XXV. Entendimento

O doce dourado contido no pequeno pote é pego por Sadh, seu aroma de mel silvestre era tentador. Ao olhar para os lados, o loiro não encontra o doador de tal fartura, no entanto, sabia o autor de tal confraternidade.

Talvez o garoto tenha ouvido a conversa da noite passada, será que ele deixará as diferenças de lado? Independendo da resposta, Sadh sentia que teria que agradecer a tal agrado, pois o jovenzinho compartilho o pouco que aparentemente tinha.

Os raios solares começam a iluminar o interior, tornando o restante da barraca um pouco mais visível. Dessa forma, é perceptível o longo corredor que passaram, o mesmo continuava até uma porta selada com várias tábuas, devia ser ali a entrada do jardim. No meio do trajeto, restava três portas fechadas, em qual delas o menino se esconde?

As 3 entradas serão o foco de Sadh, afinal a criança deve estar escondida em uma delas. O tocar na primeira porta é ignorado, todavia estava desobstruída, por isso o jovem com aparência de adulto entra.

Era um quarto semelhante a qual dormiu, paredes de madeira sem nenhum tipo de detalhe e uma janela trancada. Ademais, alguns elementos novos se destacavam, uma cama de casal amarrotada e um chão limpo, provavelmente o garoto dormia ali.

Apesar disso, estava vazia, o menino já não dormia. Após a revisão, Sadh ruma para a próxima, a qual não tem resposta nem tranca. Ao adentrar no local, uma cozinha se revela, móveis de madeira como: cadeiras, estantes, prateleiras e uma mesa. Além disso, também existia um fogão a lenha quebrado, o barro que o formava estava rachado de tal forma que o inutilizava, parecia que algo tinha caído sobre ele.

As gavetas estavam vazias além de simples cumbucas para a alimentação, desse modo, confirmando a suspeita da fome da pobre criança. Assim como o cômodo anterior, não havia sinal do residente, por isso, Sadh decide rumar para a última porta.

O mesmo processo se repete e com o mesmo resultado, Sadh entra sem nenhum convite. Essa sala parece se diferir das outras, era a única que não havia nenhum tipo de janela, deixando o local bem escuro. Aliás, o cômodo não parecia seguir uma estrutura comum, o pouco que era possível de ser observado, havia somente estantes altas que tocavam no teto, com ressalvas a algumas caídas no chão, todas vazias.

Seria ali que o mel outrora era guardado? Isso não era um bom sinal, não parece restar nada para a criança sobreviver. Com tais preocupações, Sadh adentra mais a fundo no lugar, sempre com a visão atenta a qualquer movimento.

Se destonando do caótico, Sadh percebe alguns objetos encostados na parede, todos de jardinagem e enferrujados. O que lhe mais chama a atenção foi um velho machado, o qual não só perdeu seu fio com o tempo, mas também, algumas manchas estavam encravadas no metal, como se um líquido tivesse repousado nele há algum tempo.

Atrapalhando uma análise mais detalhada, um barulho vindo da madeira podre chama a sua atenção, ao olhar para a direção do ruído, seus olhos apenas alcançam as trevas. Um frio na barriga surge, todavia, Sadh avança, precisa achar aquele menino.

Com passos cuidadosos, Sadh percebe que aquela sala era bem maior que as demais, seu fundo não se difere da ausência da luz. Dessa forma, se questiona se achará a criança, ela poderá fugir dele muito facilmente no meio daquela bagunça.

Suas esperanças se renovam a ouvir outro som bem ao seu lado, no entanto, suas expectativas se rompem ao dar de cara com um rato. Sua aparência é enojante, a fadiga e a fome do corpo miúdo são reforçadas por feridas abertas, as quais são devoradas por larvas. Além disso, as pupilas daquele ser deplorável estavam extremamente dilatadas a tal ponto, que sua córnea mal se distinguia.

O mamífero abominável ainda o encarava sem proposito aparente, estava imóvel. Sadh até questiona se estava vivo, porém a leve respiração não nega tal fato. O jovem decide só ignorá-lo, logo o tempo trará o destino para aquela peste. Contrariando as expectativas, o rato acompanha o ser amaldiçoado por baixo das madeiras, como ele conseguia se mover com tamanhos ferimentos? Não sentia dor ou apelo pela vida?

Enojado, Sadh estava preste a desistir da busca, até que outro som lhe devolve a esperança, um passo. A jornada através das portas em fim parecia terminar, uma vez que um vulto surge perante os olhos de Sadh, uma sombra infantil.

Ao se aproximar, o menino de olhos fundos surge agachado e de costas, parece mexer em algo. Tentando não espantá-lo, Sadh toca gentilmente o seu ombro, porém a reação é justamente a oposta da desejada, o moleque salta no susto, se jogando contra a parede enquanto olha horripilado para o invasor.

— Calma, eu não vou lhe causar mal. — Sadh dá dois passos para trás enquanto levantava suas mãos, tenta mostrar que era inofensivo. — Só vim agradecer pelo pote de mel.

— O monstro veio com você? — O menino pergunta assustado enquanto se esconde por trás de uma prateleira.

— Monstro? — Sadh pergunta confuso. — O rato?

— Não! Aquele gigante que estava atrás de você! — Seu rosto salta entre as tábuas. — Ele estava carregando uma menina bonita, acho que a comeu!

— O Wem?... Esquece, ele não está comigo. — Sadh compreende o medo do jovem. — Você está seguro, não somos pessoas más.

— Então, por que invadiram minha casa? Quebraram até as portas! — O menino retruca se escondendo novamente.

— Bem... a menina bonita que você viu está muito machucada... ela merecia dormir em uma cama. — A voz de Sadh parecia preocupada. — Sinto muito por ontem a noite, pensávamos que a casa estava abandonada.

— Foi o monstro que a machucou? — A cabeça do menino volta a surgir, sua pergunta parecia ter mais curiosidade do que medo.

— Não, o monstro não é tão monstruoso assim, ele é um amigo... bem... um amigo dela. — O antigo ladrão se senta encostado da prateleira. — O nome dele é Wem, ele não é tão mal quanto parece, está cuidando da jovem.

— E o nome dela? Qual é? — Os olhos profundos brilhavam, parecem gostar de algum diálogo depois de tanto tempo.

— Aurora, um nome bonito, né? — Sadh dá uma risadinha.

— Sim! — A criança faz o mesmo. — E o seu?

— Eu me chamo Sadh. — Coloca sua mão na prateleira. — E é um prazer conhecê-lo...? — Ele prolonga a frase a fim de descobrir o nome da criança.

— Federim! — O menino cumprimenta.

O medo, escancarado nos olhos fundos, desaparece. Aquela criança solitária se mostrava alegre no meio das ruínas do passado, Sadh não sabe o que aconteceu, mas tem a certeza que Federim era um bom garoto.

— É um nome adorável! Federim. — Sadh olha para dentro da prateleira. — Não precisa mais se esconder no escuro, queria te ver melhor.

— M-mas... — Federim parecia receoso.

— Se você sair, posso te apresentar a Aurora! — Sadh se levanta e estende sua mão. — Não posso garantir que ela vai acordar, mas ela adoraria te conhecer!

— Você vai me proteger daquele gigante? — Federim coloca sua cabeça para fora.

— Ele não vai te machucar, isso posso prometer. E mesmo que tentasse, eu não deixaria você ficar com um único arranhão!

Mesmo desconfiado, Federim arrisca segurar a mão do seu novo amigo. Saindo das sombras, o corpo frágil da criança vem a tona, carne magra e ossos expostos entre os finos tecidos, deve estar faminto e mesmo assim concedeu aquele pouco de mel, uma pena não terem comida para ofertar em gratidão.

A volta é lenta e demorada, o tremulo ainda tem receios sobre a honestidade dos seus visitantes. No entanto, algumas curtas e supérfluas conversas banais acabam o encorajando a continuar.

Seu percurso era tão atento que nem perceberam o rato morto ao chão, o mesmo que observava, agora com as pupilas normais, tomadas pela dor. O corredor não demora a chegar.

O ranger da madeira envelhecida denuncia o retorno, em frente a porta fechada, Sadh se ajoelha, olhando nos olhos de Federim.

— Bem, você vai odiar o Wem, sentir o maior repúdio e ódio que guarda em seu coração. — Ele coloca a mão em seu ombro. — Mas não há nenhum motivo plausível para tal desdém, ele não tem culpa de ser assim, tente apenas... ignorar. Se ficar com medo, pode apertar a minha mão com toda a força que tiver!

O pequeno concorda com a cabeça, claramente com medo do que se esconde por trás daquelas tábuas. O abrir da porta deixa um clima tenso no ar, todavia, a cena que ocorria lá dentro extrapola as expectativas de ambos.

Wem segura o mísero pote de mel em uma mão e uma colher de madeira na outra, Sadh não sabe dizer se o seu companheiro furtou o utensílio da casa ou trouxe consigo desde o começo, é difícil dizer o que se escondia nos bolsos de seus casacos.

Com os dois itens, Wem retira o conteúdo do presente em pequenas porções, após isso, o aproxima do nariz de Aurora. Em poucos segundos, a boca dela abre e tenta lamber a colher, tudo isso ainda inconsciente. Dessa forma, Wem a alimenta gradualmente.

Tal exibição diminui a tensão do desconhecido, para o jovem Federim, a ameaça pelo monstro formado em sua cabeça diminui drasticamente, mesmo que ainda o temesse. Com um olhar entre as pernas de Sadh, o gigante e o baixinho se encaram pela primeira vez, tais sentimentos infortúnios se proliferam, porém, Federim não cede.

O fechar do pote doce junto ao levantar de Wem demonstram a intenção dele. O mesmo se aproxima da porta, ficando em frente aos recém-chegados, após isso, estende sua grossa mão em direção ao garoto escondido, em um claro gesto de cumprimento.

— Agradeço a cordialidade. — Wem mantinha sua postura de costume, séria e imponente.

— D-de n-nada. — O tremular evidencia o estado emocional da criança, mesmo assim ela aperta a mão de Wem.

— Ele gostaria de ver a Aurora. — Sadh diz firmemente, mesmo que em seu interior hesitasse.

Aquela maldição era perturbadora, não importa se você soubesse que ele era seu aliado, o seu rosto soa só em ouvir o nome do eterno. Sadh ainda se questiona como a Aurora conseguia ser tão próxima, será ela fingia bem ou apenas não era afetada pelas tormentas?

— Sejam breves, estamos de saída. — Wem se vira e volta a sentar ao lado da cama.

Com passos delicados, Federim se aproxima daquela que era alimentada. A face branca recheada de sardas é requintada mesmo com as cicatrizes, no entanto, a beleza é ofuscada por enormes curativos por todo o seu corpo.

Diante da visão devastada, Federim ainda se agraciou com a imagem de Aurora, a qual é estranha para ele, sua essência exala um conforto, bem diferente daquele que está ao seu lado.

O garoto também pôde acompanhar a alimentação, com o truque da colher de mel se repetindo diversas vezes. Era engraçado vê-la devorar o pequeno pote sem que demonstrasse nenhum sinal de consciência.

Quando restavam mais ou menos um quarto do doce, Wem estende as sobras para aqueles que observam, as oferecendo. Aceitando esse grande agrado, Sadh e Federim comem como crianças que são. Ao mesmo tempo, Wem começa a trocar os curativos de Aurora, pois sempre precisavam de novos, um de manhã e outro de noite.

Nesse meio tempo, Federim nota as feridas da dorminhoca, desde os simples arranhões às partes dilaceradas, como a boca e a orelha. Em todos os cortes mais profundos, há uma arcaica costura da carne, o que resultará em profundas e extensas cicatrizes, porém necessárias para conservar a vida daquela alma penada. Será que foram essas dores da costura que incomodavam os delírios de Aurora?

Vendo a comida no pote se extinguir, Federim pega uma pequena fração de sua colher, a observando por um tempo. Após isso, o mesmo se levanta aponta para Wem, ofertando aquela doçura.

— V-você n-não v-vai c-comer? — Pergunta trêmulo a tal ponto do mel quase escapar pelas bordas.

— Não. — Wem responde enquanto terminava de trocar os curativos.

— M-mas... v-você n-não s-sente f-fome? — Sua pergunta tem compaixão, o que parece impressionar Wem de alguma forma.

— Sinto. — O brutamontes ainda recusa a oferta com as mãos, talvez porque aquela criança precisa daquilo para sobreviver.

Quase ao mesmo tempo, todos terminam seus afazeres, sejam eles comer ou cuidar. Ao verem a garota desacordada ser enrolada novamente, fica nítido o fim daquele encontro breve, porém memorável. O sentimento de solidão adentra no coração do pequeno Federim, depois de tanto tempo apenas ouvindo ladrões tentarem saquear a madeira podre de sua casa, tinha finalmente tido uma conversa que lhe tenha feito rir, porém foi um entendimento muito breve.

Percebendo a solidão se proliferar, Sadh chama Federim por um toque, para uma última conversa, um último desabafo. A saída do quarto tem um semblante triste, Sadh ainda sente pena por aquele garoto, não acha certo abandoná-lo sem que tenha uma migalha de comida.

— Bem... não acho que poderemos levá-lo conosco... — Sadh dá um suspiro. — Podem existir pessoas atrás de nós.

— Vocês são ladrões? — Federim pergunta preocupado.

— Não! Somos... azarados, eu acho... — Sadh senta na parede, sendo acompanhado pelo pequeno.

— Como assim azarados? — Federim pergunta com interesse, como qualquer criança de sua idade perguntaria.

— Você não entenderia, é muito novo para ter noção desse tipo de coisa.

— É... eu só tenho 11 anos e você uns 30.

— Eu não sou tão velho assim, só tenho 15 anos.

— QUÊ? Com essa cara de pai? — Federim parece pasmo com a informação.

— Outra coisa que você não entenderia. — Os dois riem. — Já falei muito sobre mim, mas sobre você, por que está aqui?

— Ah!... E-eu estou esperando meu pai. — O garoto parecia receoso em continuar a história.

— Caso não queira, não precisa falar. — Sadh responde ao perceber o desconforto.

— N-não... eu consigo prosseguir. — Federim respira fundo. — Tudo era bem aqui em casa, eu aprendia a produzir e vender mel até a guerra chegar. As vendas começaram a cair e comida a ficar escassa, às vezes não tinha uma fatia de pão.

Os olhos da criança se enchem em lágrimas.

— As brigas familiares cresceram... muitas noites sem dormir pelos berros. — Federim dá uma pequena pausa para limpar seus olhos. — Uma noite, os berros pararam quando ouvi barulhos na cozinha, algo batia no nosso fogão muito forte. Eu fiquei com medo, mas mesmo assim olhei pela fresta da porta.

O garoto demonstra um extremo desconforto, mas não interrompe o relato, ele precisa desabafar.

— Eu vi meu pai com um machado e com a minha mãe nos ombros, ela não gritava, nunca mais gritou. — Federim aponta para a porta trancada do jardim. — Ele passou por aquela porta... eu corri para a cama, desejando que amanhã estivesse tudo bem. — Mais um suspiro. — A porta estava tranca com aquelas mesmas tábuas... ele disse que minha mãe nos abandonou.

Federim se descontrola no choro, Sadh o abraça, sem ter palavras para confortá-lo.

— Ele sumiu na noite seguinte... eu o espero... não tenho para onde ir. — Federim esconde sua dor nas roupas de Sadh.

— Você não pode ficar aqui, você não merece isso. — Sadh chora junto.

Passos pesados chamam a atenção de ambos. Wem sai do quarto com a Aurora presa em suas costas.

— Vamos. — Wem ordena.

— E o Federim? — Sadh pergunta ainda com os olhos lacrimejando.

Não há respostas por parte de Wem além de uma caminhada para fora. Tal ato era claro, ele não esperaria ninguém.

— E-eu tenho que ir... — Sadh sente muito remorso em seu corpo. — Aqui, tome essas moedas, tente sair desse lugar, seja feliz!

O garoto não conseguia formular palavras quando recebeu as 3 moedas de prata de seu único amigo. Um abraço oficializa o último encontro deles, as memórias sempre seriam lembradas por ambos, nunca se esqueceriam daquele dia, onde dois serem com histórias tão semelhantes se encontraram.

Sozinho, acompanhado unicamente por sua dor, Federim hesita durante alguns minutos, sem coragem de se levantar. No entanto, a fim de relembrar os momentos que acabaram de acontecer, decide olhar aquele quarto uma última vez.

Seus olhos avermelhados pela sofrência não acreditavam que na imagem que eles mesmo concediam. Mais de 10 moedas de ouro estavam sobre a cama que outrora Aurora dormia, parecia uma miragem, nunca viu tamanho quantia em toda a sua vida. Teve que tocá-las para acreditar, aquele que julgou ser um monstro acabou de lhe conceder o maior presente da sua existência.

Federim corre, com o máximo que suas pernas esqueléticas aguentavam, pareciam preste a se romper a cada passo, mesmo assim ele prosseguia. Quando fica ao lado de fora, consegue ver apenas uma estrada de terra batida vazia, mesmo olhando para todos os lados repetidamente, não havia nada.

— O-OBRIGADO! Sadh! Aurora! Wem! Obrigado! — Ele grita com toda a força seus flácidos pulmões, um grito que ninguém escutou.

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