XXII. Retalhos
Os pingos de sangue se misturavam com o cair dos flocos de neve, tanto quanto os zumbidos sobrepunham o silêncio. Ao sinal da primeira dor, em um simples piscar, seus olhos já estavam negros junto ao uma estrela de quatro pontas. Era a primeira vez que ela despertava consciente, sem estar presa naquele palco, todavia não havia motivos para se comemorar, isso nem passou por sua cabeça.
Sua espada se colide contra outro daqueles discos, o jogando para o meio das árvores. Uma pequena paz surge enquanto ela olhava em todas as direções daquela floresta aparentemente vazia. Nesse meio tempo, consegue passar a mão em seu rosto, o corte atravessou totalmente sua carne, revelando seus dentes cobertos de sangue. O rasgo não era uniforme devido a dezenas de pequenas lâminas que se estendiam pela circunferência, todavia aquilo não traria nenhuma vantagem em relação ao fio ou mortalidade da arma, era somente para causar dor.
Barulhos começam a ecoar pela vegetação, duas argolas áureas surgem se ricocheteando pelas árvores, indo exatamente em direção de Aurora, pareciam até mesmos mágicos devido à tamanha perfeição e precisão.
O primeiro é frontal, fácil de prever e bloquear, parecia uma forma de distração para o segundo ter êxito, o qual vinha por baixo. Percebendo tal situação, ela reflete o disco em frente de seus olhos e prepara para defender a arma que almejava suas pernas. Sua concentração era tanta que nem escutou um terceiro som, algo se aproximava sem bater nas árvores, um lançamento furtivo.
Com extrema velocidade, um terceiro círculo exatamente igual aos outros colide com seu semelhante no último segundo antes da defesa impecável de Aurora. Dessa forma, sua trajetória muda drasticamente, subindo sobre a espada de seu alvo, ferindo seus dedos. Ela sente as pequenas lâminas colidirem seus ossos enquanto afastava o restante do corpo para que não houvesse mais danos.
"Que golpe foi esse? Ele planejou tudo isso? Onde ele está?", esse e outros questionamentos não poderiam ser respondidos tão facilmente, já que a noite e a neve escondiam o que estava atrás da vegetação.
Os discos continuavam sua trajetória, entrando na floresta. Nesse momento ela escuta o barulho de metal de colidindo, não era possível reutilizá-los para outro ataque, já haviam perdido muita velocidade, então, será que ele usava outros discos para retornar os dissidentes para si? Isso era possível? Quantas armas ele tinha?
Julgando pela forma que as lâminas douradas colidiam nas árvores e acertavam com extrema precisão, é possível que ele tenha estudado o campo de batalha a tal ponto de saber a posição de todos os obstáculos. Há quanto tempo ele tem observado?
Quando iria puxar sua espada se defender de futuros golpes, percebe que não consegue movimentar seus dedos que foram cortados, seus tendões foram rompidos, inutilizando a sua mão. Não havia tempo para os primeiros socorros, somente com um braço levanta a sua lâmina, demonstrando a maneira certa de utilizá-la, já que não era uma espada de duas mãos. Ela segurava com ambas, pois tinha incerteza da sua força e esgrima, no entanto, não tinha como escapar dessa vez.
A adrenalina ainda amortecia a sua dor, porém lentamente ela surge, se fortalecendo a cada gota de sangue que se esvaia de seu corpo. Outro instinto domina sua mente, a audição, diversos ruídos surgiam, seja o bater nas cascas, seja o cortar do vento.
Era difícil determinar de onde viriam, até mesmo quantos seriam. Teria que tomar o máximo de cuidado possível, se algum deles acertasse alguma veia, artéria ou seus dedos restantes, estará perdida.
O primeiro círculo auriginoso se destona da escuridão em uma extrema velocidade, não restando reação a não ser se jogar ao lado. Ela dá um rolamento e rapidamente se levanta para defender de um golpe em reta ao seu pescoço, todavia, o golpe era mutuo, o dourado indefensável passa por baixo da sua visão, dilacerando sua panturrilha.
Com tamanha dor, acaba desmoronando para o lado, colidindo com uma árvore. O sangramento na perna era bem pior que os outros, ela teria que estancá-lo rapidamente se não quisesse ter uma hemorragia profunda. Porém, ela ouve um último zumbido se aproximando. Eram 4 serras circulares no total.
A cada segundo a tensão aumentava junto ao barulho, as tentativas de deslocamento por parte da garota de olhos estrelares se mostraram ineficazes devido ao ferimento na panturrilha. Ela estava com a espada a posto, porém desorientada, por isso questionava se conseguiria prever o ataque.
Em um momento pensou na utilização da maldição encravada em sua espada, no entanto, não teria tempo de beber a seiva, um processo ela que pensava ser indispensável devido à luta contra Rell.
Cinco segundos se passam e a arma mortal aparece no seu campo de visão, ela ricocheteava na vegetação, deixando-a imprevisível. A sua vontade de vencer aquilo era grande, poder se encontrar com seus amigos, pedir desculpas por sua atitude exagerada. Além disso, se morresse ali, a encontrariam? Ou pensariam que ela os abandou?
Seu foco para não conceder esse cenário é gigantesco a tal ponto de não perceber que a planta atrás de si começava a se mover. A lâmina circular em fim decide seu rumo, indo em direção à jovem caída, a qual teme o fim. Sua espada hesita, ficando congelada ao brilho da lua sobre o dourado.
Quando as esperanças cessavam e o desejo pelo amanhã proliferava, a árvore sem folhas por trás de Aurora começa a se distorcer sobre si. Um galho, perante os últimos instantes da vida, se lança como um escudo de carne sobre o sol da morte, desviando sua trajetória certeira.
Incrédula perante a madeira torcida, Aurora pode em fim chorar por respirar mais uma vez. Sua espada emitia uma estranha nevoa verde, a qual tentava esconder um olho fantasmagórico na abertura do punho. Era o mesmo que apareceu na pequena vila em chamas e no bosque, a jovem ainda não o compreendia, porém, não o questionou a fundo.
A princípio, não soube o motivo da ativação de sua maldição já que não teria comido a seiva, no entanto, não reclamou do seu salvamento. Com a defesa vegetal, pode cortar o último pedaço restante de suas mangas, cobrindo e apertando o rombo em sua perna, apesar da dor momentânea, o sangramento diminuiu consideravelmente.
Além disso, usou o resto do tecido para cobrir a sua mão com dedos cortados, por causa disso não poderia utilizá-la de nenhuma maneira, mas não mudaria em muita coisa, já que com os tendões rompidos, ela só se tornou um fardo.
Pronta para a ativa novamente, Aurora se levanta e espera os próximos ataques que não aparecem. O canto das corujas era o único som que permeia o ambiente, tais animais se aglomeravam em cima das árvores secas, como se assistissem o embate. Era somente esse tipo de ave que permaneceu ali.
Por um breve segundo, Aurora ousou olhar para esses animais e se surpreendeu ao perceber que todos olhavam para um mesmo lugar, para dentro do bosque. Tal fato a deixou desconfortável, porém ao ver sua espada, constou que o olho inexplicável também se fixava na mesma direção.
Não poderia ser coincidência, queriam alertá-la sobre algo, todavia, qual seria a ligação entre aqueles que olhavam?
Aurora decide confiar nos seus arredores, assim, ruma para o bosque com sua espada pronta ao combate. A primórdio, era um bosque comum, não se diferindo dos restante da mata. Porém, ao ouvir os zumbidos cortantes vindo da sua frente, soube que se aproximava daquele que lhe causava tamanha dor.
"Só mais uma leva e chegarei nele, não posso perder!". Era o que pensava quando via as primeiras manchas amareladas surgindo do negro.
Pareciam mais rápidas, talvez por estarem mais próximas do lançamento. O primeiro vinha reto, outro que parecia servir de distração, Aurora já tinha caído naquele truque, não defenderia com sua espada, a reservaria para os mais discretos. Com essa decisão, uma raiz distorcida salta da terra, preparando para inibir o ataque óbvio, no entanto, Aurora esqueceu de outro truque que caíra outrora.
Um disco surge do nada, colidindo com o tão previsível, mudando sua rota. A madeira que pretendia defender Aurora se tornou um ponto de apoio para a argola dourada continuar ricocheteando. Dessa maneira, colide com outra árvore indo em direção a Aurora por outra direção.
A surpresa perante o completo desvio é notória, a machucada não tinha tempo para se defender, pois estava ocupada com outra arma semelhante, essa que assumia a função de distração desde o começo. O corte é no seu ombro, certamente completaria a cicatriz deixada por Rell.
A dor a preenche, mas é diluída pela concepção do erro da trajetória, a lâmina arredondada poderia ter facilmente cortado sua garganta, no entanto, falhou nesse objetivo. Seria Aurora não tão previsível? Ou que aqueles lançamentos com tamanha precisão derivavam apenas do talento? Sendo suscetível ao erro?
Se essas hipóteses forem confirmadas, seu oponente poderia ser uma pessoa normal com muito treinamento, contradizendo o pensamento primordial de Aurora, que aquelas armas seriam controladas de maneira semelhante à forma que Sadh guiava as suas.
Assim, Aurora decide dar tudo de si para em fim chegar em seu oponente, no entanto, ela desconsiderou o último ataque, afinal só três lâminas vieram nessa onda. O brilho da lua cessa perante os olhos da destemida, algo o tampava.
O último recurso antes do confronto corpo a corpo, ele batia no topo das árvores, rasgando os fracos galhos que ali residiam. Até que existia uma árvore maior que suas vizinhas, o disco bate nela, porém sua madeira era mais grossa e rígida que as demais, dessa forma, direcionando para baixo o aro áureo, bem em cima da jovem sonhadora.
O golpe fatal passou despercebido, não haveria defesas. Porém, quando o acerto estava praticamente garantido, uma ave, a mais bela das corujas se joga em frente da morte. Seu corpo é completamente rasgado, com o seu sangue manchando as penas brancas e marrons em tons avermelhados.
A trajetória é alterada por míseros centímetros, porém o suficiente para que Aurora não seja acertada. Seus olhos percebem o animal caído, não se esperneava pela dor, apenas estava parado como se aceitasse a morte, além disso, suas pupilas estavam extremamente dilatadas. Em determinado segundo, seus olhos voltam ao normal e assim, o animal treme e se debate pela vida por alguns segundos antes do seu descanso eterno. Aurora vê tudo, mas não questiona, não tinha tempo para aquilo.
Sua corrida continua, ela tentava acompanhar os discos pelo som das batidas nas árvores, porque eles a levariam até seu dono. O barulho cessa quando ela vê um vulto em sua frente, havia chegado, agora só dependeria dela mesma para acabar com aquilo.
A noite o escondia, porém, era notório ser um homem, suas vestimentas pareciam largas, como se usasse algum tipo de tecido solto, só isso era visível. Ambos pareciam se olhar a espera do primeiro movimento.
— Quem é você? — Aurora questiona sem perder a pose de batalha.
— Um contratado. — Responde a sombra.
— Contratado? Por quem?
— Não revelo informações para alvos. — O vulto joga um dos seus discos.
Aurora consegue defleti-lo sem problemas, afinal o viu sendo lançado. Quando seu foco volta a seu oponente, percebe que o mesmo se aproximava com um acínace feita com aço de Damasco, uma típica arma persa, não que Aurora saiba disso.
As duas espadas se colidem, com a jovem demonstrando maior dificuldade no embate, devido à utilização de só uma mão, mesmo que seu oponente também empunhasse sua adaga da mesma maneira. Aqueles poucos segundos de faíscas de metal proporcionaram a visualização do assassino.
Sua pele era parda como o bronze, se assemelhando a cor dos seus olhos, era o Mertivo. O restante do rosto era parcialmente coberto com trapos cinzentos, o que incluía seu cabelo. As demais vestimentas eram largas, com tecidos pretos e marrons, sendo bem simples a costura, como se fosse algo descartável, além disso, havia um colar de cordas em seu pescoço, com exatos 3 nós que deixavam um espaço, como se fosse um círculo. O aspecto parecia se diferir daqueles que Aurora já tinha visto, seria ele mesmo europeu? Ou de outra parte do mundo?
As espadas se repelem, nesse momento Aurora já compreendeu que não o venceria na força bruta, o físico do rival era escondido pelas camadas de fardagem. Assim ela não hesitaria em utilizar a sua maldição ao seu alcance, além de que, queria descobrir se conseguiria usar aquela que se denomina combustão, a qual conseguiu quando Rell foi morta. Ela afirmava isso com base no que Wem havia lhe dito, afinal, a jovem só despertou uma semana após o evento.
Raízes emergem do chão prontas para agarrar seu alvo. Percebendo tal situação, o homem puxa 3 discos dourados escondidos em suas vestes e os arremessas de tal maneira que se ricocheteassem na madeira, dilacerando cada planta. Não havia nenhum truque ali, seu domínio sobre aquele conjunto de arma era fenomenal.
Aproveitando o espaço, Aurora tenta de alguma forma ativar seu poder inédito, todavia nada acontece. Ela se lembra que Rell não criava chamas, apenas as controlavas, seria isso que a impossibilitou de usar o poder ou a completa ignorância de como ativá-lo?
Sem escapatória, o combate voltou a ser manual, os gumes se colidam freneticamente, causando o recuo cada vez mais acentuado de Aurora, a qual tentava compensar a incapacidade física e os ferimentos com sua maldição, porém, as pousas raízes que passavam, eram cortadas sem problemas pelo mascarado.
O duelo tem fim quando Aurora é derrubada com um golpe estrondoso, ficando completamente indefesa. Mertivo parece não ter o mesmo problemas que os vilões passados, sua espada se levanta pronta para matar, não havia escapatória. Quanta inocência da jovem pensar que poderia vencer em tal estado.
A última esperança surge com o som de devastação, uma grande força atinge o assassino, o jogando para longe de Aurora. Wem era o responsável por tal ataque, deixando dezenas de árvores fatiadas em 5 partes, entretanto, contra o seu objetivo, apenas lhe rasgou as roupas por causa da distância.
Estava salva era o que Aurora pensava, Wem e Sadh vinham em máxima velocidade em sua direção. Todavia, Traitore não mandaria um simples assassino tentar matar alguém a custódia de um ex grande general como Wem. Mertivo molda as suas duas mãos de forma de semelhante a uma esfera, a qual começa a rodear com os movimentos dos membros.
Enquanto realizava tal ritual, disse as seguintes palavras: "Seres vivos".
Aurora enxergava o quase chegar de seus únicos amigos, porém, são rapidamente cobertos pelo completo preto. Uma esfera negra perfeita começa a surgir ao redor dos dois lutantes, a qual se fecha completamente em poucos segundos.
Horrorizada, Aurora limita-se a olhar para trás, observando seu ceifador colocar uma ampulheta com areia em um dos buracos do colar.
— Preparada para a segunda rodada? — Mertivo pergunta enquanto recolhia sua espada e discos do chão.
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