CAPÍTULO 6

MORTE

25 de Dezembro de 2022.

PAT ERA A COISA mais preciosa que alguma vez eu teria a oportunidade de contemplar. Ela era exatamente da minha altura, magrela, com olhos castanhos brilhantes cheios de si, e um cabelo marrom que caía-lhe tão bem que às vezes eu achava que ela sempre fora feita para cabelos compridos. Não era amiga das joias, das maquiagens ou de coisas muito pomposas; eu adorava a simplicidade dela. Seu rosto era fino e longo, cheio de sardas, e seu sorriso conseguia ser tão bonito quanto o da minha mãe, embora não fosse tão ousado. Suas mãos eram pequenas e frágeis, sempre frias, mas acertavam beliscões em mim mesmo assim. Suas roupas oscilavam com o seu humor, ora cinzas como o inverno e ora coloridas como a primavera.

E como eu adorava o seu humor! Era irreverente, ousado, tão instável quanto uma pedra em um penhasco, e pouco havia de se fazer para torná-la irritada e brigar com ela (geralmente as pequenas coisas acabavam por estressá-la mais do que as grandes). Sorria facilmente também, e as brincadeiras e piadas vinham a ela com uma naturalidade espantosa, de modo que estar com Pat era estar feliz o tempo todo. Não chegava a ser extremamente grudenta e carinhosa, mas demonstrava amor quando deveria demonstrar. E eu amava cada átomo dela.

A primeira vez na vida que vi Pat foi quando eu tinha uns 5 ou 6 anos, no Fundamental. Não posso dizer que foi amor à primeira vista; longe disso. Eu era um menino ranhento que estava preocupado em brincar em morros de areia e comer chocolate, e o único amor que eu conhecia era o dos meus pais comigo, e eu estava bem com isso. Entretanto, sabia que um dia teria uma namorada, e Pat sempre foi a garota ideal na minha mente. Ela era a minha namoradinha, desde o Fundamental, embora eu não soubesse, essencialmente, o significado de amar.

Levamos as coisas desse jeito, nos abraços, nos beijinhos inocentes e nas piadinhas entre amigos que sempre faziam eu corar, mas até aí tudo parecia normal. Eu ainda não fervia por dentro.

Pat me fez ferver quando nos beijamos de verdade pela primeira vez, num dia terrível de inverno, depois de tomarmos um café, apenas eu e ela, descompromissados às 5 da tarde. Estávamos nas férias de Julho da escola, e tínhamos decidido, com um grupo de amigos, ir ver uma das nascentes do Terceiro Rio. Cada um agarrou um caminho na volta para casa, e de repente eu e Pat percorríamos juntos, sozinhos, a rua silenciosa que levava à lanchonete. Não lembro de quem fora a atitude de dar as mãos (possivelmente fora dela, porque ela sempre tinha mais coragem que eu), mas algo em nós dois tinha sido completo, selado, com aquele aperto. Minhas mãos suavam, mas as dela também, então eu entendera que era normal.

Depois daquele beijo e de olhar firme nos olhos dela, compreendi que eu a amava de verdade. E então senti-me queimar. Fácil, suave e delicado, o amor preencheu o meu peito, e fez-me compreender o que era amar.

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Não é surpresa eu dizer, então, que fiquei destruído quando vi Pat daquele jeito, desamparada, na varanda de casa. Era como um vaso de cerâmica quebrado; era como uma flor faltosa de pétalas; era uma praia sem mar, um verão sem sol, um anjo sem asas. As lágrimas não cabiam à Pat; ela era a Garota-Sorriso. O tremor na sua mão, o modo como ela puxava os cabelos com força e os bagunçava, nada daquilo era ela. E ela negava, negava, negava com a cabeça, e negava de novo.

Dei mais um passo.

— Não — disse ela, com a voz abafada pela máscara. — Se afaste.

— Pat...

— Mercúrio, se afaste. Por favor.

Eu não tinha entendido. Ainda não tinha entendido. Era um absoluto idiota que não tinha entendido.

— Se é por causa...

— Ele levou a minha mãe, Mercúrio. Ele levou embora a vida da minha mãe — Pat não queria encarar-me. Seus olhos perscrutavam o chão, e nada encontravam. — Você consegue...

— Pat...

— Saia de perto. SAIA!

— Eu...

— Devo estar contaminada também, Mercúrio — ela disse por fim, entre soluços.

— Dane-se o vírus, Pat — retruquei eu com delicadeza, quase suspirando as palavras. — Deixe eu te dar um abraço.

E eu dei. E, de certa forma, selei o meu futuro para sempre.

Confortei-a como pude, com um abraço longo como a noite. Ninguém falou nada, e eu fiquei agradecido por isso. Não sabia mesmo o que falar. Nunca fui bom com isso, na verdade. Mas era bom em abraçar. E por isso fiquei ali, confortando ela, acariciando seus cabelos sem pretensão alguma a não ser querer fazê-la bem. Pat chorava em profusões, soluçando, e só sabia repetir o nome de sua mãe, às vezes alto, às vezes baixo.

Mas, de repente, Pat recompôs-se, e ficou em um silêncio sepulcral. Afastou-se de mim, recolheu as lágrimas, limpando o rosto com as mangas do pijama. Levou a mão ao bolso.

— Tenho que ligar pra polícia — disse ela. Percebi que seus dedos tremiam, e parecia difícil achar a orientação certa do smarthphone.

— Quer que eu faça isso? — perguntei.

— Não. Eu consigo — ela ligou o celular. A luz iluminou seu rosto, e eu pude ver que o elástico da máscara tinha marcado suas bochechas com um traço vermelho. — Merda. Qual é o número?

— 190? — disse, sem muita certeza.

— Sim — ela confirmou.

Mas não precisou ligar para ninguém. Um instante depois, escutamos a aproximação de veículos pela estrada, e as luzes baixas dos faróis penetraram pela mata de pinheiros e cedrinhos, caminhando enquanto os carros avançavam. Os dois vinham um atrás do outro, mas mantinham certa distância, como se não quisessem ser associados em conjunto. O que dominava a fila era um branco, com quadriculados vermelhos e o brasão de Três Rios estampado na porta: este era o carro da polícia. Notei imediatamente que, mesmo possuindo sirene, ela não vinha ligada, e nem o carro emitia alarme. Achei que fosse por conta da missa, mas mais tarde concluí que não.

O segundo carro, que vinha há uns 50 metros do primeiro, era um poderoso automóvel militar, com a camuflagem do exército, muito sujo e puído, e com o dobro de faróis quando comparado à viatura. Eu nunca tinha visto um carro militar em Três Rios, fora nos períodos de Alistamento, então só aquilo já havia me despertado desconfiança. Você perceberá futuramente que eu sou desconfiado até os ossos.

Eles estacionaram no gramado ao lado da casa de Pat, entre a parede e o muro vivo pelo qual eu vi o Demônio surgir pela primeira vez. Do carro branco desceram dois policiais, um homem bastante forte, que deveria ter uns 40 anos, de barba escanhoada e pele preta, com armamento nos cintos, e um espadaúdo de uns vinte e tantos, já careca, de olhos profundos e tristes. A motorista do carro do exército era uma mulher baixa, loira e de nariz pontudo, com os ombros largos. O acompanhante ao lado era um homem muito alto, forte e que usava óculos, com centenas de estrelas no peito. Ambos os militares usavam farda.

Eu agarrei a cintura de Pat, e nós dois observamos, em silêncio, as quatro autoridades. Todos eles usavam máscaras N95, e isso já era também uma surpresa: eu tive a leve impressão que os militares foram os primeiros a abandonarem a máscara quando a pandemia abrandou.

— Boa noite — o homem com muitas estrelas no peito falou. — Vocês ligaram pra alguém?

Pat pigarreou.

— Íamos ligar para vocês agora mesmo.

— Ótimo — o homem olhou o horário no relógio de pulso. — Os dois vão ter que vir com a gente.

Eu percebi que Pat ficou tensa.

— Alguém matou a minha mãe. Fugiu por ali — e ela apontou.

Os policiais se entreolharam, e o comandante do exército inspirou fundo e fitou o chão.

— Eu sei. Vão ter que ir com a gente prestar esclarecimentos.

— Prestamos por aqui — disse eu, teimoso. — Se vocês correrem pelo meio desse mato, talvez ainda consigam...

— Sardanha — interrompeu o comandante — entregue a ele.

Um dos policiais assentiu e foi até o banco da viatura. Voltou de lá segundos depois e entregou um item embalado com plástico para o militar.

— Esse é um procedimento padrão — disse o comandante do exército, e então atirou a mim uma máscaras N95, que caiu aos meus pés. — Coloque.

Eu olhei para o embrulho e hesitei. O silêncio pareceu ferver Pat por dentro, até que ela não aguentou.

— A minha mãe está morta, seus filhas da puta! Eu não sou a porra de uma criminosa!

A mulher que acompanhava o grupo retirou da cintura uma arma, engatilhou e apontou para nós no mesmo instante.

— Isso é desacato — disse ela. — Coloque a máscara, garoto. Imediatamente, ou teremos que botá-la em você à força.

Coloquei-a. Não que tivesse medo, mas... Enfim!

— Ótimo — disse o comandante. — Revistem eles e levem.

E assim foi feito. Eu via no rosto de Pat como ela estava revoltada, mas seus olhos mantinham-se marejados. Os policiais retiraram da gente os nossos celulares e conduziram-nos, tal como dois criminosos, para o camburão da viatura. Não usaram algemas, mas parte de mim ficou tentado a fingir uma fuga para ver se seria contido. Estava me incomodando o fato de eles evitarem o máximo possível tocar na gente.

— Não matamos ninguém — disse eu por fim.

O policial mais novo nos olhou com alguma espécie de cinismo, e eu acho que ele sorria, por trás daquela máscara azul.

— É claro, fofinho. Ainda não. Mas talvez daqui uns dias possam tentar.

E fechou a porta do camburão sem nenhum preâmbulo.

Eu sentei com as pernas encolhidas, de frente à Pat, que recusava o meu olhar. Ela preferia fitar as próprias pernas, e tudo bem com isso. Ainda chorava, a pobre Pat, mas mordia o lábio (igual a mim), indicando que estava nervosa. Quando a viatura partiu, alguns minutos depois, olhei pelos buraquinhos da lataria lá para fora, e percebi que a velha já não estava mais no ponto de ônibus. A missa ainda rolava, intermitentemente, na igreja, com o coral à toda.

Foi então que saquei que poderia ter sido a velha a chamar a polícia, e concluí que fora por isso que eles chegaram sem aviso nenhum. Ora, pensava comigo naquele momento, será que a velha falou alguma coisa para tentar me incriminar? Fiquei culpando ela pelo caminho, e me chamando de burro, pensando em como era descabido alguém ser levado para interrogatório sem ter culpa alguma no caso.

Naquele momento eu não sabia, mas eu não estava sendo levado para interrogatório nenhum. Estava sim sendo sequestrado, e ainda por cima, correndo um risco enorme de ser morto.

Pelo menos eu seria morto com Pat ao meu lado! Ah, que piada a mente dos jovens!

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