I. Fogos

Em uma noite muito clara, as estrelas brilham no céu, porém sua luz é ofuscada pelas cinzas que voam pelo ar. Assim, a noite sombria é iluminada pelas chamas que consomem uma enorme cidade, é o fim da guerra, o Império Valôm caiu.

A devastação se concentra no centro da capital arruinada, nem mesmo as enormes muralhas puderam protegê-lo. No entanto, os subúrbios se mantêm quase intactos, uma vez que não são rodeados por muros nem guarnecidos, não valem a pólvora que seria utilizada.

O povo dessas localidades celebra com tudo que tem, principalmente com bebidas e festas humildes. A alegria em ver o castelo desmoronar entre as mais altas labaredas chega a ser desproporcional, todavia, é um sentimento válido, o expansionismo enfim acabou.

No meio das danças e cantorias, há uma pequena e suja taberna. Sua estrutura de madeira podre e quebradiça revela as más condições do estabelecimento, até mesmo o nome do local é ilegível, a tinta se misturou tanto com o mofo que se tornaram o mesmo.

Dentro do local se comemora tanto como fora, talvez até mais. Muita gritaria e risadas ecoam para além das fraquejantes tábuas. Tal celebração descontrolada deveria afastar novos clientes, no entanto, o rangir da porta revela uma nova festeira, uma jovem garota.

Ela não deve ter mais do que 17 anos, devido a sua face, entretanto, sua altura de 1,55 metro a infantiliza. O primeiro detalhe marcante são seus olhos, os quais detêm um tom de verde tão belo que parecem a mais pura das esmeraldas. Quase camuflados pelo olhar, os cabelos curtos da cor castanha são amarrados grosseiramente em um pequeno rabo de cavalo, além disso, um rosto branco recheado de sardas em suas bochechas aumenta sua beleza.

As vestes estão imundas, lotadas de terra barrenta, apesar disso, ainda é nítido seu vestido preto como o carvão, o qual é bordado com pequenas estrelas brancas de 4 pontas, um céu noturno que não pertence àquela noite cinzenta.

Em sua cintura há um simples cinto de couro envelhecido, que não parece combinar com o restante de sua roupa. Nele, uma espada estranha é presa ao redor do quadril, a primórdio, a arma parece normal, todavia, há um buraco circular na extremidade da guarda, bem próximo à lâmina. Além disso, a guarda tem um formato diferente em cada ponta.

Por um segundo, todos olham para aquela peculiar garota, a qual não usa roupas compatíveis para a região. Entretanto, não há questionamentos, dado que a celebração é mais importante naquele momento, assim, a música e a gritaria retornam rapidamente.

A jovem anda lentamente pelo pequeno salão, parece tímida ou desconfiada, por manter a cabeça baixa. Junto a isso, sua mão está perto do cabo de sua lâmina, apesar dela não demonstrar ser uma renovável espadachim.

Seus olhos agitados expõem que procura algo ou alguém, visto que observam cada pessoa sentada nas mutuadas mesas. Quando seu olhar se fixa no balcão, sua pupila parece dilatar, achou seu possível alvo, um ser amarrotado de inúmeros casacos.

O inverno espreita lá fora, todavia, seus ventos gélidos ainda demorarão a chegar, ali está alguém que não quer ser reconhecido. A única evidência de sua identidade é sua mão esquerda que não se mantém debaixo da escuridão dos tecidos, pelo tamanho é um homem.

Ao se aproximar mais, ela percebe que ele parece muito obeso, mal cabe em sua cadeira. Todavia, isso não parece desanimá-la, está convicta que lá está a pessoa que tanto procura no meio daquele caos pós-guerra.

A garota de aparência exótica se senta ao lado do oculto, tentando de todas as formas ter um ângulo melhor daquele homem até ser interrompida. Um velho gordo e suado atrás do balcão chama a sua atenção, é o dono da taberna. A jovem de olhos esverdeados leva um susto nítido ao dar um pequeno pulo sobre a cadeira, mas muda sua feição rapidamente para algo amigável.

— Vai querer algo, jovem? — O homem pergunta enquanto limpa uma caneca.

— C-claro... — A garota continua desconcertada pelo susto, mas evita demonstrar.

Nesse momento, ela olha para uma grande tábua pendurada sobre sua cabeça, nela suas letras são extremamente visíveis, diferente de fora, inclusive, parecem ter sido recentemente pintadas, provavelmente o preço subiu naquela noite. Os olhos agitados deslizam linha por linha até chegar na última opção mais barata, "Dose hidromel — 1 Bronze".

— Vou quer essa dose de hidromel. — A jovem pede após olhar a única moeda de bronze em sua mão.

O atendente se vira e começa a mexer em algumas garrafas, dessa forma, a jovem pode voltar a observar aquele misterioso ser encapuzado. Sem virar seu rosto, ela procura algum aspecto que comprovasse ser aquele que ela pensa, no entanto, não há mais informações além da mão comum e isso a preocupa.

É necessário achá-lo sem chamar a atenção, um erro poderá expô-la mais do que gostaria, basta um homem dos invasores para seu plano ser destruído. Além de que, ela já o confundiu uma vez naquela noite, errar novamente será constrangedor.

No meio de seus pensamentos, o velho volta com um pequeno copo, contido nele um líquido bem amarelado. Ao ser colocado em sua frente, ela volta com o olhar para o balcão e observa o recipiente. Apesar de seu conhecimento sobre bebidas ser praticamente nulo, ela suspeita da qualidade da bebida servida.

O que faz bastante sentido ao se considerar o lugar e por ser a mais barata do cardápio, no entanto, ela sorri levemente e agradece aquele homem pela bebida duvidosa. Então segura o copo e olha para o líquido desconfiada. Enfim, tomada por um momento de coragem, o leva até a sua boca e engole tudo de uma vez.

É doce e forte, exatamente do que não gosta. Sua mão cobre a sua boca para evitar que cuspisse de tamanho desgosto, porém, ela não tem escolha, engole seco enquanto uma lágrima escorre do seu olho.

O leve corar de sua face indica que o álcool já surte efeito, provavelmente ela não é muito acostumada com bebidas tão grosseiras. Ainda determinada, sua atenção é mais uma vez focada no homem ao seu lado, todavia, ele já não está mais lá.

O desespero é evidente naquela jovem, que faz um movimento brusco em seu corpo para achar o fugitivo. Com seus olhos atentos, ela o acha saindo pela porta do estabelecimento.

A simples moeda de bronze em suas mãos é arremessada com força em direção ao dono, após isso, ela salta de seu acento e quase cai logo em seguida. O seu equilíbrio volta em um segundo, então ela corre em direção à porta enquanto a taberna toda observa aquela cena cômica.

— ESPERA! — A garota grita desesperada ao passar pela entrada.

Fora do estabelecimento, ela percebe uma multidão que cerca a taberna, estão ali para aproveitar a música sem que paguem por uma bebida inflacionada. Por isso, a jovem mexe sua cabeça desesperadamente, procurando pelo homem tão misterioso.

Talvez por milagre, ela o nota descendo a rua que leva para fora da cidade, ele não pode fugir. Por causa disso, ela corre no meio da multidão, se esbarrando com um bêbado uma vez ou outra, o que dificulta enormemente a árdua busca.

O som da música junto ao do queimar da cidade diminuem conforme se afastam, a multidão também se dilui, sobrando assim, somente ela e ele no meio da escuridão. O fim do subúrbio já não está tão distante, a estrada para além da metrópole arruinada já pode ser vista toda remexida devido ao avançar dos invasores.

Completamente sem folego, a jovem se esforça ao máximo para triscar naquele homem, até que em fim, ela consegue agarrar um casaco.

— Eu... preciso... falar... com... você! — A jovem diz cada palavra entre suas respirações

O homem a ignora, continua andando, mesmo que a menina tentasse o segurar sem sucesso.

— Ei!... Não... me IGNORA! — A de olhos verdes grita ao recuperar um pouco o ar em seus pulmões.

Novamente, não há uma resposta, palavras ou ordem vazias não o pararão. O medo surge em seus pensamentos, ele não pode ir embora, tudo o que sacrificou até aquele momento será em vão, isso a desespera.

Com tremor do próprio fracasso, a jovem puxa sua espada presa em seu cinto e golpeia amadoramente as costas daquele ser tão misterioso. Ele para.

A carne se mistura com o tecido dilacerado, o sangue escorre pelo ferimento mal-executado, manchando de vermelhos os casacos. No entanto, algo inexplicável corre em seguida, cada gota do vermelho parece enrijecer conforme deslizam pela pele, em determinado momento, sua viscosidade some complemente a tal ponto, que se assemelha a um sólido brilhoso, como um pequeno cristal.

Nesse ponto, as tão belas joias de sangue começam a desafiar a gravidade, elas lentamente sobem corpo acima em direção ao braço direito daquele ser. Em sua trajetória, os vermelhos brilhosos entram pelas diversas camadas de casacos, sumindo sem deixar nenhum rastro de sangramento, nem mesmo os tecidos foram manchados.

O olhar de espanto e de fascínio daquela jovem não a deixa notar a ausência do corte que causou, é como se o golpe nunca o tivesse acertado, todavia, ele foi real, uma vez que os inúmeros casacos continuam dilacerados.

Perplexa, a jovem limita-se a guardar sua espada já não ensanguentada. Finalmente ela achou o que tanto procura, ela achou um ser amaldiçoado.

— F-finalmente eu te achei... — A de olhos verdes parece ansiosa e preocupada, não parece que ela fez um discurso.

— Vá embora. — Ordena rispidamente o encasacado.

— E-espera... eu vim aqui te ajudar! — A jovem levanta o braço para o tocar, mas parece desistir da ideia.

— Não preciso de ajuda. — O homem começa a andar. — Saia da cidade antes que te achem.

— M-mas... — A garota parece desesperada. — Não vá ainda! E-eu tenho essa espada, talvez ela possa te ajudar!

O oculto vira levemente sua cabeça para ver a arma na cintura da jovem, todavia, sua face permanece no escuro. Entretanto, uma enorme explosão acontece no coração da antiga metrópole, junto a ela, um enorme estrondo acompanhado de um clarão de luz.

O rosto dele é iluminado por um mísero instante, no entanto, ela o observa com muita atenção. Sua face é robusta e forte, bem desproporcional à sua aparente altura, além disso, tanto a sua barba grossa quanto seus cabelos são completamente avermelhados quanto uma gota de sangue.

A jovem garota encara os olhos daquele homem, suas pupilas se assemelham ao cristal que viu mais cedo, após isso, o escuro retorna.

Os casacos começam a balançar naquela noite sem vento, o rosto já encoberto daquele homem começa a subir, ele estava curvado esse tempo todo. Ao ficar total ereto, sua altura deve ultrapassar os dois metros e trinta centímetros, um homem gigante. A grotesca diferença de altura não parece surpreender a garota, ela já conhece a imensidão daquele homem.

— Só uma arma antiga. — A voz daquele homem não suaviza.

— Ela é mais do que isso! — A jovem retruca. — Dizem que ela tem ligação com maldições!

— Ela não pode me ajudar. — O ruivo diz se virando para a estrada novamente.

— Você não pode afirmar isso! — A jovem começa a suar frio ao ver o afastamento dele. — Me escuta, Wem!

— Posso, eu a conquistei. — Wem vira seu rosto obscuro. — Abandone isso, você não pode usá-la.

O medo domina o corpo daquela jovem, tudo que planejou, tudo com o que sonhou está desmoronando em frente aos seus olhos, assim como o seu passado desmorona em suas costas. Ela não sabe o que fazer, mas seus pensamentos sem origem a forçam a fazer algo, todavia, sua cabeça confusa não forma nenhum argumento até que suas pupilas dilatam.

— Te libertarei da sua MALDIÇÃO! — Grita a garota com todo o seu fôlego.

O andar do encapuzado se encerra, um silêncio toma o local por alguns segundos. Quando o vento decide assoprar no meio daquela imensidão de caos, as pupilas da garota voltam ao normal.

— Como? — Wem questiona com uma voz grossa.

— E-então... — A garota pensa um pouco. — Eu quero reunir o maior número possível de seres amaldiçoados! Para derrotar o mestre das maldições! — A garota mexe os braços com empolgação.

— Isso não existe. — A voz dele parece menos grossa. — Nenhum dos infortunados sairá em busca de uma canção infantil.

— Eu sei que são só canções, minha mãe as contava quando eu ia dormir. — A de olhos verdes aperta seu vestido imundo. — Mas ele tem que existir... alguém tem que ser responsável por fazer isso você... por fazer isso com todos vocês!

— ... Você é só uma menina. — Wem responde após alguns segundos. — Vá viver sua vida.

— Se lembra daquele dia? Aquele que você me deu uma flor. — A garota abre um pequeno sorriso, como se tivesse uma boa lembrança. — Eu não fiquei com medo, né?

— Não ficou. — A voz dele não parece mais tão hostil.

— Eu não quero que você fique sozinho de novo. — A jovem olha para o lado. — Eu não quero ficar sozinha...

Longos minutos se passam em silêncio no meio da escura noite. As labaredas lentamente se abaixam na cidade, quase não resta nada a se carbonizar. Devido a isso, algumas estrelas fracas surgem no céu noturno, finalmente o horizonte se assemelha ao vestido daquela garota.

— Não sente nada? — Wem questiona.

— Agora? Só sinto um pouco de frio! — A jovem abre um sorriso, mas logo o fecha ao perceber que ele ficou em silêncio.

— Se eu recusar, o que irá fazer? — Wem se vira e observa a cidade queimar.

— Eu não sei. — A garota o olha. — Eu não pensei em outro plano sem um companheiro.

Outro silêncio toma o ambiente, após alguns segundos, a jovem se vira e observa as chamas com o brutamontes. Aquelas labaredas consomem o passado de ambos.

— Aceito. — Wem fala ao mudar seu olhar para ela.

— AÉ! — A de olhos verdes dá alguns pulinhos de felicidade. — Fiquei com medo que não aceitasse! Agora somos uma equipe!

— Onde ele está? — O encapuzado não parece ter a mesma animação.

— Quem? — A jovem pergunta confusa.

— O mestre das maldições. — Wem responde como se a pergunta fosse óbvia.

— Ah! Eu não faço a menor ideia. — A garota abaixa a cabeça como desculpa.

— Qual seu nome mesmo? — Wem pergunta após um suspiro.

— Meu nome? Eu me chamo Aurora! Se lembrou? — Responde a garota com um enorme sorriso.

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