02

Em que momento de sua vida ela havia se perdido? 

Esse foi o questionamento que rondou a mente de Selene durante dois dias consecutivos. 

Logo após ter acertado um tapa no ruivo, que nem se quer demonstrou abalo com isso, ou pareceu ter ficado furioso com ela, recolhendo o prato vazio e a deixando sozinha com seus próprios pensamentos. A mulher se viu afundando ali mesmo, escorando suas costas na parte de proteção da proa do navio, onde ela puxou os joelhos pra cima e os abraçou, se encolhendo numa bola em suas vestes negras, tão escuras quanto a escuridão que havia em seu coração. 

Filha do mar. 

A última vez que ouvira isso, foi três anos antes, quando havia se encontrado com Barba Branca. O Yonkou, um dos Piratas mais velhos e mais poderosos de toda a Grand Line, que sempre fazia questão de ressaltar isso pra ela, por mais que soubesse o quanto Selene odiava ser comparada com Piratas, ele não se importava em esfregar isso na cara dela, da forma mais precisa possível. Como se repetir milhares de vezes fosse ser o bastante para que ela finalmente aceitasse a verdade. 

Não dava para fugir de seu sangue. 

Mas ela odiava seu sangue. Selene Katsaros não era burra. Ela sabia muito bem de quem era filha, apesar de ter passado uma boa parte de sua juventude dizendo para si mesma que ela só tinha uma mãe. Não podia ignorar o fato de que ela sabia quem era seu genitor. Sua mãe ainda em vida, nunca escondera isso dela, sempre falando com muito orgulho e paixão, de quem Selene era filha. De início ela amava isso, ela amava ouvir suas mãe contando as histórias de seu pai, todas as aventuras que ele viveu e o quão forte aquele homem era, desbravando os mares, lutando contra o Governo Mundial e a Marinha, sendo o herói dos pobres. Na cabeça da pequena garota de quatro anos, aquele homem era um herói. E ela sentia orgulho em dizer que era filha dele, por mais que as pessoas da ilha onde ela nascera parecessem odiá-la por isso. Ela ainda insistia em dizer aos quatro ventos, que era filha do Pirata mais poderoso do mundo. 

Até o dia em que sua mãe morreu. 

A lembrança da mulher que tanto amava, caída sem vida diante de  seus pés. Morta pelas mãos de homens que se diziam ser inimigos de seu pai, foi o estopim, para que a pequena Selene naquele instante, ignorasse totalmente a admiração que um dia sentira por um homem que ela nunca nem se quer havia visto pessoalmente, exceto pelos cartazes de procurado que vagava pela ilha. 

Naquele dia, ela prometeu para si mesma, que iria ignorar seu sangue Pirata e que mataria todos aqueles que tivessem esse mesmo sangue. Ela iria eliminar seu pai, o homem que abandonou sua mãe antes mesmo dela nascer e que era o responsável pela morte da mulher. Iria destruir todo o legado que ele construiu e afundar aqueles malditos bastardos filhos do mar. 

Durante os dois dias que se decorreram depois dela finalmente sair da cama. Selene não havia mais se encontrado com Shanks, o ruivo havia ficado totalmente recluso em sua cabine, repassando recados por seus subordinados. No final do mesmo dia, Benn havia lhe entregue uma pilha de roupas femininas, dizendo que eram algumas das roupas que Tycke havia deixado no navio antes de sair em uma expedição. 

Selene se lembrava bem das filhas do ruivo,  Tycke e Uta, as duas irmãs inseparáveis, que foram afastadas pela atrocidade do destino. A última vez em que viu Uta ela era bem pequena, mas Tycke ela ainda se lembrava de ter encontrado dois meses antes, em uma ilha próxima a saída da Grand Line, onde ela fizera a garota comer uma Akuma No Mi. Não por mal, Selene acreditava no potencial da garota e também nutria um certo  tipo de carinho pela mesma, já que ela tinha a mesma idade de alguém muito importante pra ela. 

As roupas da garota ficaram mais curtas do que Selene gostaria de admitir para si mesma, mas ela não tinha nada consigo naquele navio. Não havia ficado nem ao menos com sua espada, objeto ao qual ela estava preocupada em como iria recuperar. Considerando que deveria ter deixado cair na ilha onde ela e Shanks se encontraram, pouco antes da mulher desmaiar. 

Na manhã seguinte, depois de tomar um banho e vestir um dos vestidos emprestados, repuxando o máximo que podia da saia rodada, que mal lhe cobria um terço das coxas. Ela respirou fundo e saiu do quarto do ruivo, onde ainda vinha passando as noites, já que o mesmo nem se quer lhe cobrara de volta. Ele nem se quer aparecia diante dos olhos dela. E a mulher começou a cogitar que talvez ele a estivesse evitando, já que ela tinha tido a audácia de agredi-lo em seu próprio navio. 

Era hora do café da manhã, ela subiu pro andar de cima e seguiu diretamente até a cozinha, onde todos os homens se aglomeravam naquele espaço pequeno para comerem. A mesa estava cheia de comida, desde a pães, até mesmo bolos, chás e sucos de todos os sabores. Selene sentiu sua barriga roncar ao sentir o cheiro bom, mas ela parou na soleira da porta quando os olhares de quase toda a tripulação se dirigiram a ela. 

Estava acostumada com o fato de causar medo em qualquer Pirata que a visse, mas naquele momento, a maioria daqueles homens estavam olhando pra ela de cima abaixo, como se não passasse de um pedaço de carne. E isso a fez sentir repulsa, uma sensação de enjoo mesclado a ódio que ia se intensificando a cada segundo em que eles nem se quer se esforçavam para disfarçar o desejo sujo em seus olhares. 

— Se alguém olhar pra ela mais uma vez, eu vou garantir que vocês sejam amarrados no mastro do navio e que seus olhos sejam devorados pelas gaivotas. 

O som da voz rouca e imponente ressoando por de trás dela, fez com que todos os homens voltassem a se concentrar em suas refeições. Ignorando totalmente a presença dela, o que fez Selene voltar a respirar novamente. 

Benn, Yasopp e Lucky começaram a rir do outro lado do cômodo, onde os três estavam sentados sobre barris de rum enquanto comiam. 

O único problema, era que não apenas os tripulantes do Red Force haviam sido atingidos pela voz grossa de seu capitão, mas também a mulher que se esforçou para não se encolher ao sentir a presença dele tão próxima de seu corpo. Ela quase podia apreciar o calor do ruivo em suas costas, se não fingisse que aquilo era apenas o calor da manhã. 

O homem passou por ela, finalmente adentrando a cozinha e se aproximou da mesa para se sentar em uma das cadeiras vagas que tinha ali. Um outro Pirata se levantou da cadeira ao lado e apontou para que Selene se sentasse. 

Ela não queria estar perto de Shanks, não depois de ter passado dois dias sem vê-lo devido a última conversa de ambos. Mas ela também não poderia se comportar com tanta imaturidade e estava com fome. 

Se aproximou da mesa e se sentou ao lado do ruivo, o mesmo puxou uma caneca e sem dizer nada, nem se quer direcionar seu olhar a ela,  a encheu com chá quente. 

— Obrigada. — Ela o agradeceu quase que num sussurro, antes de pegar a caneca com as duas mãos e apreciar a bebida fumegante. 

Selene amava chás, de todos os tipos, desde que se entendia por gente, era sem sombra de dúvidas a sua bebida favorita. E ela se surpreendeu ao perceber que ele ainda se recordava disso, mesmo que já tivessem se passado anos. 

Ela pegou uma fatia de bolo e começou a comer. Percebendo que a cozinha, que antes dela chegar parecia bastante agitada, com risadas e conversas altas, agora, estava mergulhada em um perturbador silêncio. Ninguém ousou dizer uma palavra se quer, até mesmo Shanks estava quieto do lado dela, algo que ela jurava ser impossível de acontecer em relação aquele homem. 

Mas como sempre, ele era uma incógnita pra ela. 

Conforme os Piratas terminavam de comer, eles iam se retirando da cozinha, até sobrar apenas os comandantes e o capitão. Que diferente dos outros, não pareciam tão incomodados assim com toda aquela tensão que pairava no ar. 

— Caramba, vocês dois juntos sabem como estragar uma refeição. — Yasopp comentou em meio a uma risada, que Lucky o acompanhou. 

— Poderiam ao menos fingirem serem civilizados quando estão na presença um do outro. — Benn resmungou, enquanto acendia um cigarro. 

— Se alguém não tivesse decidido me salvar, isso não estaria acontecendo. — A Katsaros se viu resmungando, enquanto olhava pro ruivo ao seu lado. 

— Certo, da próxima vez eu deixo você morrer, então. 

— Seria vantajoso para ambas as partes. 

— É a primeira vez que eu concordo com uma merda que sai dessa sua boca. 

— Ei, ei, ei. Da pra pararem de brigar? — Yasopp interviu, descendo de cima do barriu e se aproximando da mesa. — Eu sei que a situação não está sendo boa pra ninguém. Também não concordamos com sua presença nesse navio, Selene. Ainda mais pelas coisas que você faz, mas isso não quer dizer que iremos trata-la mal. Enquanto estiver sobre a jurisdição do capitão, você é nossa visita. E Shanks, deixa de ser um idiota. Não é como se vocês dois fossem estranho, todos aqui presentes nesse cômodo conhecem a história de vocês. 

Selene encolheu seus ombros quase que involuntariamente. 

Por mais que sempre ficasse escrachado que ela e Shanks tinham uma história. Odiava ouvir isso da boca de outra pessoa. 

— Vocês dois já são adultos, acho que podem lidar com algumas semanas na presença um do outro. Não me façam ter que atirar em vocês. — Benn completou antes de sair da cozinha. 

Lucky e Yasopp logo saíram também, deixando Selene a sós com o capitão, que ficou longos segundos em silêncio ao seu lado. 

Benn tinha razão, ela poderia lidar com aquilo. Depois, ela iria embora assim que pisassem na primeira ilha e poderia simplesmente passar mais longos anos sem ver a cara do ruivo, assim como fizera da última vez. 

Mas enquanto estivesse ali, ela sabia que teria de engolir todo seu orgulho e tentar transformar aquele pesadelo, na melhor convivência possível. 

— Podemos fazer um acordo? — A Katsaros recomeçou longos minutos depois. 

— Que tipo de acordo? — Shanks a encarou com uma sobrancelha arqueada. 

— Prometo não matar ninguém da sua tripulação, se você nunca contar que eu estive nesse navio. 

— Como sempre, você é maravilhosa em fazer acordos. — Ela pode notar de longe o deboche na voz dele, o que a fez engolir uma resposta bem afiada, tentando não dar trela para as provocações do ruivo. — Eu não me esqueci que você mata Piratas, obviamente que eu também não quero manchar a reputação da minha tripulação, ao permitir que alguém descubra que eu ajudei você. 

— Ótimo. — Ela assentiu, se sentindo mais confortável em saber que ambos concordavam em algo. Houve mais um longo período de silêncio constrangedor, onde nenhum dos dois parecia querer achar coragem para se levantar daquela mesa. Antes de Selene emendar em um novo assunto. — Como a Tycke está? 

— Quer saber como ela está lidando com as coisas depois de você força-la a virar uma usuária de Akuma No Mi? 

— Falando assim, nem parece que você também concorda que foi a melhor coisa que eu poderia ter feito por aquela garota. 

Ela viu Shanks soltar um longo suspiro. O Pirata ruivo passou a mão sobre o rosto, destacando um certo cansaço. Só então ela pode reparar no conjunto escuro abaixo de seus olhos, ele não parecia estar dormindo muito bem. 

— Eu sei que você fez isso na melhor das intenções. Mas ela é minha filha, Selene. Você não tinha que se meter nisso, não era pra ter acontecido dessa forma. 

— Se eu não fizesse, você também não iria fazer. 

— A forma como eu decido as coisas pras minhas filhas, não te diz respeito. 

— Você é um péssimo pai, sabia? — Ela o provocou, sustentando o olhar ameaçador que o ruivo lhe direcionou com aquela frase. 

— Não, eu sou um péssimo Pirata, mas um péssimo pai eu sei que não sou. 

Shanks se levantou da mesa no mesmo instante, dando as costas para a Katsaros enquanto seguia em direção a porta. 

— Foi por ser um bom pai que você abandonou a Uta e agora simplesmente mandou a Tycke pra longe? 

Ela não se virou para encara-lo, mas ouviu os passos do homem cessarem antes de alcançarem a porta. Esperou por uma resposta, mas logo ele voltou a andar novamente, deixando a mulher sozinha naquela cozinha. 

Selene abaixou o olhar sobre a sua caneca vazia, deixou um longo suspiro escapar por seus lábios. 

Ela falava de Shanks, mas não era como se ela pudesse dizer que também era uma boa mãe. Sem sombra de dúvidas, ela era a pior mãe do mundo, muito diferente do que sua mãe havia sido com ela. Como poderia acusar o ruivo de abandonar suas filhas, quando ela também havia feito o mesmo com a sua?  Por mais que soubesse que havia sido a melhor decisão a ser tomada no momento. 

Ela estaria bem mais segura longe dela e de qualquer coisa que pudesse arrasta-la para um destino cruel, como aquele que ela e Shanks eram obrigados a trilhar. 

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