CAPÍTULO 4

O DEMÔNIO

24 de Dezembro de 2022. 

— EU DEVERIA CONHECER a senhora?

— Vi você nascer, filho. Era vizinha. Mas já não sou mais. Perdi... ah, não importa.

Eu às vezes me pergunto quem daquela maldita cidade não tinha me visto nascer. E queria muitíssimo entender o que o termo "ver nascer" significaria. Não queria concluir que aquela meiga velhinha tinha me visto nu.

— E porque não está na missa?

— Porque não. Tem que ter explicação? Só por eu ser velha não quer dizer que eu vô ficar sentada na soleira do altar, menino. Aquilo lá tá muito cheio. Me dá um aperto no peito danado um lugar fechado daqueles entulhado de gente, mas é o que é.

— Humm — disse eu, apenas para falar alguma coisa.

— Você quer saber do demônio.

Minha cara ficou congelada alguns segundos. Depois, arqueei as sobrancelhas.

— Do demônio?

— É, do demônio.

Me vi perguntando sobre qual demônio estávamos nos referindo, e eu tinha certeza que não era com relação ao professor José (que gentilmente me deixou de exame em Zoologia).

— Com chifres e tudo? — perguntei.

— Você o viu quando passava de carro — disse a velha. — Sem chifre nenhum.

— Então não era demônio — declarei. — Era uma sombra.

— Uma sombra demoníaca. Um demônio. Já ouvi falar deles. Foi uma dessas coisas que atacou a fazenda dos Kolinski lá pra 90 e pouco. E tá aí de volta.

Engoli em seco. Era claro que não era um demônio. Biologicamente, não havia demônios.

— E o demônio — disse eu — passaria tão perto assim da igreja? Da santa cruz de Cristo?

— É um demônio ousado. A mulher do Kolinski era filha de padre. Eles não tem medo.

E o que um demônio faria perdido em Três Rios era o que eu me perguntava. Quer dizer, uma parte de mim se perguntava, porque a outra parte obviamente negava a existência da criatura.

— Sabe, senhora...?

— Derci. Francamente, filho, não lembra de mim?
— Senhora Derci. Eu sou uma pessoa de religião. Dessa igreja aí. E por mais que deveria acreditar na existência de demônios e essas coisas a mais tenebrosas espalhadas pelo mundo, dessa vez fica difícil pra mim concordar com a senhora que tem demônio em Três Rios. Ora! Três Rios! Há tantos outros lugares para se estar.

— Demônios, ETs, anjos, lobisomens... é jovem demais, Mercúrio. Cresceu em uma realidade diferente. Essas feras preferem lugares assim, esquecidos do mundo. É assim que trabalham.

Eu bufei. Velhas eram teimosas, e eu tinha também a alma de uma velha teimosa, então era melhor não falar nada.

— E o demônio entrou ali? — apontei para a casa de Pat.

— Entrou — afirmou a velha com tranquilidade. — E ainda não saiu. Não que eu vi, pelo menos.

Mordi o lábio.

— E por onde ele entrou?

— Pelos fundos. Pode já ter fugido pra mata, mas acho que não. Tá muito silêncio, e silêncio é lugar para demônios.

Eu novamente mordi os lábios.

— Você exorcisaria o demônio comigo?

Foi a primeira vez, em toda a conversa, que eu vi a face da velha alterar-se para alguma coisa que poderia vagar entre a dúvida e a incredulidade.

— E eu lá sei exorcisar demônio?

— Achei que poderia saber. Tanto faz. Vou até lá. Obrigado.

A senhora não fez nenhum movimento para pará-lo.

— Cuidado, Mercúrio. Demônio não é coisa pra se brincar.

Eu já tinha me decidido a bater na porta de Pat fosse demônio ou Papai Noel a criatura que estivesse lá dentro. O máximo que aconteceria era o bandido evadir-se por uma janela. De resto, nada. Ou eu esperava que assim fosse.

Portanto, me despedi da velha, desejei a ela um Feliz Natal e atravessei a rua.

A casa de Pat era estilo estadunidense e não tinha portão, por isso alcançar a porta da frente foi bastante fácil. Tudo estava da maneira que eu tinha visto antes: as luzes apagadas, janelas fechadas, com cortinas cerradas, e sem um mísero sinal de enfeite natalino. A casa parecia um pouco esquecida também. A grama estava comprida, o chão por varrer, e uma enorme lagartixa morta era comida por formigas à beira do tapete.

Dei um passo cauteloso para frente e bati à porta.

O silêncio continuou, interminável. Nem as folhas queriam restolhar agora. Me vi pensando o quanto estava sendo insano, mas eu era um pouco maluco de toda a forma.

Bati outra vez.

Escutei um barulho no piso de cima. Pareciam passos apressados. Apurei os ouvidos.

Uma porta se abriu. Uma porta se fechou. Uma cortina moveu-se, tímida, e eu não julguei que fosse o vento. Instantes depois, ouvi mais passos, e alguém descia a escada apressadamente.

Se fosse o ladrão, ele não sairia pela porta da frente, era claro, mas sim pelo mesmo lugar que tinha entrado. Por conta disso, fui rente à parede até os fundos da casa, me agachando em seguida. Fiquei ali, de tocaia, até o diabo do bandido aparecer. Estava me cagando, a essa altura, mas e daí? Pat estava sob risco, e ela era a única coisa capaz de me fazer feliz na vida, fora a minha música. Não podia deixá-la desamparada.

Mas travei. Quando a porta dos fundos abriu-se de rompante, e a coisa saiu para fora... me encolhi. Em silêncio. Me encolhi.

O demônio estava todo de preto. A certa distância, não pude definir muita coisa, mas algumas delas ficaram claras: a criatura tinha dois grandes olhos redondos e amarelos, muito apagados, e usava um longo manto escuro. À noite, não era mais que uma sombra, mas o seu rosto não era como eu pensava que fosse. Não era humano. Pelo menos, àquela distância, em nada se parecia com um rosto humano.

Fiz o sinal da cruz e mantive-me encorujado no meu canto, até que a criatura desaparecesse, aos saltos, para a mata no fundo da casa. Alguns instantes depois, ainda em estado de absoluto choque, me deparei com Pat, parada à porta dos fundos, sôfrega, cheia de lágrimas nos olhos. Ela estava usando uma N95, mas eu não precisava de nenhum outro sinal para saber que aquele choro não era de alegria, e que muito menos ela sorria. Levantei-me.

— Mercúrio?! — exclamou ela, enxugando os olhos quando me viu. Fiz um gesto de aproximação. Pat deteve-se, e fez um sinal de negação com a cabeça.

— Não, não se aproxime — tramou-se a chorar copiosamente. Soluçava, a pobre Pat, e ela não queria o meu abraço. — Acho que ele levou ela, Mercúrio. Ele levou embora a minha mãezinha.  

===

Bạn đang đọc truyện trên: AzTruyen.Top