VIII. Meroveu (Sob revisão)
O vazio do escuro é tudo que os olhos fechados de uma garota prestes a morrer veem. Nada ouve, nada sente a não ser o cair no oblívio, apesar de ainda estar parada, presa em sua própria mente. Quando tempo está a despencar? Quanto sonhou no inexistente?
As respostas a tais questionamentos não são facilmente encontradas, a garota nem ao menos se perguntou sobre isso. Tudo que se duvidou foi sobre o preto em sua frente, monótono e inalcançável. No entanto, a mera ausência de luz parece palpável para a pequena jovem e, por isso, ela ergue os seus membros imaginários em direção a essa escuridão, apesar de saber que não a estrelará em seus dedos.
Todavia, a resposta de sua única pergunta foi respondida quando seus braços se esticavam o máximo que podiam. O negro rachou.
Um zumbido surge em seus ouvidos, girando ao redor de sua cabeça em um ciclo constante, mas irregular. Devido a esse desconforto, as flácidas pálpebras de uma renascida do sangue se abrem com enorme esforço.
A primeira coisa que conseguem distinguir do turvo é uma pequena mosca que gira ao redor de sua cabeça, assim como um abutre rodeia ao redor de um cadáver. Ali está a origem de tal ruído irritante, um mero inseto repugnante.
Apesar de conseguir mexer os seus olhos, o restante de sua carne parece ainda adormecido, pois ela não consegue mexer nem o mísero dedo de suas mãos. Dessa forma, ela ficou condenada a ver o teto sobre a sua cabeça, o qual desconhece a quem pertence.
No máximo que seus olhos conseguem chegar à direita, a jovem nota o topo de uma pequena janela oval aberta. No início, a poderosa luz do sol cega aquela que tanto esteve na escuridão, no entanto, após contemplá-lo por algum tempo, o tão radiante decide parar de castigá-la. O lindo céu azul se estende sem que haja se quer uma mísera nuvem atrapalhando a sua glória.
A jovem se pergunta como uma cor tão monótona pode ser tão mais linda do que outra. Talvez a resposta da pergunta extravase o mero aspecto, afinal, somente uma delas mostra o quão delicado é a vida e, já a outra, mostra o motivo de preservá-la.
Após observar o pálido azulado por um tempo, os movimentos da recém-desperta retornam lentamente. Sua cabeça começa a fazer movimentos mais ousados, permitindo à jovem olhar para os cantos escondidos de suas pupilas.
O horizonte por detrás do vidro empoeirado é repleto de árvores com os mais variados tons de amarelo e laranja. Alguns pássaros voam freneticamente para fora de seus ninhos em busca de sementes para sobreviverem ao soprar do frio, enquanto outros já abandonaram suas árvores há muito tempo quando fugiram para áreas mais quentes.
Nesse frenesi pela sobrevivência, a de olhos verdes apenas admira os animais, sem saber de fato o quão agoniados estão pela chegada da morte.
Depois de um tempo, ela decide espiar o restante do cômodo no seu lado esquerdo. Nele há alguns móveis simples de madeira velha, como um armário apodrecido, uma cômoda torta e uma pequena cadeira de balanço.
O único destes itens que chama a atenção da jovem é o banco. Suas pernas finas parecem prestes a quebrar, enquanto seu rangido é extremamente longo e desconfortante, só perdendo para o zumbir da mosca.
Entretanto, não é a cadeira em si que chama a atenção da garota, mas sim o que se senta sobre ela. Um homem extremamente grande e robusto se exprime na madeira enquanto olha através da janela com um olhar distante.
A de olhos verdes esmeralda tenta chamá-lo, mas sua garganta está extremamente seca, não saindo nada mais do que um mero ruído abafado pelo ar. Dessa forma, ela não consegue se comunicar de nenhuma forma com seu companheiro.
Além disso, ele parece não perceber o despertar dela de imediato, parece muito concentrado em sua própria mente. Por isso, ela tenta se mover o mais abruptamente possível para lhe chamar a atenção, todavia, seu corpo faz apenas pequenos movimentos.
Enquanto tenta se mover, a garota imagina no que seu amigo está pensando. Nenhuma resposta surge em sua mente, ainda sabe muito pouco sobre o ruivo, no entanto, ela cria uma falsa fantasia de que ele está pensando nela. Mesmo não podendo confirmar isso, tal invenção deixa escapar um pequeno sorriso de seus lábios.
Após algum tempo tentando, seu braço consegue subir mais do que as outras tentativas, chamando finalmente a atenção do brutamonte.
Seus olhos avermelhados se fixam nos esverdeados enquanto o gigante se levanta da minúscula cadeira, quase a quebrando no processo. Quando chega à beira da cama simplória, o ruivo se ajoelha e observa a jovem.
— Aurora? — O brutamonte a encara. — Está bem?
Ainda sem conseguir falar devido à garganta, a jovem se limita a sorrir forçadamente, pois uma parte de sua face ainda não a responde.
— Consegue falar? — O ruivo pergunta, recebendo como resposta, um não com o movimento da cabeça. — Por que não?
Aurora tenta fazer alguns movimentos com as mãos para explicar que sua garganta está seca, mas sua mímica é desastrosa e nada consegue transmitir. Diante de tal apresentação esdruxula, o gigante apenas aponta para a garganta da jovem.
— Água? — Rapidamente a cabeça da garota responde com um sim. — Irei pegar.
Imediatamente, o brutamonte se levanta e caminha em direção à única porta do lugar. Antes de girar a maçaneta e sair do cômodo, ele se vira uma última vez para a jovem, que mais uma vez responde com um sorriso.
Enquanto está sozinha, Aurora tenta se mover mais livremente, se esforçando ao máximo para conseguir sentar na cama. Após um tempo de esforços, ela consegue apoiar suas costas na parede áspera e cruzar suas pernas. No entanto, conforme seus movimentos voltam, outra coisa os acompanha, a dor.
Todo o seu corpo começa a sofrer, de início apenas um pequeno desconforto, mas que se acentua a cada instante. Certas áreas doem mais do que outras, chamando a atenção da garota para tais localizações.
Nelas estão suas cicatrizes cobertas por tecidos banhados de sangue. O olhar de desespero logo toma toda a face da garota incrédula, suas pupilas olham cada ferida com certo horror, tendo apenas flashes da origem de cada uma.
O terror que passou por debaixo de seus pés é gradualmente lembrado com certa imprecisão devido ao medo e à falta de sangue. Mas ainda assim, o suficiente para atormentar a sua alma.
Seus olhos perplexos ficam estáticos em sua mão com parte do dedo faltante. Esta não foi apenas uma cicatriz para lhe lembrar de seu fracasso, mas sim a perda de parte de seu corpo que nunca sofreu com a extrema dor, um sacrifício necessário para que seu sonho sem origem não seja esquecido.
Seus olhos rapidamente se enchem de lágrimas não tão amargas, as quais são aumentadas devido à dor. Apesar disso, a jovem rapidamente as seca com suas ataduras manchadas de carmesim, não quer que seu companheiro a veja dessa forma.
Quando o tecido é parcialmente umidificado, a porta de madeira se abre mais uma vez. Por ela, o ruivo adentra no cômodo enquanto segura um copo de argila com sua mão esquerda.
Rapidamente, as lágrimas cessam de escorrer pelo rosto da jovem, tais sentimentos serão presos dentro dela. O brutamonte a observa por um tempo até se aproximar e nada comenta sobre a cena triste que acabou de acontecer.
Com um movimento gentil, o copo de barro é posto nas mãos molhadas da garota, a qual observa a água transparente vibrar conforme seu coração bate forte. Em um grande e rápido gole, todo o líquido desce por sua garganta sofrida, deixando o seco apenas dolorido.
Somente aquela quantidade não foi o suficiente para que a ânsia da jovem fosse suprida, no entanto, o amargo de sua boca sumiu. Após alguns instantes, ela decide arriscar dizer algo, mesmo que sua garganta arda como fogo.
— Wem? — A voz é extremamente fraca, mas ainda é alta o suficiente para o seu companheiro poder ouvi-la.
— Se sente melhor? — O ruivo pergunta com um olhar frio, sem aparentes preocupações.
Aurora se limita a confirmar com a cabeça, cada palavra que escapa de sua boca machuca como a ponta de uma agulha. Apesar disso, ela sorri um pouco, mas os pequenos rios em suas bochechas com sardas não deixam o clima menos pesado.
— Está doendo? — Wem se curva para frente, para vê-la mais de perto e, mais uma vez, ela responde com um balançar de cabeça. — Obvio que está.
— Apenas um pouco... já estou bem. — A garota ainda expõe forçadamente seus dentes. — O que importa é que estou viva!
— Você só sobreviveu porque te doei sangue. — Wem desvia seu olhar para baixo. — Você não deveria ter ido sozinha.
— A igreja era o lugar que mais parecia seguro, eu que chamei a atenção demais. — Aurora olha para uma simples cruz de madeira na porta. — Não conheço muito bem essa religião... Onde estamos?
— Em uma morada de uma residente da vila. — O ruivo afasta sua cabeça.
— Ele deve ser gentil... — A sonhadora olha pela janela mais uma vez. — Quanto tempo eu dormi? Tem mais folhas secas sobre a grama do que antes.
— Uma semana... — Wem é interrompido por quase um grito.
— Uma SEMANA? — Aurora fica incrédula. — Eu nunca dormi por uma semana!
— Seu corpo focou em te manter viva. — Wem se levanta e caminha em direção à porta. — Você deve estar faminta.
— Nem tanto... — Aurora olha para sua barriga e a vê vibrar violentamente por debaixo do vestido e curativos. — Talvez um pouco.
Antes que o Wem pudesse sair do cômodo, a porta se abre lentamente, com uma senhorinha entrando com uma tigela de madeira em suas mãos.
— Olha só, ela acordou! — Uma idosa de cabelo longo e grisalho preso em um rabo de cavalo adentra no cômodo e anda em direção à recém-desperta. — Eu ouvi vozes vindo daqui e como esse... homem não fala nada, imaginei que você havia despertado.
Conforme a velha se aproxima, sua face se torna cada vez mais nítida, revelando um olhar meigo em relação à garota. Somado a isso, suas simplórias vestes de lã branca e marrom a deixam com uma aparência bem gentil e simplória, como uma senhora em uma vila agrícola deve ser.
— Aqui, querida, espero que goste de ensopado de nabo. — A idosa estende uma tigela de barro em suas mãos, a aparência ainda é uma incógnita para a acamada, no entanto, o vapor que sobrevoa o caldo demonstra que está borbulhando. — Também tem repolho e cenoura nele.
Ao receber o pote em suas mãos, a jovem sente o calor da sopa através da argila, com certeza acabou de sair do caldeirão. O cheiro que exala é magnífico, uma bela e simples comida feita com muito amor e carinho. Já sobre a sua aparência, o caldo é relativamente ralo, com poucos pedaços de nabos quase transparentes e cenouras bem roxas rodeados de muita água e folhas picadas de repolhos verdes.
— Parece estar ótima. — A garota tenta ser simpática com a idosa, afinal, ela é uma desconhecida que ajudou a cuidá-la.
— Só diga isso após prová-la. — A velha se vira em direção ao brutamonte na porta, automaticamente sua face carinhosa se transforma em uma receosa e desconfiada. — Vai querer também?
Wem apenas responde com um pequeno balançar positivo de sua cabeça enquanto se aproxima novamente da ferida.
— Coma tudo, mocinha, irei pegar a comida para seu... amigo. — Ela se afasta do caminho de ruivo antes de ir em direção à porta e atravessá-la.
— Ela parece uma boa pessoa. — Aurora diz, sem perceber o olhar da velha em relação ao seu parceiro. — Espero que cozinhe bem também!
Ao inclinar a tigela em direção aos seus lábios, um pouco da sopa aguada entra em sua boca, no entanto, rapidamente o fluxo do caldo é interrompido e a cumbuca volta para sua posição inicial.
— Quente! Quente! Quente! — Aurora choraminga enquanto sente sua língua e garganta queimarem.
— Você viu o vapor. Coma com cuidado. — Wem se ajoelha ao lado da garota enquanto ela tenta abanar sua língua com a mão.
Após algum tempo sofrendo, a dor praticamente some, mas deixa uma grande e intensa mancha vermelha na língua da Aurora. Por consequência, o jovem passou um bom tempo soprando o resto da sopa para não cometer o mesmo erro.
— Como está o sabor? — Wem pergunta, olhando pela janela, como se não se importasse com a resposta.
— Está gostoso, mas não tem nada de sal. — Aurora dá o último gole e olha para o seu companheiro. — E podia ter alguma carne.
— Sal e carne são abundantes só nas mesas dos nobres. — Wem não desvia seu olhar da janela. — Se acostume a esse tipo de comida.
— Ah! Tudo bem... ainda é saboroso. — A garota coloca o pote em cima de uma cômoda ao seu lado.
— O que você se lembra da sua luta contra o padre? — O encasacado volta a encarar.
— Bem... — A sonhadora fica um pouco receosa por serem memórias que ela prefere esquecer, mas decide que seu amigo merece saber o que aconteceu. — Eu chamei muita atenção na igreja e ele me levou para aquele porão escuro... ele pareceu ser cuidadoso, apesar de macabro no início. Mas o padre se mostrou de verdade quando me levou para uma sala de tortura.
Nesse momento, a jovem faz uma pequena pausa e olha para o seu dedo mutilado. Seus olhos se enchem de lágrimas, mas nenhuma escorre pela sua pele delicada, ela se segura ao máximo para que isso não ocorra.
— Ele me perseguiu com monstros podres... mortos que se moviam entre as paredes. — Aurora encara o ruivo. — Até que eu lutei contra eles e acordei em um teatro...
— Teatro? — Wem a interrompe brevemente.
— Sim, eu era a única a assistir à peça, uma que tinha apenas uma atriz, eu mesma. — A de olhos verdes olha para frente, se imaginando nessa memória. — Todo movimento que ela fazia, o meu corpo correspondia... É estranho lembrar disso, apesar de estar na plateia, eu também me lembro como se estivesse atuando.
— Como eram os olhos dela? — O encasacado parece bem concentrado nela.
— Os olhos dela? Ah! Verdade, eles eram diferentes dos meus, eram negros com uma estrela de 4 pontas branca, eu acho. — Aurora volta a encarar o seu companheiro. — Você sabe o que ela é?
Wem nada responde, apenas mexe em seus inúmeros casacos velhos até puxar algo brilhoso deles. O metal cintila com um fraco feixe de luz vindo da janela, é a espada estranha da Aurora.
— Consegue ler isto? — O brutamonte aponta com um dos seus dedos gélidos para uma estranha escrita forjada no metal.
— Eu acho que não... — A jovem pega a arma com seus braços bambos e a observa de mais perto. — Mas uma palavra surge em minha mente quando o observo, "Obsessão". Foi você que fez?
— Não. — Wem desvia o olhar pela janela e sorri de forma quase imperceptível pelo canto de sua boca.
— Por que sorriu? — Aurora percebe esse minúsculo movimento.
— Você está viva... e alguém cumpriu a sua promessa. — O ruivo ainda se mantém olhando pela janela.
— Promessa? Qual? — A garota faz uma expressão confusa, mas a senhora adentra no quarto com um pote de sopa antes que o questionamento prosseguisse.
Com um olhar desconfiado em relação ao Wem, a idosa adentra no cômodo o encarando. Seus braços tremem conforme os seus passos encurtam a distância até o brutamonte. Inicialmente, pareciam devido ao peso da sopa, mas logo é notável que vibram devido ao medo.
— Aqui está sua sopa. — A velha deixa sobre um balcão e rapidamente caminha em direção à cama da jovem. — Gostou da sopa, querida? — A senhora pergunta ao notar a tigela vazia.
— Estava muito boa. — Aurora abre um sorriso. — Obrigada pelos cuidados.
— Oh! Não precisa me agradecer, qualquer pessoal faria o mesmo. — A idosa desvia o seu olhar ao ruivo por um instante. — Além de que, seu companheiro ajudou em algumas coisas... até varreu a casa uma vez.
— O Wem varrendo a casa? — Aurora dá uma risadinha ao imaginar a cena.
— Sim, sim... ele foi de grande ajuda. — A senhora encara a jovem. — Qual o seu nome?
— Aurora, mas o Wem não contou para vocês? — A jovem olha para seu amigo comendo a sopa em silêncio.
— Ele não é de falar muito... só sei o nome dele graças a você. — A velha olha através da janela antes de voltar a encarar a jovem. — Seu nome é muito bonito! O meu é Clémence!
— O seu nome também é bem bonito! — A garota sorri por um instante e, logo depois, suspira. — Posso te perguntar algo?
— Claro, querida, faça a pergunta que quiser! — A idosa mantém sua face meiga.
— Por que o padre dessa vila era daquele jeito? — A jovem fecha seus punhos com certa força.
— Oh! Isso é uma longa história... nem sempre ele foi maldoso. — Clémence olha para uma cruz de madeira sobre a porta. — O seu nome era Matteo, sempre foi um homem bom, caridoso e, acima de tudo, fiel a Deus... bom... pelo menos era no passado.
Algumas lágrimas começam a escorrer da face da idosa. Aurora coloca a sua mão sobre o ombro dela como um gesto de compaixão.
— A sua ruína começou quando chegou uma carta melancólica. O bispo que o criou como filho faleceu misteriosamente de uma doença desconhecida... Matteo viajou até o Vaticano a fim de participar do enterro, mas ele já havia sido sepultado. — A velha faz uma pequena pausa para respirar. — Lá se encontrou com seu irmão adotivo... ele faleceu na mesma noite.
— Que pena... do que o irmão morreu? — Aurora pergunta, tentando ter empatia com aquele que tanto a fez sofrer.
— Outra incógnita... Matteo achava que foram assassinados... disse que deviam saber demais... — A idosa volta a olhar para a acamada. — Bem, foi isso que me disse para mim antes de se isolar na igreja... eramos bons amigos.
— Quando começou o terror? — Wem se intromete na conversa.
— O-o terror? Alguns meses após seu isolamento no templo... alguns moradores sumiram quando iam pegar água no rio. — Clémence tenta observar as ruínas da igreja pela janela, mas não consegue vê-las deste cômodo. — As portas da igreja se abriram logo em seguida... não demorou muito para a imposição religiosa.
— Vocês sabiam o que acontecia lá dentro? — Após a pergunta da jovem, a dona volta a chorar, mas logo é reconfortada com um abraço.
— Não... sabíamos que era tortura pelos gritos de dor e desespero que escapavam das fissuras da igreja... mas o que acontecia de fato lá não. — A velha sai do abraço e coloca suas mãos no ombro da garota. — Nem imagino os horrores que experimentou lá embaixo, eu sinto muito por isso.
— Vamos embora. — O encapuzado se aproxima da acamada, mas a velha se coloca na frente.
— E-espera, ela nem ao menos consegue andar! — Clémence olha para a garota. — Deixe-a descansar mais um pouco.
— Não temos tempo. — O ruivo mantinha seus olhos vidrados na janela.
Ao segui-los, Aurora vê diversos homens robustos usando armaduras de cota de malha. Em suas mãos, um tipo de bandeira é erguido para balançar com os fortes ventos do fim do outono. Tais seres reluzentes pela luz do gigante amarelo são soldados da revolução.
O foco deles parece se concentrar em algo que não é possível ver por detrás do vidro, são provavelmente as ruínas da igreja amaldiçoada pelo carmesim e podridão.
A face da sonhadora se torna branca no mesmo instante, se algum deles ousasse ver pelo pequeno vão daquela simplória casa, tudo que sacrificou seria perdido, sua cabeça seria exposta em uma estaca, assim como as da sua família.
Em um olhar visivelmente em pânico, a jovem encara o barbudo, fazendo um pequeno gesto positivo com sua cabeça para irem embora. Em resposta a isso, o brutamonte empurra a idosa para o lado e começa a preparar a jovem para carregá-la.
— Ei! Eu disse que ela precisa DESCANSAR! — Clémence tenta parar os braços encobertos pelos inúmeros casacos, mas sua força é praticamente nula em comparação àquela besta.
— A-a gente tem que ir embora, senhora... — Aurora tenta inventar alguma desculpa sem que chame o alarde da velha. — Tenho que me encontrar com o meu noivo... isso, meu noivo! Esse homem é meu... guarda-costas?
— Com certeza que seu noivo pode esperar alguns dias até você se recuperar totalmente. — Clémence ainda se mostra relutante.
— Ah... Não podemos porque... — Aurora continua pensando em desculpas com base no cenário que inventou. — Meu casamento está próximo, e já perdemos tempo demais aqui!
— Oh! Por que você não me disse antes? — A antes resiliente agora ajuda a amarrar um lençol que prenderá a ferida. — Não se pode atrasar para casamentos! Onde será a festa?
— Em... — Aurora tenta se lembrar de alguma vila próxima, mas nunca prestou muita atenção nas aulas de mapas, por isso, fala a única cidade que conhece ser naquela direção. — Sunderland.
— Sunderland! Fica a várias noites daqui! — A velha parece se desesperar ainda mais. — Vocês precisam ir agora!
O ruivo enrola a garota em uma manta quentinha de lã marrom e, logo em seguida, a põem em suas costas. Enquanto isso, a velha pega as 4 pontas do cobertor e amarra em volta do peito do gigante. Ela só conseguiu o alcançar porque subiu em cima da cama.
— Agora você pode viajar. — Clémence diz enquanto desce do colchão de palha. — Só tome cuidado... pode haver perigos lá fora. — A velha diz isto encarando o Wem.
— Não precisa se preocupar, esse grandão irá me proteger. — Aurora olha de um lado para o outro, admirando a vista que nunca terá com sua altura.
Wem simplesmente começa a andar em direção à porta da residência. Seus passos longos e apressados deixam a idosa para trás, apesar dos esforços dela para o acompanhar.
Ao atravessar a entrada, Clémence mal havia chegado na sala, assim, ela pode ver ambos sumindo através da forte luz. A única coisa que consegue dizer para eles é um adeus, o qual é respondido por um sorriso falso da garota. Ela está totalmente desesperada pelos guardas em sua volta.
Por sorte, a grande maioria dos homens armados se concentrava ao redor da igreja para explorar suas catacumbas, assim como os moradores. Dessa forma, não foi muito difícil sair da vila sem serem vistos.
A jovem dá um suspiro aliviador enquanto vê as simplórias casinhas de madeira e palha se afastando. Sua cor lentamente volta ao normal conforme a adrenalina em seu sangue some. Sua cabeça não demora para pesar, seu corpo está sem energia nenhuma. Por causa disso, ela apoia seu queixo sobre o ombro de seu companheiro e quase adormece, se não fosse uma simples frase que ele disse.
— Eles irão nos caçar. — Wem afirma enquanto observa a estrada de terra se estender ao horizonte alaranjado.
— O-o quê? — A jovem pergunta com os olhos cansados totalmente abertos pelo medo.
*Vaticano, há uma semana*
Era um dia pacifico, o sol se punha entre as montanhas. Com os poucos raios amarelados que eram exalados pelo gigante, Roma se preparava para fria noite do quase inverno. Os movimentos nas vielas se extinguia, dando lugar ao fechar das portas e janelas das casas simples de madeira, já as construções de pedra eram mais ousadas, com as janelas abertas protegidas por milícias locais.
Porém, no coração da metrópole, havia um lugar que nunca dormia, o Vaticano era imutável ao tempo. O caos da sobrecarga reinava nas terras santas, uma vez que, além da administração do Protetorado de Lácio, centenas de peregrinações eram organizadas por todo continente europeu. A glória do senhor deve chegar em todas as vilas que outrora eram dominadas pelo antigo regime.
Tais vilas eram segregadas do cristianismo, devido ao Império Valôm. Desse modo, não é difícil presumir qual lado a santa igreja apoiou, apesar de não ter se quer um homem lutando na guerra. A neutralidade junta a doações de recursos se deu devido a um grande homem, o Negociador.
As vozes e passos apressados eram o som do ambiente naquele momento, no entanto, alguém parecia se diferir. Seus passos eram discretos e gentis de tal forma que, mesmo passando no meio do luxuoso corredor, pareciam imperceptíveis para as pessoas em volta. Seu semblante diferia de seus semelhantes, como se fosse algo superior.
O destino de tal incógnita é um belo jardim, o qual tinha as mais belas flores já encontradas nesse mundo, não importava a raridade da planta ou a dificuldade em crescer, todas sempre estavam florescidas. Compondo o restante do ambiente, uma grama verde cobria a terra, só dando espaço a um grande lago artificial no meio do campo, era muito lindo.
Alguns fios dourados balançavam com o vento gélido, olhos pretos como a noite pareciam admirar o fim do resplendor do grande amarelo. Era um rosto gentil acima de tudo, não tinha nenhum sinal de ódio ou amor em sua expressão, porém era estranhamente reconfortante. É difícil expressar com exatidão, é uma pessoa comum e memorável ao mesmo tempo.
Tal ser não usava uma roupa eclesiástica, portava uma roupa branca com uma enorme cruz vermelha no meio do tecido, dos pés ao pescoço, era um templário. Por baixo da vestimenta aparente, parecia ter algum tipo de armadura, talvez uma cota de malha que enxia o homem.
Ao olhar para o horizonte, aparentemente sem rumo, o homem percebe o cantar dos pássaros, os quais vinham se deleitar das abelhas sobre o mar florido. O barulho da confusão se transforma no silêncio do vento, aproveitando-se da situação, o homem pega uma bíblia estranha de uma bolsa de tecido presa ao lado de seu corpo. Sua capa tinha um desenho estranho, um olho de pupila quadrada vermelha, era a bíblia que o padre Benjamin carregava consigo, como ela já estava na Itália se as investigações estavam apenas começando?
O folhear das páginas e palavras marcadas de sangue pareciam trazer algum significado enlouquecido, um texto chama a sua atenção: "Assim acontecerá no fim desta era. Os anjos virão, separarão os perversos dos justos e lançarão aqueles na fornalha ardente, onde haverá choro e ranger de dentes". (Mateus 13:49-50). No entanto, havia uma parte escrita a mão, suas letras pareciam ser de sangue que escorrera pela página, parecia uma continuação do verso.
"A agonia do eterno se inaugurará ao anjo perverso de asas incandescentes, o qual assolará a terra para o resplendor do senhor".
Esta frase o prende mais que as demais, todavia, um som de passos metálicos ecoam em suas costas, se tornando cada vez mais alto. Por isso, guarda o misterioso livro de volta para a sua pequena bolsa.
Quando ele se vira, na sua linha de visão surge uma jovem de 20 e poucos anos. A mesma continha uma robusta armadura de placas sobre o seu corpo, perfeitamente modelado em suas medidas. Seus cabelos negros e levemente caracolados até a altura do ombro se destonavam da presença imponente de 1,80 metro de altura.
— A armadura coube bem em você.— O homem elogia com uma voz simpática.
— Obrigado, é a primeira vez que a uso.— Responde a jovem com uma voz tristonha.
— Já sabe para aonde vai?— O homem pergunta devido ao tom da fala anterior.
— Vou só para Toscana...— A moça parecia desconfortada.
— Não aprovaram sua santa missão para as antigas terras imperiais?
— Simplesmente me mandaram conduzir a proteção de alguns bispos... eles nem ao menos vão sair da península!— A de cabelos negros parecia revoltada.
— Isso não é um trabalho digno do seu cargo de comandantes dos cavaleiros.— O homem parece tentar a atiçar
— Exato! Nem que fosse minha primeira missão, isso manchará a casa dos Beltráns!— A mulher revela toda sua indignação.
— Seu pai pode ter envolvimentos com isso. — O homem acusa.
— Como assim?
— Só te restou na família depois daquele incidente noturno.— O templário coloca sua mão no ombro da moça.— Ele teme por sua vida.
— Sei disso...— Ela suspira. — Mas tenho que seguir minha vida como militar, quero ser honrada, não protegida.
— Sua atitude de comandar tropas mesmo sendo mulher já é honroso, seus soldados tem um enorme respeito por sua capitã.— O homem dá um sorriso.— Não deixe que seu genitor te ache fraca.
— Fraca... obrigado pelos conselhos Meroveu.— A jovem parecia pensativa.— Vou mostrar meu valor, mesmo que ele negue que me restringiu.— Sua voz se torna mais humorística.— Porque sei que ele não vai admitir, eu conheço aquele velho, hahaha!
— Com certeza não vai!— A risada de Meroveu parecia falsa.— Mas não se preocupe, Giulselin, tenho certeza que muitas oportunidades virão
— Assim espero! Além disso, para onde você foi...— A fala de Giulselin é interrompida.
Um homem se aproxima, vestia roupas templárias e luvas brancas, no entanto, o que se destacava era uma máscara ferro simples que escondia seu rosto por completo. Ele carregava um pergaminho com o símbolo vermelho da cruz em uma das mãos e antes de anunciar, se curva em referência a Meroveu.
— Santo Grão-mestre, Vossa Santidade Papal clama por sua presença.— O homem anuncia com uma voz fraca e grossa, enquanto estiva o papel.
— Obrigado pelo aviso.— Meroveu lê a mensagem.— Sinto que terei que me retirar, aproveite Toscana, ouvi dizer que há ótimos vinhos e queijos pela região.
— Trarei alguns para você, hahaha! — Giulselin se despede
Após isso, Meroveu segue o anunciador através dos corredores do Vaticano, os quais ainda se encontravam caóticos. No fim do percurso, em uma área já não acometida pelo barulho, havia um grande salão com cúpula o que iluminava, além disso, havia uma porta de mesma magnitude guardada por dois soldados. Ao se aproximar, os serviçais abrem a entrada sem questionar, assim, Meroveu adentra sozinho.
Era um cômodo extravagante, paredes com detalhes em ouro, móveis com as mais caras madeiras e diversas obras de arte bíblicas, as quais retratavam os versos do texto sagrado. Dessa forma, não havia se quer uma parede sem resplendor.
Perto de uma grande janela, havia uma mesa circular. Nela, um homem de 50 anos, pele rugosa, olhos castanhos claros e escassos cabelos negros e grisalhos completavam a sua aparência, era o Papa Gregório XI.
— Me chamou Vossa Santidade?— Pergunta Meroveu.
— Temos assuntos para discutirmos. —O Papa responde enquanto olha alguns papéis.
— E o que seria?
— Preciso que vá para a capital do antigo império, precisamos reafirmar nossas alianças com o novo poder. — O santo larga os textos e olha fixamente para o militar.— E sei que você capaz disso.
— Agradeço imensamente a tua confiança Papa.— Meroveu se curva.— Porém temo a sua segurança.
— O que quer dizer?— Gregório parece surpreso com tal má notícia.
— A mensagem de Deus chegará nos povos exilados de tal caridade. — Ele se levanta.— A maioria deve aceitar o Senhor em vossos corações, todavia, os pagãos vão se esconder entre as ovelhas. Podemos ter infiltrados até mesmo no Vaticano, Vossa Santidade.
— ... E o que sugere?— O padre parece se alarmar, focando toda a sua atenção no convidado.
— Uma guarda especial deve ser convocada para protegê-lo, apenas dos mais fiéis e devotos soldados, que dariam a sua vida pelo bem da igreja.— Meroveu anda até a janela, ficando ao lado do idoso.
— Uma figura religiosa não pode ser associada a soldados! O que o povo pensará? Fraqueza?— O santo contesta.
.— Eles irão entender, a mensagem de Deus só será espalhada se o homem mais próximo dele estiver seguro.
— ... Pode haver traidores nos soldados.
— Apenas os incorruptíveis devem servir tal tarefa, a escolha pode ser por sua vontade.— Meroveu aponta para algo além da janela.— Mas, se Vossa Santidade me pedisse sugestões, recomendaria Giulselin, descendente dos Beltráns.
— Uma mulher? — O Papa parecia ofendido.— Além de ser uma jovem, não conseguirá tal função!
— Ela está no meu círculo pessoal, e posso lhe afirmar Papa, desconheço alguém tão capaz e devota como ela.— Seu dedo apontava exatamente sobre ela, a qual parecia conversar com um grande homem, provavelmente seu pai.— A vejo com um enorme potencial a ser explorado, que transcende seu gênero, Vossa Santidade.
O Gregório se cala por alguns pensando, uma recomendação dessa vinda pelo Grão-mestre dos templários tinha um enorme peso. Enquanto isso, Meroveu se encaminha até a porta.
— Cumprirei a minha missão, retornarei uma aliança estabelecida. — Ele cruza as portas. — Pense bem sobre a minha proposta, tenho certeza que ela será uma grande serviçal.
A abertura de fecha antes de qualquer outro diálogo.
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