CAPÍTULO 17

O CURURU

2 de Janeiro de 2023. 


DESDE QUE A MÃE de Pat morreu, eu e ela não havíamos trocado mais do que sutis carícias, ou um beijo rápido nos lábios. E embora ainda a situação toda fosse muito confusa para nós dois, e o luto fosse recente, eu sentia que Pat estava cada vez mais distante de mim. Sempre fui dependente das suas carícias e suas declarações para ter certeza que me amava, mas é claro que não ia ser ridículo de exigir isso dela num momento como esses. Meu coração ficou reconfortado quando pude ter um momento com ela, só nós dois, no aconchego de uma boa cama, fazendo-me recordar de verdade o quanto eu a amava.

Lá fora, o vento assobiava, mas era mesmo assim uma noite quente. O quarto de visitas tinha uma enorme cama de penas antiga, herdada dos avós ou dos bisavós do Mateus, não tenho dúvida, um pequeno guarda-roupa amarelo de duas portas, com um espelho quebrado e cheio de figurinhas de carrinhos de brinquedo contornando as suas bordas. A janela trazia o frescor que só uma noite no campo pode trazer, e eu e Pat usávamos não mais do que uma manta sobre os nossos corpos seminus.

Em certa hora, já passadas da meia noite (olhei o relógio eletrônico na cabeceira), virei-me para Pat para dar uma espiadela, e percebi que ela também estava acordada, olhando para mim. Aproveitei para fazer um carinho em seu cabelo, afastando as mechas castanhas dos seus olhos e arrancando-lhe tímidos sorrisos.

Além do assobio do vento, lá fora havia uma orquestra de grandes músicos: os grilos negros, que enchiam qualquer canto escuro nos períodos do verão, e os sapos, que cantavam no banhado. Comecei a falar sobre os hábitos dos anfíbios, e Pat fez aquela cara de sobrancelhas franzidas, duvidando de cada palavra que eu lhe contava.

— Não, é sério... — ela estava dizendo, quase sussurrando, entre risinhos.

— Eu falando sério — contrapus. — Os sapos cantam pra atrair as parceiras, e pra assustar outros sapos. Afastar a reivindicação da presa, entendeu?

Pat rolou os olhos.

— A reivindicação da presa! — ela repetiu com desdém. — Nós mulheres sempre somos a presa pra vocês, seus brucutus! Então as sapas não cantam, é isso? Elas só ficam ouvindo esse horroroso esguelamento, e então... bum! Se apaixonam?

— São rãs, Pat. E claro que cantam, pelos mesmos motivos que os sapos, mas não tão... não tão viris assim!

— Ahh! Que virilidade! — Pat rolou pela cama e olhou para o teto do quarto. — Então o segredo pra conquistar a dama é uma boa música? Quando você tá com o violão na mão e canta uma canção pra mim, você também se acha... hummm... viril?

Aquilo me arrancou uma gargalhada.

— Você n'um tá me comparando com um cururu gordo, tá, Pat?

— Queira ou não, teu canto tem talento. Só assim pra você me prender na tua rede!

— Não foi só o meu canto que te fez ficar comigo, mocinha — aproximei-me dela e esfreguei a ponta do meu nariz no seu pescoço, indo até a orelha, suspirando fundo, tentando mordê-la. — Cê sabe que não foi.

Shhhhhh — Pat sussurrou pra mim. — Fica quieto. O Mateus pode ouvir.

— E daí? — Minha mão subiu suavemente até o seu ombro, encontrando a alça do sutiã. — Ele não tem idade nem pra...

— Mercúrio, não. — Ela falou, pondo a mão no meu peito. Encolhi-me. — Hoje não.

— Ahhh — disse eu. — Tudo bem. — Ela se virou de novo para mim, os olhos brilhantes como um pecado, tão provocativos quanto os holofotes brilhantes de uma serpente faminta. Acho que sou o seu sapo, afinal de contas, me vi pensando. — Posso pelo menos te dar um beijinho antes de dormir?

Ela deu mais uma risadinha.

— Você sempre pode me dar o beijo que quiser — falou, e agarrou-me para perto dela. — Hmmm — ela aconchegou-se nos meus braços. — Mas hoje apenas o beijinho.

Os dedos dela roçaram de leve na minha virilha. Maldita. Eu gemi baixinho. Então nos afastamos, ela se cobriu e voltou a dormir.

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Toda a criança que tinha medo de ladrões vai entender o meu sentimento aqui. Sabe aquele momento em que todos da casa estão dormindo, e você continua com os ouvidos atentos a qualquer mínimo ruído que possa sugerir que alguém está querendo assaltar a sua família? Como se você fosse o responsável por pular da cama e avisar ao mundo que há um bandido querendo invadir a sua casa? Senti-me de volta às insônias de infância naquela noite.

No princípio, não de todo. Quando crescemos, aprendemos que as vigas de madeira estalam com o frio que a noite traz, e que nem sempre folhas sendo pisadas sugerem a presença de um ladrão à porta de casa. Três Rios não era uma cidade violenta, em que gangues assaltavam famílias desavisadas; muito pelo contrário, os crimes que levavam a encher a delegacia de polícia diziam muito mais a respeito daqueles cometidos por um pai de família do que por um ladrão desesperado por comprar pedras.

Tínhamos deixado as janelas da casa aberta, e eu sinceramente não sei se Mateus conferira se as portas estavam fechadas. Isso nunca foi um problema para moradores de Três Rios, e imagino que era um problema menor ainda para aqueles que viviam no interior. As teorias borbulharam na minha cabeça quando ouvi o rangido de madeira, e em um só segundo, estava com os cabelos da nuca em pé. Apurei os ouvidos.

Ora, mas e se fosse apenas a madeira...

Minhas alças intestinais se contraíam. Ouvi outra pisada, e de repente um som de clack, metal contra metal. Alguém está tentando abrir a porta, me vi pensando primeiramente. Então, pensei em seguida: não. Não tem porque abrir a porta. Alguém está pulando pela janela.

Sentei na cama. O relógio marcava 2:43 da manhã. Esfreguei meus olhos de um sono rápido e coloquei o meu tênis (estava terrível, sujo de uma maneira que eu achava impossível estar). Fiquei julgando se valia a pena acordar Pat, que dormia esplendorosamente. Decidi que era melhor não. Afinal, eu era o homem da casa. Ou pelo menos achava que era.

Fui pé ante pé até a porta do quarto. O tempo tinha esfriado, e o vento que vinha da janela agora arrepiou o meu tronco nu. Encostei na maçaneta e girei, mas não abri a porta. Procurei pela pistola que tínhamos pego do pai de Mateus, mas lembrei que deixei-a sobre a mesa da cozinha, lá embaixo, na minha incompetência diária. Mas eu não sabia que ia precisar usar ela logo hoje, porra!

Abri a porta como se fosse o próprio assaltante, tão lentamente que não se ouviu um único ruído. Quando escancarei-a completamente, dei de encontro com uma espingarda.

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