CAPÍTULO 8
A BRASÍLIA AMARELA
25 de Dezembro de 2022.
ESTAVA DE PORTAS ABERTAS.
Uma fumaça cinza escura espiralava do motor, no local onde tinha colidido com um pinheiro enorme. A lataria toda estava amassada, mas o motorista e o passageiro podiam ter saído intactos, talvez. A placa traseira tinha ficado pendurada por um único parafuso, e o porta-malas estava escancarado. O carro caíra em uma valeta à beira da estrada, e eu percebi que uma das rodas traseiras ainda girava, livre. Bateu agorinha, pensei comigo mesmo.
— Quebraram tudo — disse um dos militares, mas naquele ponto não conseguia vê-lo.
— Baixo — disse a comandante. — Fale mais baixo.
— Os vidros, tudo. Veja — o homem agora sussurrava. — Isso não é do impacto.
— Estão contaminados — determinou ela.
A floresta de pinheiros se adensava dos dois lados da estrada, e samambaias enormes preenchiam o ocaso entre os troncos. Isso só me deixava mais nervoso. Eu e Pat nos entreolhamos. Se antes ela já estava com cara de poucos amigos, agora...
Foi então que veio o primeiro tiro.
Naturalmente, eu e Pat nos abraçamos e entrelaçamos os dedos. Quando encostei nela, percebi como seu coração batia em descompasso, igualzinho o meu.
— O que está acontecendo? — perguntou ela.
O combate acontecia lá fora. Alguém estava no meio da mata, armado previsivelmente, mas eu só via uma sombra esguia e distorcida. Até aí, poderia também ser um demônio. Tia Suzana saberia dizer mais a respeito disso, se demônios usavam carabina e coisas assim, mas enfim. Fato era que o homem de tocaia estava armado, e tinha disparado o primeiro tiro.
E fora certeiro.
Percebi que acertara alguém pelos gemidos de dor. De outro modo, não seria capaz de identificar, porque os policiais estavam em uma posição em que o campo de visão não me favorecia. Acontece que a retaliação veio logo em seguida, com uma chuva de disparos na direção da mata, saraivando as folhas das samambaias e desferindo estilhaços nos pinheiros. Escutei um milhar de pássaros abrir voo sobre minha cabeça.
E, de repente, o homem saltou do meio da mata com uma faca na mão, e ele tinha perdido todo o critério de ser.
Já era um idoso de uns 70 anos, com um anel de cabelos brancos que cobria as orelhas e uma barba longa e enovelada. Vestia-se como um fazendeiro, com as roupas sujas e remendadas, e seus olhos e rugas carregavam o conhecimento extenso daqueles que já viveram muito e sofreram mais. Caminhava torto, o pobre homem, mas toda a velhice havia desaparecido do seu corpo. Tudo o que recendia nele era insanidade.
— Seus moleques! — gritava ele. — Seus moleques! Seus moleques!
E foi, com faca e tudo, para cima deles.
Presenciei uma bala acertar-lhe o ombro esquerdo. O velho não parou mesmo assim, e a partir daí desviei o olhar, porque ele empastou-se de vermelho, e o sangue embrulhava o meu estômago. Pat estava pálida como a geada àquela hora, e nós dois ficamos simplesmente estáticos e em completo silêncio, ouvindo os gritos e a resolução do conflito ali mesmo, por um instante interminável. Quando tudo ficou em silêncio, chegou-nos a resolução do problema.
O comandante caminhou até o camburão e abriu a porta.
— Venham — disse ele.
Deus sabe o quanto fiquei agradecido de poder esticar as pernas e a coluna, mas não estava preparado para o cenário que vi a seguir. Os dois policiais jaziam mortos, um pelo tiro, outro pela faca. O velho assassino jazia morto entre os dois, com uma bala na cabeça. Tentei fingir o máximo possível que não os estava observando. Fiz o sinal da cruz, só para garantir.
— Vocês vão seguir no nosso carro agora — o comandante falou.
— Verifique a brasília — disse a mulher com voz autoritária. — Venham comigo.
O comandante caminhou pé ante pé na direção da brasília. Estava evidentemente desconfiado, e não era para pouco. Quando chegou aos vidros quebrados dos bancos traseiros, retesou-se.
— Senhora — disse ele. — Há duas crianças.
A comandante arqueou as sobrancelhas.
— Vivas?
O homem apertou os olhos e aproximou o rosto.
— Qual o seu nome, rapaz? — disse ele.
A criança lá de dentro falou alguma coisa que não consegui ouvir.
— Não mostre os dentes para mim, rapaz.
O rapaz falou, irritado, outra coisa mais.
— Morreu — respondeu o militar. — E tem mais. Tire a língua pra fora. Abra os olhos. Bem. Abra bem os olhos.
O comandante colocou uma máscara que tinha no bolso e inclinou-se para dentro do carro, pelo buraco da janela quebrada.
— Agora recoste-se. Vou colocar a mão na sua nuca e empurrar. Um instante.
E, pelo que pude perceber, foi o que ele fez.
— E então? — inquiriu a comandante. Ela parecia muito agitada.
— Limpo.
— Pode levar — disse a mulher. — Uns 14 ou 15 anos, talvez?
O comandante enveredou-se para dentro do carro.
— Quantos anos você tem? — ele perguntou.
Ao que teve a resposta, confirmou a idade à mulher: 15 anos.
— Veja o outro — continuou ela.
— É um bebê.
O menino balbuciou alguma coisa.
— Irmão dele — repassou o militar. — Um bebê. Não fez um ano ainda.
— Inspecione — ela voltou a falar, rígida como uma corda.
O militar passou um bom minuto inclinado para dentro do carro. Não se ouvia som algum, nem mesmo um ruído. Poucos instantes depois, ele se virou para a militar, e toda a satisfação e brilho tinham desaparecido do seu rosto.
— Não consigo fazer Kernig. Mas a nuca está rígida.
A militar inspirou.
— É difícil. Somos pais. Mas você sabe.
— Senhora...
— Você sabe.
Fez-se mais um instante de silêncio.
— Mas... — o militar tentou novamente.
Foi então que ela soltou, arfando:
— Vamos, general. Mate.
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