole passará por escassez?
O chegar da água gelada alivia Sadh, ele rapidamente umedece parte de suas roupas para limpar a Aurora, tal processo leva alguns minutos, pois ele não queria molhá-la além do necessário.
Quando ela finalmente está minimamente livre das impurezas, o aparente homem de 40 anos a segura e se esconde nas sombras, finalmente poderá levá-la até a catedral. O frio das suas humildas roupas o agiliza, ele não pensou em onde se abrigará naquela fria noite. Além disso, precisa garantir que a Aurora será aceita, por isso, ele começa a separar as moedas do saco, juntando as moedas de prata e de ouro e separando as de cobres.
Para fazer isso, ele acomoda momentaneamente a sua paixão sem seu ombro, assim, divide as moedas em dois sacos, porém a quantia no saco das moedas valiosas era extremamente superior a das meras moedas bronzeadas.
Quando se aproxima do enorme templo, percebe um andar de carruagens nas ruas. Devido a isso, se esconde em um pequeno e estreito beco para que elas possam passar. Nesse momento, ele vê brevemente alguém peculiar, suas características individuais são cobertas pela velocidade e escuridão, porém ele tem certeza que a mão daquele homem era feita de madeira.
Sadh dispara seu coração, só há uma pessoa com tal peculiaridade, o grande general do Sacros-Reinos-Libertos e o militar mais forte deles, Moretti. Então ele que assumiu o reino dessa metrópole. É de se imaginar, uma cidade monstruosa para um ser monstruoso.
Por sorte, Sadh passou despercebido, assim se acalma lentamente até que corra o mais rápido que pode para a santa igreja, já está cansado de tantos desafios em tão pouco tempo.
A chegada tão desejada em fim acontece, as enormes torres junto a gigantesca cúpula mostram o poderio da santa fé. Suas grossas e robustas portas se encontram fechadas, protegidas por templários, parece impossível adentrar tão facilmente, Sadh almeja de coração que os homens sejam facilmente compráveis.
Sua aparição alerta os soldados, que ordenam sua retirada, porém Sadh como um bom ex-criminoso, também era um ótimo vigarista.
— Não ataquem! Sou apenas um pai que clama pela vida sua filha! — Sadh finge um tom de voz cansada e preocupada. — O frio degastou as suas forças, precisamos da ajuda de Deus!
— O hospital da catedral está cheio, busque outro lugar. — O soldado adverte.
— Mas já tentamos de tudo, nenhuma curandeira consegue fazê-la melhorar dos ferimentos feitos por aqueles violentadores! — Sadh conta um monte de mentiras sem hesitar a sua voz. — Por favor, Deus é a nossa única opção!
— Já dissemos que não há vagas para caridade, vá embora. — O soldado puxa a sua espada como ameaça.
— O que está acontecendo? Os pacientes estão reclamando! — Uma voz surge por trás dos guardas.
Uma pequena "janela" surge na porta espessa, o buraco só era o suficiente para que os olhos castanhos de alguém fossem expostos.
— Senhor Bjorn, esta família pede por proteção e tratamento. — O templário se vira para falar com o homem por trás da porta.
— Não há mais vagas para caridade, voltem quando abrir novos leitos. — A voz afirma o que foi alertado anteriormente.
— Mas não será caridade, temos dinheiro para pagar pelo tratamento! — Sadh puxa a bolsa e mostra seu interior recheados pelas mais preciosas moedas de ouro e prata. — Esse será só primeiro pagamento, temos o suficiente para interná-la por muito tempo. — Sadh puxa a bolsa cheia de moedas de bronze, só que não revela seu interior, a fim de insinuar que seria outra com ouro e prata.
— A Catedral de São Rafael sempre precisa de mais recurso para tratar a população. — O tom da voz de Bjorn muda totalmente, agora se torna extremamente amigável. — Tragam-na para as salas dos feridos, acabei de lembrar que um leito acabou de ser desocupado.
Um soldado se aproxima de Sadh a fim de pegar a Aurora, todavia, percebe o cheio que exala do aparente pai.
— Porque fedes tanto? — O templário segura a Aurora, aparentemente enojado.
— Um pai faz de tudo para salvar a sua filha. — Sadh responde com vontade, só ele sabe o quanto sofreu para levá-la ali.
— Sua filha será medicada e abençoada imediatamente, poderá visitá-la amanhã se quiser. — Bjorn parece querer acalmar a tensão.
— Por favor, a curem! — Sadh suplica uma última vez antes de se virar para ir embora.
— Ela está nas mãos do Senhor. — A voz por trás da porta parece orar. — Qual o nome dessa linda jovem?
— Aurora. — Sadh responde aliviado que seu plano tenha dado certo, mas agora se encontra receoso por não saber onde dormir naquela tão fria noite.
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