VII. Obsessão

O ar estático e pesado hesita em adentrar nos flácidos pulmões de uma jovem recém-desperta, um enorme esforço é feito para puxá-lo. Além disso, o sangue que escorre por seu rosto não lhe causa aflito algum, inclusive os olhos negros e brancos observam a poça de carmesim que se forma pelo pingar em seu queixo.

Não há dor, medo ou qualquer outra sensação fútil, seu corpo permanece dormindo, apesar de acordado. É como se não fosse realmente a sua alma controlando a casca, está vazio agora e, por isso, os desprazeres não atormentam seu ser, não podem alcançá-la nos confins de sua mente.

A apresentação teatral está prestes a começar, já que a de olhos estelares já assumiu sua posição no palco, enquanto a de olhos verdes apenas observa o espetáculo, uma mera espectadora de sua própria vida.

O leve mexer de seus membros já chamou a atenção dos mortos, os quais inclinam suas cabeças para analisar melhor a garota de olhos estrelados. Aproveitando-se disso, ela age inesperadamente ao puxar seus braços para baixo, fazendo assim, que os dois crânios já próximos se colidissem com força, os desnorteando.

Após isso, suas mãos são libertas do forte apertar das carcaças. Por causa disso, a jovem consegue sacar a sua arma enquanto se sustenta com apenas uma mão ao chão, o combate está prestes a começar.

Na primeira iniciativa, Aurora empurra seu corpo para trás, curvando as suas costas até que consiga ver os dois cadáveres que prendem as suas pernas. Com eles em vista, um golpe surpreendentemente bem executado decepa o braço de um dos mortos, um ataque limpo e perfeito.

Em seguida, ela consegue apoiar o pé liberto no chão e o utiliza como apoio para girar o corpo na direção contrária da última resistência. Dessa forma, a carne em decomposição é lançada em direção a uma parede, colidindo sem muita força, afinal, a jovem só quer se libertar por completo.

Erguendo-se em plena pose de batalha, a frágil jovem de outrora agora parece imponente ao meio de seus agressores desacreditados. Tais atitudes espantam a solitária espectadora no grande teatro, a de olhos verdes nem imaginou que detêm tamanha flexibilidade.

Rapidamente, os pútridos a cercam novamente, bloqueando as possíveis fugas da jovem, todavia, este foi o erro deles, supor que ela correria. Avançando de primeira, a jovem foca no defunto jogado na parede, este é o menos atento dentre os outros. Assim, não há defesas nem esquivas perante um golpe vertical, por consequência, o metal frio atravessa a deteriorada carne junto aos esfarelentos ossos até que o rosto desfigurado se torne disforme. O primeiro corpo cai em seu descanso eterno.

Mesmo com a primeira vitória, não há tempo a se perder, haja vista o avançar dos semelhantes do derrotado. Em resposta a isso, a jovem também decide ir ao encontro da zona de choque. Apesar de seu olhar vazio, suas atitudes demonstram a confiança em suas capacidades com a espada, bem diferente da inexperiência da de olhos verdes.

O primeiro a se aproximar tenta o mais simples dos golpes, um soco direto e desengonçado, tal ingenuidade culmina no desmembramento daquele membro, agora só restam quatro braços podres. Estranhamente, Aurora segura o braço decapitado enquanto avança em direção ao próximo oponente.

O seu alvo é o último dos intactos, pelo menos os seus membros estão, pois sua carne é a mais deteriorada dentre todos, com ossos expostos pelo devorar das pragas. Em mesma degradação, o intelecto desse morto também é o pior, por tentar um simples morder sobre a destemida.

Em contramedida, Aurora aponta sua arma em direção à boca moribunda e estoca como uma lança. O apertar dos dentes tenta parar o golpe, criando assim um ruído perturbador que reverbera pelas paredes rochosas. Todavia, tal esforço é inútil, pois não demora para o corpo imóvel deslizar lentamente em direção à bainha.

Basta apontar sua lâmina ao chão para a carne pútrida descer sozinha, agora só restam dois espreitadores sequelados. Ao retornar sua atenção para eles, a jovem percebe que um deles avança descontroladamente em seu sentido, bastando enviar o braço amputado em sua boca junto a um chute para que sai momentaneamente do combate novamente. Este foi o motivo de segurar tal membro por tanto tempo.

No entanto, o mesmo continua vivo ou quase isso, sendo uma escolha estratégica se livrar dele da maneira mais rápida, porque o outro oponente também avança. Um salto feroz e suicida do penúltimo a morrer é a última resistência descente daquele pequeno batalhão de vermes, um tudo ou nada. O clímax daquela peça em fim chega, no entanto, a principal atriz não demonstra preocupação, continua sendo uma casca vazia.

O corpo da sonhadora descende em direção ao chão para desviar do salto, todavia, a ponta de sua arma ainda se mantém em direção aos céus, apenas esperando o passar de seu oponente. Quando uma chuva pestilente escorre da boca do inumano, a lâmina acerta a barriga da aberração, o empalando junto às pedras enquanto seus órgãos desabam pelo ar pútrido.

Contorcendo-se inultimente, o defunto apenas pode assistir à sua segunda morte pela garota imunda com seus restos. Os braços trêmulos da jovem hesitam na finalização devido ao cansaço, a perda de sangue, em fim, surte efeito. Por causa disso, ela muda a pegada no cabo para poder cortar com mais facilidade e, assim, Aurora usa toda a sua força disponível para atravessar a lateral do corte com um corte brutal e irregular.

Ainda com movimentos, a criatura ainda se mantém viva no chão, no entanto, sua coluna vertebral foi devastada no empalamento, levando consigo o andar. Por causa disto, é rapidamente finalizado com um golpe certeiro em sua testa.

Ao se virar para seu último oponente, os dois seres cruzam seus olhares por um mero instante antes de avançarem um em direção ao outro, o tão custoso combate está perto de seu fim. O metal, já gélido devido aos pedaços de carne fria, cruza o pescoço em mesma temperatura, com gotas de sangue negro escorrendo no último ato da vitória absoluta da vida.

O corpo do perdedor tomba no mesmo instante que o da vencedora, mas por motivos diferentes. O corpo exausto somado aos pulmões em chamas deixa a jovem pálida e imóvel. Além disso, seus olhos se tornam tão verdes quanto uma esmeralda em um simples piscar, a mera espectadora voltou ao palco já solitário.

Após alguns minutos sem conseguir mover o menos dos músculos, a jovem se ajoelha com extrema dificuldade enquanto olha o chão ensanguentado, nem toda gota pertence aos seus oponentes, há muitos de cor vivida que escaparam por seu braço.

A sensação de sufocamento, mesmo respirando o máximo que consegue, inflige sua alma de tal forma que ela consegue forças inexplicáveis para se jogar na parede e caminhar lentamente em uma direção qualquer. Suas pernas bambas atrapalham enormemente em tal objetivo, mas sua esperança e seu sonho a motivam a continuar, afinal, ela se recusa a terminar sua aventura na primeira adversidade.

O tormento a persegue mesmo nesta situação, pois não demora muito para que novas pedras comecem a se mexer no limitado horizonte, uma nova horda a achou. Completamente ensandecida, a jovem só consegue realizar um mancar desordenado para sua fuga patética.

Lágrimas escorrem por seu rosto cansado, os seus limites físicos, morais e mentais já foram ultrapassados diversas vezes naquela escuridão, ela não sabe se aguenta mais uma vez. Para seu falso conforto, as pedras apenas o rodeiam no primeiro momento, como se estivessem a acompanhando, a observando.

Aterrorizada, a jovem se pergunta o porquê dessa atitude inesperada dos mortos, será que o padre está próximo? A resposta a tal questionamento veio por meio de uma bifurcação no corredor, pois as pedras que a acompanham avançam para tombar uma das passagens, seria esta a saída?

Com o caminho bloqueado por pedras e terra, a jovem se vê obrigada a continuar pelo remanescente, estando assim no caminho que os defuntos desejam. Com um pequeno brilho distante, Aurora fica com uma pequena esperança de sua fuga. Que garota ingênua.

Sua ansiedade é tanta que nem percebe que não é mais acompanhada pelo mover das pedras, porque estes já fizeram seu objetivo de guiá-la até o abatedouro. Tal sentimento ilógico a cega a tal ponto que crê que a singela luz advinda de uma tocha possa ser uma brecha ao céu. Seus olhos já desacostumados com a claridade apenas reforçam tal farsa, com o ambiente só se tornando nítido após o cruzar da entrada.

Ao chegar no tão aclamado resplendor, ela percebe que o mais belo céu azul de seus sonhos é apenas uma capela subterrânea abandonada. Os seus olhos paranoicos apenas rodeiam pelas pilastras de mármore caídas e pelas pinturas e murais dominados pelo pó em busca de alguma saída, não há nada além da desolação.

A imagem de Jesus Cristo crucificado no topo do antigo altar é a única coisa que se mantém perfeitamente limpa, apesar do desbote de suas cores devido ao tempo. Em joelhos sobre o filho de Deus, uma pessoa ora deitada em sussurros entre escombros, completamente devotada ao seu profeta.

Apesar de serem impossíveis de interpretar, apenas o ecoar que verbera pelas paredes devastadas do templo perturba o mais fundo da alma de Aurora, em sua frente está a pessoa a qual tanto se esforçou para fugir. O padre se ergue ao fim de suas preces.

— Em vosso nome, oh! Grande Pai, peço graças divinas para o pecador nesse recinto, para que ele possa ver-te através de seus próprios pecados e reconhecê-lo como nosso único salvador, amém. — O padre faz o sinal da cruz antes de se virar para a convidada especial. — Não existem maneiras de fugir da paz de Cristo, haja vista o destino de todos os caminhos, DEUS!

— Aqui foi o berço da Santa Igreja nas terras belgas, em um tempo em que a opressão aos fiéis da verdadeira fé ainda assolava o mundo.  — O sacerdote puxa sua estranha bíblia marcada por um olho de pupila quadrada.  — Neste local esquecido pelo tempo, mas não por Deus, eu a condeno ao sacro julgamento do Senhor.

— Olhe para você primeiro, seu boboca! — A jovem se apoia em sua espada encostada no chão para não cair.  — Considerando tudo o que você fez, seu Deus nem deve estar mais aqui!

  — Mais um erro, pequena cordeira, se não é o Senhor, quem está nos observando pelas centenas de olhos? — O padre aponta o seu dedo para cima enquanto esboça um pequeno sorriso.

Ao seguir as unhas manchadas de vermelho, os olhos trêmulos da pequena sonhadora se apavoram ao notar o que a observa entre as pilastras arruinadas. Centenas de ratos formam um teto falso de carne enquanto mantêm seus olhares vidrados sobre a garota estática pelo medo.

Além disso, suas pupilas dilatadas ao extremo, junto ao estado deplorável de seus corpos, tornam a cena ainda mais tenebrosa diante da já quase morta. O que seriam aquilo? Por que os ratos a observam?

  — A verdadeira imagem de Deus está naqueles que conseguem vê-lo até mesmo nas mais repugnantes criaturas.  — O padre olha para os carniceiros por alguns instantes.  — As mensagens passadas por eles são só compreensíveis pelos mais devotos, como eu. Um milagre dado ao servo do Senhor.

  — O-o que eles querem?  — Aurora dá alguns passos para trás, mas as cabeças dos vermes ainda a perseguem.

  — O destino da história já foi ditado e escrito antes mesmo de se cogitar a acontecer.  — O sacerdote revela a sua bíblia com o estranho símbolo.  — O seu não será diferente, sua vida já está nas linhas destas santas páginas.

  — E-e o que dizem?  — Aurora pensa nas possíveis respostas e, por isso, treme ainda mais.

  — Quando a última princesa do Império Valôm se tornar uma consigo mesma.  — Aurora fica incrédula com a fala dele, como ele sabe?  — Um anjo de asas flamejantes tocará o céu da meia-noite consumido pelo caos, declarando o surgir de uma nova era de entropia.

— O que isso quer dizer? — A medrosa oscila o apontar de sua arma para os repugnantes e para o ensandecido. — Quem é esse anjo?

— O mais belo dos seres usará a trombeta. O apocalipse em fim chegará. — O padre percebe o medo nos olhos da jovem. — Não há o que se temer, pequena cordeira. Você não terá o prazer de ver a chegada de Deus.

As pedras que compões o solo começam a tremer violentamente enquanto alguns pedaços da antiga catedral desabam ao chão, toda estrutura parece que está a um triz de desabar. Por dentro da imagem de Cristo, um amontoado de carne desdenhosa começa a rastejar sobre suas próprias entranhas nefastas até que se juntem à outro aglomerado de putridão.

Um ser desprezível e repugnante se forma através do que restou de boas pessoas. As fibras dos tecidos deteriorados se unem em um pecado contra a vida, uma besta profana surge naquilo que o padre concebe como semelhante ao seu "Deus".

Uma fera humanoide com os rosto retorcido e medonho, sem olhos ou qualquer pelo, a única coisa que se distancia da dor de cada individuo acorrentado neste corpo é um símbolo de um olho com a pupila quadrado no meio da face, o mesmo da bíblia.

A monstruosidade da natureza encara a jovem com o buraco de seus olhos vazio, apenas escuridão cobriam as cavidades. Um som agoniante adentra pelo ambiente, um choro deformado de múltiplas vozes, todos oriundos daquele ser. Ainda há pessoas vivas imersas em sua carne.

Diante de tanta desumanidade, ali está o anjo da perdição.

Enquanto sua espada está prestes a cair de suas mãos devido ao medo, um novo som chama a atenção da jovem, uma oração.

— Grande Pai, ponha em prática a sua justiça absoluta. Me permita ser suas mãos na junção dessa alma penada a si mesma, que eu seja o sopro para o tão belo ser flamejante. — O padre abre seus olhos. — Amém.

A deformidade avança descontroladamente assim que as últimas palavras saem da boca do profeta. No mesmo instante, os olhos de Aurora piscam e, mais uma vez, ela se encontra na plateia, uma mera espectadora de uma performance impossível.

A de olhos estrelados pula para o lado antes que a massa descomunal a esmagasse. A parede do templo esquecido desaba com o impacto do ser profano, ele detém uma força descomunal, mas uma velocidade e agilizado comprometidos. Esta serão suas únicas vantagens.

Não demora muito até que a coisa escape das pesadas pedras e, surpreendentemente , parece que sofreu o menor dos danos dos pedregulhos, não há se quer um corte em suas carnes. Não é possível que seja tão resistente, os tecidos que o compõem pertencia à humanos.

Só há uma explicação para isso, uma "regeneração", ou melhor, uma reposição de carne pútrida. Mas como isso acontece? Não há nenhum defunto se unindo à aberração.

Antes que descobrisse respostas, o medonho avança junto ao seu perturbador choro. No entanto, os seus movimentos são pesados e lentos, dessa forma, a jovem consegue manter uma certa distância da criatura.

Um plano de combate ainda parece não ter surgido para a de olhos estrelados, enfrentá-lo está fora de cogitação, a diferença de força e durabilidade é notória. Além de que, a perda de sangue continua a deixar cada vez mais fraca.

Todavia, o espaço apertado da capela começa a se esgotar gradativamente que os passos desesperados ecoam pelas ruínas. Desse modo, a jovem se posiciona por detrás de uma pilastra empoeirada, talvez para conseguir um empecilho para o gigante.

Basta um robusto soco do desfigurado para que o mármore esquecido se torne pó, centenas de fragmentos voam pelo ar mórbido, com alguns até mesmo acertando a jovem, causando pequenos arranhões.

Quando a última barreira antes da morte parece ter sido rompida, a estrutura começa a desabar naquela pequena região. O que a fera derrubou foi uma pilastra de sustentação.

Apesar de não causar sérios danos e nem mesmo derrubá-lo, o cair das pedras possibilita um ataque direto a cabeça medonha e, assim, é feito. O sangue pútrido escorre pela carne devorada por vermes, mas não mata a fera, o corte é coberto por mais tecidos repugnantes.

Para ter uma mínima chance de vitória, ela terá que cessar essa renovação de corpos de alguma forma. Só precisa encontrar o que o alimenta.

Enquanto se afasta do encurralamento, o anjo desgraçado percebe a sua ausência por meio de uma das faces horripilantes em seu corpo. Por causa disso, a carne em seu braço começa a se contorcer sobre si, até que a ponta de um osso apareça no lugar das suas mãos.

No momento que a de olhos estrelados se virou para combater o monstro, um osso quebrado perfura a sua barriga com extrema força. Ele foi arremessado pelo colossal grotesco, não deixará que ela continue fugindo do destino de Deus.

Uma quantidade exuberante de sangue que não poderia se dar ao luxo de perder escorre pelo seu vestido até chegar aos pés. Mesmo evitando retirar o branco podre para perder uma quantidade inferior de sangue, o carmesim ainda continua esvair constantemente, parece até algo sobrenatural.

Enquanto cai de joelhos pela dor cada vez mais acentuada, ela pode ouvir um bater de palmas vindo do altar imundo.

  — Sua perseverança é algo elogiável. — As mãos do sacerdote param.  — Se tivesse tanto empenho em seguir o bom caminho, talvez não estivesse aqui.

O padre puxa a sua bíblia marcada com o olho da pupila quadrada e começa a folhear por algum tempo. O demônio nomeado de anjo também cessa durante esse período, está seguindo as ordens do seu mestre.

  — Ou talvez não, até mesmo seus olhos foram previstos por mim devido aos milagres que Deus me concedeu. — O velho aponta para a barriga de Aurora.  — Até mesmo o sangue que lhe foge foi uma das maravilhas concedidas a mim.

Completamente ensandecido, o tão fiel olha para o teto da catedral, mais especificadamente, para as centenas de ratos que observam a luta estáticos. Algum até mesmo faleceram conforme as pedras despencaram, mas isso não é importante para eles aparentemente.

  — Estou fazendo um bom trabalho, Senhor?  — O padre espera uma resposta que só sua mente louca pode conceder.  — Logo todos os requisitos para a volta do tão iluminado terminarão, em fim as luzes do céu venceram as sombras da terra.

Quando o livro sagrado se fecha, a monstruosidade volta a atacar ferozmente. Diversos ataques são desferidos continuamente em direção da tão ferida, todavia, todos acabam sendo ineficazes em acertá-la, sempre há uma pilastra ou uma desviada desesperada para salvá-la.

O clímax deste embate está prestes a ser revelado, até mesma a de olhos verdes, que está protegida nos confins de sua mente perturbada, se desespera a cada golpe que por milímetros não a devasta.

No entanto, uma coisa útil surge neste momento desesperador. Entre os pulos e os rolamentos sangrentos e dolorosos, a Aurora de olhos negros e brancos percebe algo que ocasionalmente surge nos pés da besta necrófila. Um tubo de carne pulsante se prende a ele por alguns instantes, principalmente quando é ferido por alguns de seus golpes. É aquilo que está renovando os seus tecidos deteriorados.

Conforme a peça teatral se torna cada vez mais distante e borrada devido à perda de sangue, fica claro que o final do espetáculo se aproxima, seja lá qual for. Para a protagonista desse desvaneio vença, ela só poderá se arriscar uma única vez, não pode errar nem nos míseros detalhes.

O tremer das enormes rochas prenuncia o final daquela devastação caótica. Como um cometa profano que mancha os ares enojantes com vermes, o desfigurado pula sobre a pobre coitada, o último ato antes do oblívio.

Imóvel perante a avalanche de miúdos, a flácida jovem mantém seus olhos fixos no cair da besta desalmada, está esperando o exato momento.

Quando a criatura se choca com uma coluna, o turbilhão de pedras e carne quase esconde o eclodir do tubo detestável das pedras abaixo. Com um salto de fé, a garota se lança em direção ao grande vermelho, a chance em fim chegou.

Um corte desesperado é desferido, levando consigo boa parte de suas forças, a jovem decepa parte do tubo de carne. Além disso, o corpo que seria usado para repor a perda de tecidos da besta se perdeu junto. Ela terá uma brecha até o novo combustível profano chegue.

Apesar do movimento inacreditável, a demorada espera pelo ideal culminou em um sacrifício. Enquanto rolava para fugir do peso exuberando do amontoado de carne, uma parte de seu corpo ficou para trás quando o colosso atingiu o chão. Duas falanges de seu dedo mindinho na mão esquerda são esquecidos no aglomerado de carne, ossos e vermes, incorporando à monstruosidade algum resquício de tecido e sangue.

Mesmo com a falta da boa parte do dedo, a dor é ignorada pela pouca adrenalina ainda não usada naquela jovem ensanguentada. Nem mesmo a perda parcial de um pequeno membro pode distraí-la nesse momento, o clímax chega ao final para dar lugar ao desfecho desse embate sanguinário.

Enquanto o anjo retorcido se levanta, Aurora se joga sobre sua carapaça sofrida, enfincando sua espada no meio de uma das incontáveis bocas sobre a sua pele de carne viva. A besta se contorce e balança tentando jogar a jovem para longe, mas ela segura com tudo que pode naquele cabo de espada irregular.

Quando a besta cansa por míseros segundos, a de olhos estrelados puxa sua espada e posiciona um pouco mais a cima nas costas da besta, dessa forma, ela gradualmente sobe pela carne podre.

Não demora para a aberração perceber que somente se debater não fará com que a pecadora caia. Desse modo, a resposta virá de outra forma, uma qual ela não conseguirá se esquivar.

Os rostos de dor começam a se retorcer sobre si, os tornando cada vez mais desfigurados. A pele rugosa e enojante vibra um pouco antes que enormes ossos afiados rompem-na com extrema força, tentando empalar a garota.

Por mera sorte, nenhuma dessas lanças infincam uma parte crucial para vida, apenas cortes profundos que drenam mais do escasso sangue da jovem são feitos. O que mais destaca dentre tantos é um que atravessou a mão esquerda da coitada, a deixando ainda mais arruinada.

Mesmo assim, o incessante subir da ensanguentada é aprimorado, basta puxar seus membros perfurados para cima e continuar escalando o disforme, agora pelos seus próprios ossos apodrecidos como apoio.

Quando o topo do desprezível surge diante de seus olhos, a jovem ergue sua espada pelo cabo com suas mãos trêmulas. Mesmo com tal imprecisão, o tamanho colossal do cadáver ambulante deixa impossível errá-lo.

Um enorme grunhido desprazeroso ecoa por todo ambiente sagrado, concedendo o alívio para tantas almas penadas. O cair do gigante de carne pútrida sinaliza o fim daquele embate mortal, pois a jovem despenca junto.

Em um piscar seus olhos se tornam esverdeados mais uma vez, no entanto, toda a dor e esgotamento físico a atormentam de uma vez. A telespectadora volta ao mundo real com as consequências de seu espetáculo, não consegue mover o menor dos músculos.

Completamente a mercê da morte que se espreita, a visão da sonhadora se torna cada vez mais escurecida ao ponto de sua audição confusa seja o único sentido que pode confiar.

Um zumbido constante aumenta com cada escorrer de sangue, o fim está próximo. No entanto, barulhos de passos abafam esse ruído do oblívio, mas não tardará o seu crescer, quem chega não lhe salvará.

  — Tu lutaste como um demônio implacável, totalmente suicida e sem escrúpulos.  — O padre se ajoelha perto da quase morte e, com seu dedo, passa sua mão sobre o carmesim que se esvai.  — Mas, ainda assim, venceste. Seria uma boa serva ao para erradicar os pagãos. Uma pena estar condenada pelas escritas.

Apesar de sua fala, o devoto não aparenta sentir nenhum remorso, sua atenção está somente para o vermelho que cobre o seu dedo. Seguindo os seus desejos mais profanos, ele o lambe com prazer.

  — Já se tornaste uma com si? Já, sim, seus olhos voltaram ao normal.  — O velho se levanta e caminha em direção ao altar.  — Faleça como um sacrifício ao glorioso anjo, seu corpo será bem aproveitado por mim.

Os vermes do grande anjo pecaminoso começam a se rastejar em direção a nova carne fresca, não há mais esperanças para a coitada.

Ela se pergunta se acabaria ali sua jornada tão ínfima, fracassou em sua primeira adversidade. Uma falha que se repetirá muitas e muitas vezes ao longo desse desprazer.

Quando os sussurros da singularidade escura rasgam os seus tímpanos, um único e gigantesco som os sobrepõem por um mero segundo antes do completo silêncio. Sua visão embaçada e quase nula apenas percebe vultos despencando, no entanto, algo fica nítido diante de seus olhos, a luz do sol.

O teto da escondida catedral despenda ao ser retalhada por cinco profundos cortes enormes, um para cada dedo de carmesim enrijecido. A poeira logo toma totalmente o ambiente repleto de angústia e, sobre tal calamidade, está uma figura imponente.

O tão aclamado finalmente acha aquela que tanto chora, não há mais motivos para o medo, afinal, o mais forte dos homens chegou. Sua sombra atormenta instantaneamente o religioso que ainda tenta escapar dos escombros, o demônio de Valônia está bem em sua frente.

Enquanto o sangue se esvai de sua pele, assim como fez com tantos inocentes, uma mão não amigável lhe retira da prisão dos escombros sem nenhuma preocupação com os ferimentos ocasionados em tal movimento brutal.

Erguido sobre a nuvem empoeirada, o nariz do santo pecaminoso tenta respirar aquele ar fresco do outono gélido. No entanto, sua garganta bloqueada não permite que o menor átomo de oxigênio adentre nos seus pulmões vazios, está sendo sufocado pelas mãos do desdenhado.

Se debater contra aquela aberração é inútil, um simples idoso não pode vencer de um genocida. Todavia, a falta de sangue oxigenado atrapalha a linha de pensamento do sacerdote, desse modo, ele faz exatamente o que um tolo faria.

No meio de sua paranoia da quase morte, o devoto clama pelos seus defuntos moribundos, mas nenhum deles está próximo para a atender seu chamado a tempo, usou toda a carne disponível para castigar a profana jovem.

Quando está prestes a aceitar o caminho escuro, pequenos toques em seu ombro chamam a sua atenção. Nele está um daqueles ratos que observavam, contudo, está completamente deformado e ferido, com ossos nitidamente quebrados e órgãos a mostra. O desmoronar o matou, mas, ainda assim, ali está ele em pé.

Suas pupilas dilatadas começam a diminuir e, no momento que voltam ao normal, a praga cai morta em direção ao chão.

Aquilo pode não ter nenhum significado, porém, para o profeta do Armagedom, um único sentido surge em seus últimos pensamentos. Deus não mais o observa, pois sua missão foi cumprida, o anjo flamejante nascerá.

É o fim daquele insano, a morte em fim se deliciou com aquele que proveu tantas longas refeições.

Descartado como um lixo, o seu defunto é jogado para os vermes que tanto cultivou. Após isso, o brutamonte observa a vala comum debaixo de seus pés, seus olhos param na figura feminina prestes a perecer.

Por sorte do acaso, ela não foi soterrada pelas pedras frias, todavia, sua situação é crítica. Em aparente resposta a isso, Wem desce o mais rápido que pode e começa imediatamente com os primeiros socorros, tampando as feridas com o tecido de seus próprios casacos.

Enquanto fazia tais procedimentos que apenas adiariam um pouco na morta da pequena, uma estranha e inexplicável névoa esverdeada começou a surgir. Tal nuvem estranha surge do corpo do padre e segue em direção da jovem desacordada, ou melhor, para a peculiar espada em suas mãos.

Conforme a neblina se concentra no metal, uma palavra com letras estranhas começa a ser encravada na lâmina. Ao observar aquilo, Wem aparenta surpresa ou interesse, pois para por alguns segundos para observar o fenômeno inexplicável.

O significado para aquilo surge na mente da jovem perdida dentro de si, mesmo que nem ao menos tenha alguma noção do que se passa lá fora. Entretanto, a mesma palavra martela a sua mente, "Obsessão".

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