XXI. Divergência
*Cento e cinquenta quilômetros de Sunderland, um mês depois.*
As chamas tomavam o céu, transformando o mais belo azul em cinza. O caos se instaurou naquele posto militar arruinado, a morte festejava com o grande banquete, dizimando soldados ali presentes até que restasse apenas um.
Medo e pavor tomavam seu espírito de tal forma que não pensava em nada, só sentia o oblívio. Seu corpo não se mexia devido aos ferimentos, entretanto tentava não transparecer sua fraqueza, portando uma face rancorosa e ameaçadora.
Por tal tentativa fajuta, aquele que se aproximava apenas ria do seu adversário, a batalha já estava ganha, os Sacros-Reinos-Libertos perdiam mais uma vez. O corpo do agressor continha inúmeras cicatrizes ao longo de sua carne, porém uma se destacava: cinco rastros ao longo de seu rosto, da testa ao pescoço. O resto do homem era comum, cabelo negro raspado, olhos pretos e 1,90 metro de altura, uma pessoa bruta. Suas vestimentas eram velhas e desgastas, porém claramente demonstravam o seu posicionamento, era um uniforme do Império Valôm.
Ele se aproxima da sua última vítima daquela manhã, cuja aparência não é relevante, a não ser por seu chapéu, o mesmo que Rell portava, indicando ser um general. Ele se agacha sem se preocupar, bem em frente do quase falecido, demonstrando confiança de sua superioridade.
Nesse momento sua espada se disfere da fumaça negra, era uma lâmina do carrasco, sem ponta e maior que 1,50 metro. Nela, marcas de sangue marcavam o metal, deve ter sido muito usada nessa investida.
Os dois se encaram por alguns segundos, até que um sorriso surge.
— Como é a sensação da morte? — O cruel pergunta olhando sua espada.
— Arrombado! — O general cospe sangue. — Você é um homem morto! Então terá sua resposta em breve.
— Você pode estar certo, mas gostaria de antecipar a dúvida. — Suas falas não pareciam conter ódio, rancor ou prazer, era tudo muito neutro. — Mudando de assunto, gostaria de agradecer pelas armas e informações escondidas nessa instalação, porém não nego que esperava uma resistência maior de um renomado general.
— Não importa o que faça ou o quanto destrua, o Império Valôm está morto. Você só é um pequeno problema para ser trucidado!
— Diziam o mesmo no início do seu movimento, não é? — O vencedor se levanta, preparando a sua espada para realizar a sua função primordial, executar. — Além disso, o antigo poder ficará nas páginas da história, os mesmos erros não serão cometidos pela pessoa sentada no trono.
— E quem sentará no trono? Você? — O militar dá um sorriso avermelhado, parecia querer ofender o máximo que podia antes do seu inevitável fim. — Comandar um grupo de plebe e mercenários é o máximo que um louco como você pode faz...
A execução ocorre no meio do peito, a espada esmigalha o coração que mal batia, espirrando as últimas gotas de sangue de seus vasos. Sua respiração nada adiantava, morria sufocado pela falta de fluxo sanguíneo. Porém, nos últimos segundos de consciência antes da completa escuridão, ouve palavras sussurradas em seu ouvido, o último som de sua existência.
"Eu darei a terra, mas não governarei o novo mundo".
O corpo perde de vez as suas forças, se entregando ao chão marchado de vermelho. Sem nenhum apreço, o letal apenas larga o ali mesmo para ser devorado pelas chamas ou pelos vermes.
Enquanto limpava sua espada em seu próprio pulso, ouve uma movimentação em suas costas. Ao se virar, nota todo seu exército repleto de símbolos imperiais, com destaque ao diamante vermelho. Eles carregavam armas e armaduras, provavelmente saqueadas da instalação, além dos corpos dos que se sacrificaram na batalha.
Um em especial se aproximou e mostrou extremo respeito e submissão.
— Grande General Arsor, nossos sentinelas reportaram um avanço de tropas pelo norte.
— Já estamos de saída, se preparem para partirem! — Ele ordena em voz alta, enquanto prendia sua enorme espada em correntes que rodeavam seu corpo.
O exército se dissipa, em direção ao portão rompido. Arsor volta a ficar sozinho enquanto olhava para a destruição com uma expressão neutra. Até que uma nevoa verde é expelida do corpo do general morto, uma semelhante a que Aurora já tinha visto. Ela se dirige ao homem cheio de cicatrizes, adentrando por sua boca e nariz.
Os olhos pretos se tornam momentaneamente verdes e assim ele dá uma pequena risada.
— Se prepare Moretti, logo Sunderland irá se assemelhar a isso. — Arsor diz enquanto olhava para o céu cinzento.
*Em uma floresta qualquer*
A noite chegava, trazendo consigo o fim do outono, visto que pela primeira vez daquele ano, pequenos flocos de neves tocam o chão. Em uma floresta a vida se preparava para tal evento, não havia mais nenhuma folha nas árvores e os animais já se preparavam para hibernar.
Nessa paisagem seca e morta, havia uma pequena cabana feita de troncos, sua aparência não era das mais belas, não parecia ter tido cuidado nem apuro na sua construção, parecendo algo elaborado as pressas. Sobre a madeira, folhas quebradiças e pequenas quantidades de neve se acumularam, revelando que já estava ali há algum tempo.
Apesar do aspecto, parecia estar ocupada, pois luzes e barulhos saiam de suas frestas. A porta é aberta, rangendo extremamente alto devido a erros e a falta de polimento. A figura que aparece, sendo exaltada pela luz de dentro é Aurora, estava coberta com um "casaco" de pelos extremamente mal feito, se assemelhando a um cobertor costurado. Era de se imaginar, afinal, nem Aurora, muito menos seus companheiros pareciam ter algum dom em costura.
Ela olhava encantada, seus olhos verdes pareciam mais opacos que o comum, porém ainda brilhavam junto de seu sorriso. Ao tocar a neve sente o frio em suas mãos marcadas por cicatrizes de queimaduras e cortes. Assim, faz uma bola de neve pequena devido à falta de material, no entanto, ainda o suficiente para fazê-la feliz.
O formato era bem irregular, já que tentou moldá-la o mais rápido possível, por causa disso a neve ficou fofa onde seus dedos não pressionaram, dando um destaque a falta da parte de um deles. Indiferente a isso, Aurora se levantou rapidamente, tentando esconder a arma em suas mãos.
Wem aparece por trás dela enquanto ainda montava o projetil branco. Ele não tinha nenhuma marca da batalha anterior além da perca de seus casacos, por hora usava uma roupa semelhante a de Aurora, só que maior e ainda mais mal feita. Quando ela se levanta, ele anuncia que o jantar está pronto, sendo esse seu maior erro.
Sem hesitar, Aurora realiza um movimento extremamente exagerado e dramático, arremessando a poderosa bola de neve em seu alvo, acertando bem no meio de seu peito. Wem apenas observa todo o ritual por trás daquele ataque insignificante que suja a sua roupa. Sem reação nenhuma, apenas reconfirma que o jantar está na mesa e volta para dentro.
Extremamente decepcionada na reação de seu amigo, Aurora determina que ficará emburrada na parte de fora da casa como ato de protesto. Todavia, a fome e o frio acabam rapidamente com aquela rebeldia, com ela adentrando a cabana ainda triste por sua guerra de bolas de neve não ter tido maiores dimensões como desejava.
Dentro da cabana era tão simples quanto fora, não havia nenhuma divisão, sendo uma grande caixa. Por isso, era possível as simples camas de folhas e peles de animais, ao lado delas havia uma pequena prateleira praticamente vazia, que revelava que não havia muita comida de sobra. Completando o ambiente, havia uma pequena fogueira cercada de pedras e uma tora de madeira que era usava como mesa.
Sentado no chão ao redor do tronco, Sadh esperava pela janta. Diversas cicatrizes de queimaduras marcavam sua carne, de pé a cabeça. Seu rosto havia mudado, não se tornou irreconhecível, porém a beleza de seus olhos azuis foi ofuscada pela pele irregular.
Com um pequeno sorriso, Sadh observava Aurora se aproximar da mesa e se sentar na terra ao seu lado, ele estava rindo da situação que ela mesma causou. O rosto emburrado da jovem era combustível para seu deleite, gargalhando cada vez mais alto ao ponto de ser percebido pela razão de seu riso. Em resposta a isso, Aurora mostra a língua para ele, uma atitude bem infantil para alguém com quase 18 anos.
Cortando a cena, Wem coloca um grande pote de madeira grosseiramente esculpido sobre a tora, nele continha um caldo ralo. Junto, havia 3 recipientes de madeira igualmente rústicos, para a comida ser servida.
O cheiro estava bom, Aurora levanta a cabeça o mais alto que pode para ver sua futura refeição, notando um ensopado de carne de coelho, cenoura e beterraba. Não havia muito caldo e, quando servido nos potes individuais, era notável o quão aguado estava. A comida acabava perante o inverno, preocupando os dois homens ali presentes enquanto Aurora não parecia ter real noção da crise que se seguirá.
A refeição é silenciosa se não considerarmos o barulho que a emburrada fazia quando tomava sua sopa. Não demora para haver o fim do alimento, com nenhum deles satisfeitos com o jejum que se seguiria.
— Precisamos ir. — Sadh sugere enquanto olhava para a prateleira vazia.
— Eu já tinha sugerido isso! — Aurora comenta com voz animada. — Mas vocês falaram que era melhor eu descansar por mais uma semana.
— Não. — Wem nega.
— Mas não temos mais comidas... e não acho que conseguiremos alguma moradia fixa em alguma vila devido à sua... — Sadh se conteve de dizer o que todos ali sabiam.
— Por que vocês estão tão receosos em continuar? O Mestre das maldições não será derrotado sozinho! — Aurora pergunta sem entender a pretensão dos seus aliados, mas logo abre um sorrisinho. — Estão com medinho? Hahaha!
— Eu disse que ela não entenderia. — Sadh suspira.
— Entender o quê? — Ela pergunta
— Acabou a busca. — Wem responde sem muita delicadeza.
Aurora de primeira estranha a resposta até que a ficha cai, eles não queriam continuar com a campanha. Ela não sabe como reagir, sendo tomada pela insegurança e raiva.
— C-como assim? Vão desistir agora?! — Ela levanta sua voz.
— Olhe o seu corpo, quantas marcas já lhe acometeram?
— A-algumas... mas isso não importa! E as suas maldições? Nós temos que libertar vocês!
— Nós nem sabemos como... nem se é possível. — Sadh comenta com um olhar sério.
— É só derrotar o Mestre das maldições! A gente deve estar perto! — Aurora parecia desesperada.
— Se ele não existir? E se for apenas histórias? — Wem refuta.
— M-mas... e suas maldições? Você quer mesmo continuar assim? Você quer me ver morrer de velhice? — Aurora começa a chorar.
— ... Se continuarmos, talvez nem isso eu veja...
Aurora não sabia como reagir, ela queria muito continuar naquela jornada, libertá-los de suas maldições. Porém, a sua vontade era tão forte, que se assemelhava a uma obsessão inexplicável. Por causa disso, uma raiva cresceu em seu coração doído, queria ir embora, continuar sozinha, abandoná-los, no entanto, estava confusa, esses pensamentos não pareciam a pertencer.
— S-seus... BOBOCAS! — Ela grita e andava com passos pesados para fora da cabana.
— Hunf! Eu vou lá falar com ela. — Sadh diz se levantando para ir atrás dela.
— Deixe-a pensar um pouco, ela voltará quando estiver pronta. — Wem adverte enquanto se dirigia para os simples colchões.
Sadh queria ir atrás dela, porém pensou melhor. Mesmo sentindo o desdém originário de Wem, tinha que concordar, ela estava brava com os dois, mesmo com ambos querendo seu bem, o direito de ficar chateada pertencia somente a ela.
A neve se acumulava, cobrindo o chão até que apenas o branco podia ser visto. Nesse meio, Aurora andava sem rumo entre as árvores, mesmo com frio, não tinha certeza se voltaria. O remorso era forte, só não mais que a sensação de estar sendo traída, era ruim e doloroso... será que foi assim que sua família se sentiu naquela noite?
Com um longo suspiro e com lagrimas congelando em seu rosto, gira seu corpo considerando voltar. Todavia, bem em baixo dos seus pés havia uma pequena e murcha flor, a qual dava seus últimos esforços antes de ceder ao frio.
Aurora se abaixa para pegar a planta, porém, no momento sua boca estava na altura de seu pescoço quando em pé, ela consegue ouvir um chiado, um zumbido se aproximando. De repente, um disco dourado repleto de minúsculas lâminas passa por seu rosto, dilacerando toda carne de seu maxilar do lado esquerdo.
Antecedendo a dor, ela via gotas de sangue baterem nas pétalas da flor antes de pintar a neve de vermelho. Outro zumbido se aproximava.
Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top