CAPÍTULO 2

A SOMBRA COM A VELA

24 de Dezembro de 2022.


O CLIMA DO Natal tinha ganhado corpo em casa. Minha mãe estava retirando uma forma de biscoitos do forno, que viriam a ficar duros como pedra, eu sabia, e que seriam propositalmente esquecidos dentro de uma lata, no fundo do armário. Quando chegasse mais ou menos o período da Páscoa, eu e o meu pai encenaríamos um teatro e descobriríamos, com muita dor, que tínhamos esquecido os deliciosos biscoitos da minha mãe dentro do pote, e seríamos obrigados a jogá-los fora, por já estarem estragados. Seria a nossa justificativa para nos desfazermos deles sem comê-los e sem ofender o talento culinário da minha mãe.

Eu estava muito mal naquele dia. Tinha chorado um pouquinho no meu quarto, no segundo andar, sem nenhum motivo aparente. No meu drama juvenil, cheio de crises, acho que foi uma forma que o meu cérebro encontrou para descarregar alguma pressão que crescia lá dentro. Estava com a cabeça doendo o dia todo, como também o braço, por causa da vacina, e não conseguia me concentrar em atividades simples, como ler o livro que ganhei de presente ou dedilhar algumas notas.

Enquanto minha mãe retirava os biscoitos do forno, meu pai estava na frente da TV, esperando os números da loteria. Eu colocava batata palha sobre o arroz de forma, escutando o gato da vizinha miar feito um condenado. Era impressionante a minha capacidade de se estressar por absolutamente tudo, principalmente naqueles dias que se seguiam, ao ponto de, em algum lugar do meu subconsciente, desejar que aquele fofíssimo gato alaranjado sumisse. Os dias realmente não estavam muito bons.

— SAIU! — gritou de repente o meu pai, saltando do sofá com papel e caneta em mãos.

Me atrapalhei com a batata palha, e mamãe largou os biscoitos recém saídos do forno, limpando as mãos no avental e caminhando quase aos saltos até o meu pai.

— Que foi que deu, Artur? — perguntou ela, com a voz esperançosa.

— Três! — exclamou ele, saltando do sofá. Seus olhos brilharam na direção dela. — Três dessa vez, meu bem! TRÊS NÚMEROS! — E agarrou a minha mãe pela cintura e beijou-a nos lábios demoradamente.

Três — repeti eu, amargurado. — Francamente, pai, isso aí não dá nem pra pagar o dinheiro do bilhete.

— E não dá mesmo — ele concordou, com uma resignação ferida naquele rosto calmo como águas paradas. — Mas pensa comigo, filho! O negócio tá na evolução. Ano passado foi dois, esse ano, três. Ano que vem esperamos quatro, e depois cinco, e então...

Minha mãe, que não entendia nada de loteria, empurrou o peito do meu pai, e sua feição fechou-se como um temporal.

— Não brinque mais com isso, Artur — disse ela como forma de repreensão. — Não sou palhaça. — E então virou-se para mim. — Você está derramando toda a batata na mesa, Mercúrio.

E aí estava. Sim, o meu nome era Mercúrio. Minha mãe se chamava Ana; o meu pai, Artur. Talvez, então, quiseram inovar na geração seguinte, escolhendo o nome mais extraterrestre (literalmente) que existia.

— Não tô derramando toda a batata, mãe — retruquei. — Foi só uma ou duas.

— E não me responda — disse ela, rodando as saias e caminhando para o quarto, e eu sabia que ali era o fim da conversa.

Pouco tempo depois, após a Dona Ana terminar a sua maquiagem, estavam nós três dentro do carro a caminho da celebração de Natal na casa dos Mendes. Era ali que a minha história começava de verdade.

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Três Rios era uma cidade fadada ao fracasso. Os antigos contavam que, muito tempo atrás, quando o Lugar Nenhum era só um amontoado de casas ao redor dos rios (não que isso não seja verdade agora) houve um grupo de padres jesuítas que desceu de canoa e acabou por parar ali por perto. Como a noite já estava se aproximando, eles decidiram pernoitar pela vila mesmo.

Conta a história que nenhum dos habitantes aceitou o pernoite dos jesuítas, porque boa parte da cidade era da raiz dos bandeirantes. Os padres ficaram enfurecidos, e, antes de saírem mata adentro e procurarem um lugar para passar a noite, salgaram a terra de Três Rios e amaldiçoaram a cidade para que ela nunca mais prosperasse.

Eu sou uma porta no quesito de maldições, mas se fosse para apostar em uma que tivesse funcionado, essa seria a dos jesuítas. Três Rios não era chamada de Lugar Nenhum por pouca coisa. Nada de novo dava certo na cidade, e, se dava, acabava por fracassar dolorosamente alguns meses depois, sempre por motivos esquisitos. Tudo era em número de um: o mercado, a igreja, a farmácia, o postinho, a loja de roupas, o restaurante, o posto de gasolina... no fim, não havia concorrência.

E foi sobre isso mesmo que nós conversávamos enquanto cruzávamos a estrada de ferro a caminho da festa.

— Como pode, Ana, uma cidade abençoada dessa ter dado tão errado? — perguntou meu pai. Falar de benção para Três Rios, ante a sombra da maldição que crescia por trás da cidade, fez despertar no meu rosto um tímido sorriso, que eu esqueci que possuía. — É rio pra cá, é estrada de ferro pra lá, é rodovia importante que cruza lá pra Torneira... isso aqui tinha potencial de ser uma metrópole, não tinha?

Minha mãe soltou uma gargalhada, aqueles lábios vermelhos de batom abrindo-se e mostrando os seus digníssimos dentes brancos que ela fazia tanta questão de cuidar.

— Antes um burrichó dava cria, Artur. Três Rios já tá escrita pra não dar certo faz tempo. E talvez seja melhor assim, não é? Pelo menos aqui a gente tem paz.

— É... — concordou meu pai. — Pelo menos aqui a gente tem paz.

As estradas de Três Rios estavam vazias, como sempre. A maioria dos postes de luz tinha as lâmpadas queimadas, e isso deixava o caminho ainda mais escuro àquela hora da noite. As árvores choronas balançavam ao vento fresco do verão, e o ruído das suas folhas chacoalhando era o único barulho que se ouvia por longos quilômetros, além do som do carro circulando pelo asfalto.

Como morávamos em uma região um pouco retirada, que ficava mais próxima da ponte, não tínhamos o deleite de possuirmos muitos vizinhos a quem pudéssemos reclamar e fofocar sobre a vida dos outros, de modo que a ida ao "centro" era sempre uma espécie de espetáculo. Três Rios tornava tudo uma competição, um vestibular, e isso não era diferente com as decorações natalinas. Havia uma Guerra Fria pela conquista do vizinho que mais enchia sua casa de pisca-piscas e pelo vizinho que tinha a árvore mais bonita, o que tornou a estrada bastante iluminada quando as casas começaram a emergir do meio do mato, com as lâmpadas coloridas piscando e piscando e piscando.

Entretanto, uma casa em específico destoava das outras: a de Pat.

Quando passamos em frente à casa dela, um nó apertou-se na minha garganta. As luzes estavam todas apagadas, as cortinas das janelas fechadas, e as decorações da casa não existiam. Isso era estranho, porque a Dona Olívia gostava de decorações natalinas, de enfeitar o pinheirinho em Novembro e de fazer presépios e coisas desse tipo. Era natural que assim fosse, porque Pat morava em frente à igreja, e as casas em frente à igreja tinham muito prestígio e visibilidade.

Meu pai conduziu o carro lentamente pela avenida, para que eles pudessem ver quem estava assistindo a missa de Natal, que acontecia naquele momento. Pat tinha me magoado, mas eu estava com saudades dela, então fiquei olhando pela janela para a sua casa, como se algum milagre fosse acontecer e eu pudesse ter um vislumbre dela, vivinha da silva, ali na varanda.

— A Dona Olívia foi viajar? — perguntei com um tom de voz desinteressado, sem querer dar bandeira para nenhum questionamento específico.

Mas minha mãe era a minha mãe. Girou o tronco com argúcia e ergueu aquelas lindas sobrancelhas para cima, deixando o seu rosto com as linhas mais malandras que já vi.

— Está preocupado que a Pat arrume um namoradinho novo, Mercúrio? — disse ela.

Enrubesci.

— Não — menti. — Só estava perguntando.

— Ah, é claro — continuou a minha mãe. — Que é que acha que deu, Artur? Será que desceram pra praia?

Vi que meu pai ficou nervoso com a pergunta. Tirou uma das mãos do volante e esfregou na coxa, como se estivesse suada. A situação de minha mãe cogitar em eu ter uma namorada deveria tê-lo desequilibrado.

— Viajaram — foi a curta resposta dele. Seus olhos passearam pela estrada adiante como os de falcões. — Não sei pra onde.

Minha mãe deu de ombros, e eu recostei-me à janela.

Foi então que vi uma coisa estranha. Havia um movimento nas cercas vivas que ladeavam o terreno, e os meus olhos correram diretamente para lá. Fechei e abri as pálpebras para ganhar nitidez. Do meio das folhas saía uma sombra esguia, toda de preto, como vinda de um livro de fantasia mórbida, escondendo alguma coisa embaixo do sobretudo, com um capuz na cabeça. Na mão direita trazia uma vela acesa, que cintilava como uma estrela perante o breu noturno. Parecia uma pessoa rasteira, achei eu, e a preocupação acabou por me pegar em cheio. Ele estava atravessando os muros da propriedade de Pat. Será que era um ladrão que descobrira a viagem da família e viera para roubá-los?

— Viu aquilo? — perguntei abruptamente, mas quando olhei as cercas novamente, a tal sombra já não estava mais lá. — Chegaram a perceber?

— A velha fofoqueira ali no banco da praça? — perguntou a minha mãe. — Nunca vi mais gorda. Deve ser parente de alguém. Jeito esquisito que me olhou, ela.

— Não. Desse lado da estrada. — Eu apontei com o dedo para a janela. — Havia uma sombra ali. Bem ali. Nos arbustos.

Meu pai não fez questão de virar a cabeça.

— E ainda está lá — disse ele.

Eu me virei mais ainda. O carro já avançava de novo pela estrada.

Está? Não vi mais.

— É claro que está, Mercúrio. A sombra da árvore.

Bufei a contragosto.

— Não. Havia uma sombra ali. Eu sei o que eu vi. Havia alguém ali.

Minha mãe novamente se virou na minha direção e abriu um sorriso.

— Talvez você tenha visto o Papai Noel, querido — disse ela, dando uma gargalhada e fazendo um carinho na minha mão. — Está bonito, filho.

Fechei a cara. Odiava que duvidassem de mim.

Fiquei remoendo aquela sequência de eventos pelos metros seguintes, e continuei a pensar no assunto enquanto o nosso carro estacionava na garagem dos Mendes. Havia alguma coisa ali, eu sabia que sim. E, como um bom habitante dos Três Rios, teimoso como uma mula, coloquei na minha cabeça que iria descobrir quem era aquela sombra, o que ela estava fazendo na casa de Pat, e porque fugira ante a presença da luz do nosso carro. Foi ali, naquele dia, naquela auspiciosa véspera de Natal, caçando uma sombra misteriosa, que fui envolvido na trama mais maluca que já tinha presenciado — ou lido — em toda a minha curta vida. 

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