IX. Relatório

*Capital do antigo Império Valôm, de manhã*


O arder das chamas ainda esculpia as ruínas com suas marcas negras, uma grande metrópole reduzida a cinzas. Apesar disso, não foi completamente abandonada, seus subúrbios quase intactos mantinham alguma população precária. Usando de sua força de trabalho, grandes obras se erguiam por toda aristocracia devastada, algumas apenas renovando, outras apagando o legado imperial.

O grande castelo, símbolo do poderio do regime anterior, era o foco de tal reconstrução, suas torres caídas e suas paredes derrubas eram erguidas por centenas de pessoas comuns. Grandes arquitetos e engenheiros, os melhores que o dinheiro poderia comprar, planejavam e julgavam a integridade de cada pilastra, além de certificarem a erradicação de qualquer memória passada.

Nesse contexto de progresso, passos pesados ecoam pelas estreitas paredes remanescentes, sua origem é uma escada, umas das poucas que não desmoronou. O detentor de tal marcha barulhenta é um homem, deve ter entre um metro e 80 centímetros, usa roupas militares predominantemente negras sobrepostas por um casaco de pele de urso pardo, além de um chapéu da mesma cor do uniforme. Suas características individuais são difíceis de se disseminar a princípio, as sombras, o excesso de fuligem e pó tampam qualquer traço, todavia é nítido seus cabelos que chegam até os ombros e sua pressa a cada passo.

A escada o leva para a ponte de uma torre, que apesar dos buracos e das pedras farelentas, tem sua estrutura intacta. Móveis de madeira macia, espessas cortinas brancas e um escritório recheado com as mais pelas artes e luxos compunham o ambiente interno, que contradiz com o que resta além das janelas cobertas.

O ar é renovado por apenas uma abertura, ficava bem atrás de uma mesa sobrecarregadas de papéis, também há uma grande cadeira colchoada virada para a janela, dessa forma, não existem maneiras do recém-chegado ver quem se senta ali.

O homem que subiu a escadaria tem sua face iluminada pelo ambiente mais salubre, rosto fino acompanhado de cansaço, sobrancelhas grossas, bigode robusto e cicatrizes de guerra marcam aquele olhar negro de 40 anos. Tal militar não parece estar de bom humor.

Um suspiro antecede sua aproximação, um dos seus braços sobe até seu peito para buscas algo em seu casaco exótico. Nesse momento, é notório a falta de um membro, sua mão era substituída por uma prótese imóvel de madeira, além disso, linhas negras sobem pelo seu braço até chegarem em seu ombro, é como se a carne estivesse necrosada.

Mesmo com o disfuncional membro, ele puxa uma carta presa em um anel, o qual está em um dos dedos de madeira. Quando em fim chega em frente a mesa lotada, coloca a carta cuidadosamente, adicionando mais uma para a pilha.

— Alguns relatórios sobre a devastação de uma igreja próxima chegaram. — O militar notifica com uma voz roca e grave.

— Outro ataque da resistência imperial, Moretti?— Uma voz pergunta por trás da luxuosa cadeira.

— Talvez, mas esse caso foge do esperado. — Moretti vira para a saída, seria breve.  — Não foi uma invasão, apenas uma demolição, os moradores relataram que os responsáveis foram uma jovem de vestido nobre e um gigante desprezível.

— Ela estava com a espada?— A voz parece entender do que se trata.

— No momento da demolição, um padre foi morto. — Moretti chega na porta da escada, porém não cruza a linha. — Dizem que uma espécie de névoa verde saiu do corpo e se direcionou a uma espada com um buraco em sua cabo.

— Como eles se encontraram?— A voz parece indignada.

— Não há registros. Um relatório completo está sobre a sua mesa com mais detalhes.— O militar começa a descer as escadas.

Antes mesmo que alcançasse o primeiro degrau, ele ouve uma voz.

— Mande um general de sua escolha junto a um batalhão.— A voz para por alguns segundos.— Diga aos homens que é uma missão de caça a resistentes.

— Devem matá-la?— A voz de Moretti parece séria.

— Tragam a espada, independente do custo ou do método.

Moretti não questiona a decisão, apenas desce as escadas lentamente.

*Estrada a sudoeste, de tarde*



O uivar do vento forte ecoa pelas estradas de terra seca, a poeira levantada junto ao turbilhão de folhas laranjas e marrons secas impediam a visão de qualquer um que passasse. Nesse ambiente nada convidativo, apenas duas pessoas ousam desafiar a rebelde brisa.

Os persistentes têm estaturas bem diferentes, um bem alto, outra bem baixa. O ruído advindo das correntezas de ar quase suprimia totalmente o som da tosse da mais baixa, que parece se esconder por trás do colosso.

Talvez não foi uma das melhores ideias tentar caminhar depois de tanto tempo, mas quem esperaria um vento tão forte do nada?

Por sorte foi uma ventania temporária, afinal não há nenhuma tempestade a fortalecendo. Dessa forma, a queda da poeira revela os vultos que se escondiam, são Aurora e Wem, ambos empoeirados, mas só a jovem que tossia freneticamente.

— Cof-cof! Finalmente essa poeira abaixou!— Aurora comemora com uma última tossida.— Já estava tossindo um pouco!

— Um pouco?— Wem pergunta enquanto limpa seus inúmeros casacos,

— Tá bom! Talvez eu tenha tossido um pouquinho.— Aurora admite desviando o olhar.— Mas eu sou baixinha, aqui embaixo tem mais poeira! Olha só meu vestido como ficou!

— Os curativos estão limpos?— O brutamontes pergunta olhando para ela.

— AH! Verdade, deixa eu ver... estão meios sujos... mas acho que ainda dá para usá-los...— Aurora olha para seus braços e pernas, depois olha por dentro do seu vestido para ver o machucado da barriga.

— Vamos trocá-los.

— Não precisa, nem estão muitos sujos... — Aurora fica levemente corada.

— Sente-se. — Wem ordena enquanto se dirige para a margem da estrada, onde há uma grande planície de plantas rasteiras.

— M-mas vai doer... — A jovem reluta.

Aceitando seu destino cruel, Aurora se rende e segue Wem, afinal ela sabe que era necessário. Ao se sentar em frente ao seu aliado, Wem examina o curativo em seu ombro a princípio, tirando suas ataduras. O ferimento continua feio, a carne ainda expulsa pus misturado com sangue, todavia, ainda é melhor do que o dia do incidente. Em alguns dias os pontos vão poder ser retirados, o que deixará uma grande cicatriz como uma recordação tenebrosa.

A limpeza será feita com um tecido branco, o qual é banhado por uma bebida destilada qualquer para não haver infecção. Após preparado, Wem se vira para a Aurora que parece preocupada.

— O-onde você conseguiu isso?— Ela parece nervosa com o pingar da bebida.

— Comprei de um morador.— Wem responde no momento que segura o braço da jovem.

— M-mas isso é seguro mesmo?— Aurora já começa a se contorcer pela dor futura.

— Sim, será rápido. — Wem parece tentar a tranquilizar, só que não tem muito efeito.

— Vai com carinho...— Ela suplica choramingando.

A quase tortura começa com o leve esfregar do pano sobre a carne dilacerada, assim, ele é rapidamente manchado pelo sangue que escorre. Aurora fecha seus olhos tentando conter as lágrimas da dor, tentou se mostrar forte, por isso conteve os berros, mas não conseguiu evitar alguns grunhidos. Após isso, chegou a hora do novo curativo, um pouco de algodão é colocado sobre as feridas antes que um tecido fosse usado para selá-lo.

O enrolar e o puxar sobre o ferimento superam o desconforto da higienização, nesse momento, ela não consegue manter sua postura forte e acaba cedendo para a dor, com um grito extrapolando o som do vento já fraco. Para seu desespero, após completo, o mesmo procedimento é realizado em todos os curativos imundos amostra, apesar disso, a manifestação do sofrimento diminuiu gradativamente, talvez por serem menos graves ou pelo aceitamento.

— Fique de pé.— Wem ordena ao finalizar o último curativo da mão.

— Me levantar?— Aurora com uma feição ainda dolorosa e confusa.

— Falta o curativo da barriga.— Wem explica apontando.

— M-mas esse deve estar limpo...— Aurora contesta ainda mais vermelha.

— Levanta.— Wem não cederá.

— M-mas...  — Aurora dá um suspiro. — T-tá bom, mas seja rápido!

Ao se levantar, Aurora fica em pé sobre o Wem, o qual tem quase altura dela mesmo sentado, devido a isso, ele se curva um pouco para observar o curativo. Por ser um vestido, não há outra forma de conferir a sua barriga se não levantá-lo, assim, Aurora fica gradativamente mais corada quando seu vestido é cada vez mais levantado. Inevitavelmente, o vestido para de cobrir suas partes íntimas, revelando uma grande calcinha branca, deixando a jovem no máximo de constrangimento.

Apesar da situação peculiar, Wem mantêm seu olhar neutro até a chegada do ferimento, onde analisa a integridade. Não está novo, mas pode esperar até a troca regular, uma vez que o vestido o protegeu de toda a poeira da ventania. Depois disso, ele apenas larga o vertido e se levanta.

— Está bom.— Wem anuncia, olhando para o rosto da jovem.

— Eu disse que NÃO precisava!— Aurora grita estupefata.— Isso foi vergonhoso!

— Fui eu que fiz esses curativos — Wem fala como se quisesse aliviar o constrangimento.

— Q-QUÊ?  — Aurora fica ainda mais vermelha.

— Vamos, ainda resta algumas horas.  — Wem volta para a estrada sem olhar para a Aurora.

— E-espera aí! Essa discussão ainda não acabou!— A ferida sai correndo atrás dele, nem parece acabou de voltar a andar.


*Capital do antigo Império Valôm, de noite*

A escuridão sobrepunha a cidade, a fria e estrelada noite escondia a devastação. Um campo militar se estabelece perto da grande muralha derrotada, os soldados deveriam a guarnecer no seu ponto mais crítico. Todavia, o local era tomado por uma celebração, uma vez que sua comandante acabara de ser promovida a general, uma grande fogueira repleta de homens bêbados compõem o cenário nada formal.

Uma sombra estranha avança lentamente em direção da fogueira, como se desafiasse a luz das labaredas que jorravam faíscas. A chegada de um homem interrompe a festa, um grande general adentra nas instalações provisórias, Moretti olha para os soldados embriagados com desgosto.

O que ele faria ali? Um ser com o mais alto dos cargos militares não deveria se importar com um mero batalhão ou com a nomeação de uma general. Todavia, seus interesses coincidem com o inesperado, haja vista a única pergunta feita por tal homem: Onde está Rell?

Com medo de oferecer uma resposta verbal, os homens se limitam a apontar para uma pequena tenda separada da demais, além disso, se difere na qualidade, é inegavelmente superior. Ao receber a informação, Moretti avança sem dizer nada, porém o clima pesado continua.

Uma luz interna transparece os tecidos da tenda, o que revela um vulto humanoide por meio da sua sombra. Os sons dos passos alerta a pessoa reclusa, se levanta para receber o recém-chegado.

— Entre. — Convida uma voz feminina.

Sem hesitar, Morreti adentra na pequena cabana, que obviamente é provisória, pois só tem uma pequena cama acompanhada de uma mesa recheadas de papéis e mapas. O tamanho é tão ínfimo, que a própria cama servia como cadeira.

Uma mulher o recebe, uma ruiva com as pontas das mechas negras, rosto atrevido e marcado por cicatrizes de queimaduras, uma mulher inusitada. Suas vestimentas contribuíam com tal aspecto, roupas majoritariamente negras e militares acompanhadas por chapéu semelhante ao convidado, porém, claramente de uma posição mais baixa.

É possível deduzir que é egocêntrica, uma vez que há uma estampa em suas costa com seu nome "Rell" em letras bem grandes e vermelhas. Além disso, usa botas marrons exageradamente grandes que quase cobrem o seu joelho, uma aparência bem distinta para uma general.

— Veio me parabenizar, Moretti? — Rell dá um sorriso sarcástico.— Não sabia que tem tanto apreço por mim.

— Tenho uma missão. — O desmembrado responde sério.

— Uma missão? Vinda diretamente de um grande general a noite? Não sabia que sou tão necessária para o novo governo.— A ruiva mantém o sorriso irônico.

— Dois suspeitos estão rumando a sudoeste da capital...— Moretti é interrompido.

— Sudoeste? Perto de Sunderland? A filhinha do papai fugiu?— Ela ri atrevidamente consigo mesma.

A risada sarcástica é o estopim, o olhar de reprovação acompanhado a exalação do ódio do bigodudo deixam o clima mais tenso. A mão estática se levanta um pouco, um brevíssimo movimento, no entanto, a partir dele do grande general começa a se mover estranhamente, até parece viva.

Em uma disparada, desafiando a lógica e a luz, a sombra anormal avança sobre a da mulher sorridente. Com apenas um "arranhão" nas sombras, o mesmo acontece no corpo da mulher, com um pequeno corte surgindo em sua bochecha.

— Inconsequente, irresponsável e desrespeitosa. Não me surpreende questionarem tanto o seu cargo.  — Moretti a faz ficar quieta.  — Primeiramente não fale da minha filha. Sua tarefa é encontrar essas pessoas.

— Se fosse só isso, você não me ordenaria pessoalmente.— Rell passa o dedo no corte, saindo uma gota de sangue.— Devo matá-los?

— Faça o que quiser, só traga a espada que eles possuem. — O ranzinza responde enquanto tenta puxar com suas mãos de madeira um cigarro.

— Deixe-me ajudá-lo com isso.— Rell puxa a droga do bolso dele e coloca entre os dedos frios, tal ação não parece caridosa.

Após isso, ela olha para a única fraca trocha que ilumina o interior da tenda, a qual queima as últimas gotas de óleo em seu tecido já quase seco. As labaredas começam a balançar, como se quisessem sair pelos ares. Em determinado momento, tal desejo se realiza, chamas parecem dançar com o vento, girando e soltando faíscas por onde passam.

Tal espetáculo se deitam sobre o dedo ensanguentado de Rell, o qual não parece se queimar. Pelo seu sorriso, é possível deduzir ser uma demonstração força assim como ele fez. E para finalizar a pintura tão realista, um pequeno peteleco joga os últimos clarões vermelhos no cigarro de Moretti, o acendo.

— Aproveite o cargo dado pelo, Negociador.— O desmembrado se levanta após dar uma tragada em seu cigarro.— Não parece que irá ficar muito tempo nele.

— Claro! E a sua maldição? Já corroí seu corpo, e ainda fuma!— Rell o provoca mais uma vez.— Quer tanto que eu seja promovida para grande general, Morreti?

— Irei morrer pelo meu custo, não pelo cigarro.— Moretti a olha pela última vez.— E você morrerá por sua soberba.

— Hahaha! Lembrarei disso no seu enterro.— Ela ri consigo mesmo mais uma vez.— Me fale as características dessas pestes fujonas.

— Não é necessário, você vai saber que são eles.— Nesse momento Moretti abre um pequeno sorriso, algo que ela não consegue ver.— Afinal, um deles é o Wem, boa sorte.

Antes que possa haver qualquer resposta por parte dela, Moretti sai da cabana com um cigarro quase apagado em sua boca. Nesse momento, ele não parece tão cansado, até parece feliz.

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