XLIII. Luto

O fraco vento gélido ecoa pelas planícies esbranquiçadas ao mesmo tempo que aflige a vida mórbida com seus sussurros. Contudo, seu resplendor se mostra fraco se comparado a outrora, o fim do inverno está próximo.

Rivalizando com tal assovio, um som constante ecoa pelas terras arrasadas e esquecidas, barulhos de colisão. A origem deste ruído incessante é um toco de madeira, que sofre devido a inúmeros socos.

O cair de sua casca demonstra o empenho e a força aplicada a cada golpe pífio e sentimental. Todavia, a maior demonstração de esforço são as marcas avermelhadas espalhadas por toda a lenha, manchas de sangue.

A cada impacto, mais detalhes de carmesim são deixados como uma penitência amarga para quem soca. A dor de sua carne exposta não parece incomodá-la, pois, nem mesmo as lágrimas que escorrem pelo seu rosto devastado são de autoria do sofrimento físico.

Suas pupilas verdes-olivas são ofuscadas por suas escleras totalmente avermelhadas devido ao choro constante dos últimos dias. Além disso, estão menos brilhosas que antes do inverno, menos esperançosas.

Após um impacto mais forte, a desolada apenas desaba sob o toco que tanto maltrata, chorando incontrolavelmente. Mesmo neste estado deplorável, ela continua golpeando o inanimado com a lateral de seus punhos, despejando toda a raiva de si mesma naquela madeira amassada, machucando-a como se fosse sua própria alma.

Seu choro doloroso verbera pela floresta sem folhas, no entanto, não há ninguém para escutá-lo a não ser uma enorme figura em suas costas. O gigante encasacado assiste de longe o sofrimento da perda com uma face entristecida. Todavia, ele não se aproxima para consolá-la, talvez não tenha palavras para diminuir a dor naquele peito já tão devastado.

Independente da resposta, Wem a observa por muito tempo sem mover seu olhar, provavelmente garantindo que ela não se machuque profundamente. Seu foco é absoluto até que um cheiro de um bom ensopado escapa pelas frestas de uma porta de madeira velha. Em resposta a isso, o ruivo observa o céu por um mero instante; é meio-dia.

Com um suspiro, o eterno se vira em direção a uma pequena cabana cercada pela última neve desse inverno mórbido. Apesar de modesta, o local é um bom abrigo, com suas paredes feitas com grossos tocos protegendo quem estiver dentro do frio.

Em uma das janelas do local, uma garotinha de rosto rechonchudo e redondo assiste sua deprimente amiga se entristecer, seus pequenos e lindos olhos castanhos não conseguem esconder o seu pequeno choro de preocupação. Todavia, a lamentação por sua companheira é suprimida pelo aproximar do gigante, assim, ela desaparece do vidro quando o desprezível chega à porta, ela ainda tem muito medo dele.

Quando a maçaneta gira, todos os poucos olhos na cabana encaram o hóspede detestável, é nítido o incômodo de sua presença. Luar logo se apressa e se esconde debaixo de seu cobertor refinado na esperança do desdém passar. Já os devotos Amice e Bjorn apenas o encaram com desconfiança enquanto continuam com seus afazeres.

O padre desvia a sua visão do gigante e volta para a mesa em sua frente, onde há diversos pós cinzas, raízes tortas , folhas secas e uma receita para produzir os remédios paliativos da pequenina amedrontada. Além disso, ele solta alguns minúsculos resmungos de insatisfação, pois não era esta a sua obrigação antes do cerco de Sunderland.

Do outro lado do chalé, a freira Amice termina o ensopado borbulhante com adição de temperos como alecrim e talos de cebola. Ao olhar para o barbudo, sua face demonstra extremo desconforto, no entanto, ela reprime tais sentimentos para colocar o caldo em uma tigela de barro e para se aproximar dele.

— Entregue à Aurora... — A devota estende a refeição em direção ao desdenhável, mas não consegue encará-lo. — Já faz três dias que ela não come... seu estado de saúde pode piorar.

Sem nenhuma resposta verbal, Wem apenas agarra o pote e o observa por alguns segundos, parece delicioso. Tão inexpressível quanto no momento que entrou, Wem sai da cabana para o alívio dos aflitos e caminha em direção à desolada.

A neve avermelhada acumulada ao redor do toco parece entristecer o brutamonte, até que ponto ela irá para se punir?

No momento em que se aproxima, a jovem ensanguentada está golpeando a madeira o mais forte que seus braços trêmulos pela exaustão conseguem aguentar, sua mente está tão profunda em si, que nem ao menos nota a enorme sombra sobre as suas costas.

Com um pequeno toque em seu ombro, a mulher para os dolorosos socos e observa com o canto de seus olhos a figura atrás de si. No entanto, nada diz, apenas espera pelo que seu companheiro tem a falar, apesar de ser óbvio devido à tigela em suas mãos.

— Coma o ensopado. — Wem tenta entregar o caldo nas mãos dela, mas ela recusa. — Você precisa.

— Estou sem fome. — Aurora volta a olhar para a frente.

A machucada não quer que o Wem veja tão de perto os seus olhos inchados devido ao choro, além disso, ela tem vergonha de encará-lo, não almeja ver a sua face de desapontamento. Na verdade, no fundo, ela espera por isso, deseja por uma punição para o seu fracasso.

Quando isso não acontece, pois Wem apenas mantém a tigela ao seu lado, ela se prepara para socar a árvore mais uma vez. No entanto, seu braço é segurado antes que chegasse na madeira.

Wem caminha até a sua frente sem permitir que desfira qualquer outro golpe para se machucar ainda mais. No momento que seus rostos se encaram, a jovem abaixa sua cabeça para se esconder, todavia, Wem se ajoelha para ficarem na mesma altura.

— Não é sua culpa. — O fiel amigo a abraça o mais confortável que consegue.

O calor do pequeno gesto de carinho cerca o gelado corpo da jovem, o que a conforta um pouco. No entanto, tal afeto não é imediatamente retribuído, não é isto que a Aurora anseia, não concorda com tais palavras.

Se ela não tivesse o deixado sozinho, se ela não tivesse perdido, se ela não fosse falha... diversas hipóteses atormentam sua mente e todas culminam na mesma resposta, culpa. Na mente da mulher, a morte de seu amado é um amargo que sempre sentirá em sua boca retalhada, um desgosto que ela mesmo causou a si ao perder a única luta que não tinha este direito.

Sempre houve braços para se apoiar quando caía, todavia, quando chegou a sua vez de ser esta esperança, ela fracassou. Este pecado nunca será perdoado, jamais será esquecido.

Por causa disso, ela conclui que tem que sofrer as consequências de seus erros ásperos e, se Wem não a punir como ela acredita merecer, terá que fazer isso sozinha.

Seus olhos encravam-se nas escritas forjadas em sua espada, lendo os símbolos ali escritos, desde os já conhecidos como "Obsessão" ou "Combustão". Todavia, o que mais a entristece são os novos como "Marionete", "Deterioração" e "Usurpação", mas o que a deixa desolada são os últimos dois, "Lâminas" e "Distorção", estes eram de seu amado.

Tantos nomes, tantas dores. Apenas lê-los já a faz chorar mais uma vez, cada símbolo esculpido no metal a lembra de uma dor do passado, mas isso não é o que importa. Nelas todas, seu corpo e alma foram punidos para a conquista de cada maldição, todavia somente ela deveria sofrer as consequências de tal habilidade egoísta, mas sempre seus preciosos amigos tiveram que se expor devido a sua banalidade, apenas ela merece cada retalho.

Portanto, aquelas escrituras que detêm o sangue de seus amigos esculpidos junto ao seu são dignas demais para as suas mãos tão deploráveis possam manipular, ela não merece utilizar algo advindo da dor de seu fracasso. Todo sacrifício tem que ser exclusivamente seu, confiar seus pesos aos outros já lhe custou muito.

Talvez não seja a melhor das lógicas, mas este foi o refúgio que a já não tão sonhadora fez para si. Uma mera tentativa de fugir do passado, mas, ainda assim, se punir por ele. Se ela esquecer das derrotas amarguradas, quem sabe assim ela para de ser uma falha.

Com tal norma encravada em sua mente perturbada, a mulher tenta se manter forte perante o cada vez mais apertado abraço. Contudo, ela não demora para ceder ao apego e chora suas últimas lágrimas no ombro de seu amigo. Ela realmente precisava disso.

*Capital dos Sacros-Reinos-Libertos*

As altas fumaças negras do coração do novo poder mancham o último branco do inverno, transformando-o em um cinza monótono. Já o enorme ruído das construções atormenta as largas ruas reconstruídas, todavia, tal dessossego logo terminará, pois a maioria das estruturas já está quase pronta.

Belas residências de pedra são erguidas por inúmeros homens em volta da pequena muralha ao redor do castelo já finalizado. Sua grandiosidade é absoluta em meio à nova metrópole continental, pelo menos por enquanto, porque uma catedral de igual imponência é lentamente erguida do outro lado da cidade. Um pequeno símbolo da frágil união entre as superpotências dessa era.

Nos limites da metrópole, o grande paredão de pedra, uma vez tombado, agora é reconstruído com enormes blocos de rochas, com sua aparência se assemelhando a uma montanha de tão imensa. A capital consumida em chamas agora se ergue como um novo símbolo da vitoriosa revolução, sob um novo nome para se esquecer das correntes de um passado amargo, Majestueus.

Com tamanho esforço em sua reerguida, a inacabada já está lotada de refugiados em suas ruas, os quais procuram novos abrigos e oportunidades de vida após o cerco de Sunderland. Infelizmente, o desenvolvimento não chegará para todos, não há tantas moradias para errantes imundos.

Por dentro do castelo deslumbrante, há uma enorme barulheira causada por servos e soldados que organizam um enorme salão para a festa de inauguração. Todavia, tal alvoroço é suprimido pelos enormes corredores, sobrando apenas os pesados sons de passos em uma escadaria estreita. Cada um de seus degraus são sobrepujados por um único homem empenhado em alcançar o topo, apesar da sua feição contraria o movimento de suas pernas.

Seus cabelos negros até seus ombros junto às suas roupas de alta patente entregam sua identidade. Porém, o que de fato o identifica para qualquer um são suas mãos de madeira, símbolo incontestável do rei de Occitânia.

Sua aparência formal e cansada é a mesma de sempre, a única diferença é a prótese de madeira que usa no lugar de sua perna amputada; uma recordação deixada pelo último grande general do Império Valôm.

O novo retalho de madeira é bem mais simples que os das suas mãos, não apresenta nenhum detalhe que tente copiar a antiga realidade, é apenas um toco. O motivo disso é bem simples, ele é o único que não foi esculpido pelas mãos do antigo marceneiro.

Ao vencer a última pedra, o veterano de guerra se depara com uma luxuosa porta de metal com detalhes encravados em ouro, além disso, a preciosidade é guarnecida por dois homens portando alabardas. Com um simples olhar, os sentinelas levam suas armas para permitir que o Moretti adentre no local, pois sua presença já foi previamente solicitada.

Com o girar da maçaneta, um cômodo luxuoso que já esteve em diversas oportunidades surge diante de seus olhos, as obras de arte mórbidas e as caras bebidas sobre móveis da mais nobre das madeiras sempre compões o ambiente da sala de um dos donos do mundo.

Rodeado de papéis em volta de sua bancada, o Grande-Rei da coligação de reinos escreve uma simples carta sobre um grande e detalhado mapa do continente europeu. Suas vestes são similares ao dia da retomada de Sunderland, pois ainda escondem toda a sua pele, a única diferença são as cores de cada peça, que hoje estão esverdeados.

— Moretti? — Deduz o monarca sem tirar seus olhos de sua escrita. — Sente-se.

Sem nenhuma resposta verbal, o necrosado apenas caminha até a cadeira em frente ao seu superior, com seu pé de madeira deixando claro a sua trajetória barulhenta.

— Há sete anos você entrou na revolução, desde então, sempre apresentou ótimos resultados. Você não é o grande general mais duradouro por mero acaso. — O mais jovem já começa o seu discurso antes mesmo de Moretti sentar-se.

— Obrigado... — Sua fala é cortada pelo próprio ao ver um gesto de silêncio na mão com luvas brancas, só o Helt deve falar.

— No entanto, sempre lutou por sua filha, não por lealdade. — O Grande-Rei move a sua pena para um tinteiro, a abastecendo com um líquido negro para prosseguir com sua escrita. — Tal fato não era um problema desde que você vencesse as batalhas.

Moretti o encara sem demonstrar muitos sentimentos, apenas quer saber onde este monólogo chegará.

— No entanto, desde o fim da guerra civil você acumula diversas falhas. Rell pereceu, a espada não foi recuperada e Sunderland caiu. — O jovem adulto termina finalmente a sua carta e começa a dobrá-la com muito apreço. — Mas estes não foram os mais decepcionantes, a princesa estava na Catedral de São Rafael, era amiga de sua filha.

Helt se levanta da sua cadeira e caminha em direção há uma enorme janela em suas costas para observar a metrópole da nova era. Em toda sua conversa até o momento, ele se quer olhou para o rei de Occitânia, parece querer evitar ao máximo vê-lo.

— Não somente isso, como você lutou contra a besta de Valônia e tentou abafar tal embate. — O Grande-Rei finalmente encara o mais velho, com sua mascará de porcelana deixando sua face séria ainda mais macabra. — Talvez tudo isso foi para proteger a sua filha, mas minha confiança em sua pessoa está acabando. Não se esqueça de quem fornece as matérias-primas para os remédios de sua filha.

  — Atenderei as suas expectativas. Não irei mais falhar nem omitir. — Moretti responde após longos segundos de silêncio.

O mais jovem mantém seu rosto sério enquanto caminha em direção à mesa lotada de papéis, ela pega a sua carta escrita com tanto empenho e se dirige ao monarca.


— Onde está a Aurora? — O apogeu de tensão domina o ambienta já sério, ambos se encaram face a face.

— Desconheço sua localidade, sumiram após o cerco de Sunderland. — Após sua resposta, Helt abre um pequeno sorriso.

— Entregue para o Traitore. Tenho uma festa para sediar. — O Grande-Rei dá alguns tapinhas no ombro do necrosado após lhe entregar a carta em suas mãos e caminha em direção à porta luxuosa.

Moretti observa o papel por algum tempo, mas não ousa abri-la. Ele não pode desafiar a autoridade do grande revolucionário, a sua filha precisa desse seu sacrifício.

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