CAPÍTULO 16

MATEUS DÁ UM SORRISO

1 de Janeiro de 2023.


A FAZENDA QUE Mateus morava tinha um cavalo assustado, uma vaca leiteira agonizando e um bando de corvos como flores negras crescendo no redil de ovelhas.

Os mais medrosos levantaram voo imediatamente quando o ronco do carro aproximou-se pela poeirenta estrada do interior, mas alguns permaneceram, imbatíveis, sobre os corpos das ovelhas mortas, mesmo quando o carro passou ao lado da cerca do redil. Havia um casal de urubus voando no céu, mas pareciam desconfiados a respeito do bando de corvos, então mantinham-se no alto.

A fazenda de Mateus não era muito untuosa, mas parecia um lugar bonito para se viver. Uma casinha com três janelas frondosas, uma porta aberta batendo com o vento, encimava-se sobre um morro, escondida atrás de algumas árvores. Perto dela havia um casebre de madeira velho como o tempo, lacrado como se escondesse as mais diversas preciosidades. Também tinham um poço, um lugar onde tratavam os animais e um balanço em uma chorona secular. Todo o resto era silêncio e trevas do entardecer.

Mateus rangia os dentes. Não parecia um garoto feliz em estar voltando para a casa dos pais, o que obviamente era compreensivo. Pat estava sentada no banco da frente, e observava o sítio com um olhar frio. Quando o carro estacionou embaixo de uma jabuticabeira, que frondejava a casa, me pareceu invadir em mim uma tristeza absurda. O silêncio começou a corroer-me por dentro.

— Meu pai atirou nas ovelhas com a espingarda — Mateus contou enquanto puxava o freio de mão.

— Você nos disse — Pat lembrou-se.

— É por isso o mal cheiro. Aqui cheirava a argila molhada. Queria que cês pudessem sentir.

— É um lugar bonito pra se viver — eu disse, a fim de consolá-lo.

— Era. A boniteza é muito por parte de quem tava por aqui. Era bonito ver minha mãe embalar o Guto na janela. Agora não tem mais isso. Aqueles demônios atiraram nos miolos do meu irmão do meu lado, porra!

E, novamente, o ódio impregnava o rosto de Mateus como craca. Eu retirei o cinto de segurança. Saímos do carro.

— Vamos dar o troco — Pat falou. Ela inspecionou brevemente a casa, com um olhar investigativo. Eu me arrepiei ao ver as janelas rangendo ao vento. De repente, estava vendo fantasmas em toda a sorte de sombras. — Aonde que fica o armazém?
— Por aqui — Mateus respondeu, e nos conduziu lá para dentro.

Na sala de entrada havia uma mesa com 8 cadeiras. Moscas sentavam em um naco de pão abandonado. Três xícaras estavam dispostas sobre a toalha: uma no centro, e duas em frente às cadeiras, com colheres dentro delas. A mamadeira do bebê tombara, azul com aviõezinhos, e ainda tinha leite.

— O pai não quis tomar café naquele dia — Mateus foi contando. Aproximou-se da mesa cautelosamente, como que rememorando cada passo. — A mãe tinha feito pudim no dia anterior. Era pra comemorar o Natal, mas comemos antes. O vô não conseguiu vir pra cá. Tava com o hipotecário atrasado, e tinha que resolver tudo até o ano virar pra não pagar multa.

— Que bom que atrasou — Pat comentou. — Ele podia não ter restado também.

— É — Mateus concordou, com brevidade. Ele afastou-se da mesa, chegou à bancada da cozinha e agarrou um porta-retrato que ficava ao lado do relógio de ponteiros, marcando 17h e 30 minutos. Caminhou até nós em silêncio, e mostrou-nos o retrato. — Essa é a minha mãe, há uns 3 anos atrás — ele disse, apontando com o dedo. A mulher era alta, com cabelos cacheados e lábios carnudos, e tinha todo um instinto maternal, segurando Mateus pelo braço. — Ela não gosta muito de rir igual eu, por isso eu e ela estamos sérios na foto. Esse é o meu pai. — Ele apontou, e eu me lembrei do velho maluco gritando enlouquecidamente, correndo pela estrada para atacar policiais. Pareciam dois homens diferentes. — Está vendo o troféu? Ele tinha ganhado o concurso na Feira do Produtor de 2019, quando a vida era mais fácil.

Fez-se mais uma vez o silêncio, tão espesso quanto azeite.

— Eu... eu sinto muito, Mateus — eu disse, e apertei o ombro dele.

— Sente, sim — ele respondeu, frio.

Mateus largou o porta-retrato no balcão da cozinha e foi em direção à geladeira. Eu e Pat nos entreolhamos. Ele estendeu a coluna, e trouxe nas mãos um prato dourado com uma fatia de uns 5 cm de pudim caramelado, perfeito como em um sonho. O menino colocou a travessa no canto da mesa, foi até a gaveta, pegou uma colher e sentou-se, de pernas abertas, como se tudo aquilo fosse mais um dia, apenas mais um momentinho fugaz dentre todas as outras milhares de coisas que faria dali em diante.

— Essa é a última comida que vou provar da minha mãe. Pra sempre — ele disse. Deu uma boa colherada, e colocou tudo na boca.

Depois, Mateus acabou-se em lágrimas.


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— ...construímos em cima. Isso era uma fazenda de colônia, segundo o meu pai contava. Aqui era a casa do senhor. Nós derrubamos tudo, só o porão ficou.

Ele aproximou-se dos degraus íngremes escavados na terra. Apertou no interruptor de luz, e soltou uma exclamação de indignação.

— Ah! — Mateus disse. — O interruptor quase nunca funciona! A porta fica logo ali embaixo. São apenas alguns degraus.

Quando eu olhei para o fosso escuro em que Mateus queria me enfiar, minha barriga deu um nó. Veja, eu não sou o mais corajoso dos homens, você já deve ter percebido. Achei que meu ápice de heroísmo tinha sido encarar o demônio na casa de Pat, e realmente até aquele ponto eu acho que foi mesmo. Quando sei agora de toda a história que vivi, vejo que encarar um poço escuro seria o menor dos meus problemas, mas naquele momento me parecia uma jornada certa para algum estranho inferno.

Mateus se divertiu com o meu medo pungente.

— Pode ir primeiro — ele disse, com aquele tom provocativo que passei a odiar.

Eu titubeei um passo.

— Deixe que eu vou — Pat falou, sem paciência para rodeios.

— Não — eu me intrometi na frente dela. Era um cavalheiro, e não deixaria que Pat fosse a primeira a ser comida pela aterrorizante morte que nos aguardava fosso abaixo, então liderei a descida.

Chegamos à porta alguns degraus mais abaixo, no absoluto breu, e Mateus interviu de novo.

— Aí na parede tem outro interruptor. Esse é pra funcionar.

Tateei no escuro, sentindo os veios de barro rasparem pelas minhas digitais, até encontrar uma caixinha de plástico sólida na parede. Apertei o interruptor.

Acendeu-se uma luzinha amarela do lado de dentro do armazém, desenhando a porta em uma silhueta escura. Mateus pediu que eu a abrisse.

Ela já estava entreaberta, mas mesmo assim puxei a maçaneta. Quando tracionei, a porta não saiu do lugar.

— Está emperrada — eu disse.

— Essa maldição! — Mateus protestou, como se já não soubesse disso.

— Puxe com mais força, Mercúrio — Pat orientou-me.

— Com mais força eu arranco a porta fora! — eu exclamei, indignado.

— Deixe eu ir aí — Mateus pediu, e abrimos espaço para ele.

Foi como se uma mágica acontecesse. Mateus tracionou a porta um pouco para cima e abriu como se abrisse um pote de margarina. Pat não se conteve em manifestar os seus elogios.

— Esses brações aí tem que servir de alguma coisa, né Mateus?

Contraí a mandíbula tão intensamente que poderia ter fraturado toda a arcada dentária.

— É só o jeito — ele prestou-se a ser humilde. — As armas ficam ali, colocadas na pare...

Algo fez Mateus parar. Imediatamente eu congelei também.

— O que é...

Ouvi um barulho de algo ganindo lá dentro, e comecei a preparar uma brilhante fuga escada acima. De repente, uma sombra avançou e saltou em cima do Mateus, e o garoto estatelou-se de bunda no chão de terra batida. Eu repreendi um grito, para não passar vergonha. Pat abriu espaço.

Era um cachorro lindo, de pelo branco com rajadas de marrom e preto, e dois olhos azuis foscos meio apagados. Ele ficou com as patas dianteiras sobre o tórax de Mateus, e o garoto, desarmado de toda a compostura, deitou no chão para receber o carinho de quem tanto sentia falta. O cão lambeu-lhe o rosto, a boca e os olhos, e Mateus acariciou-lhe a orelha.

— Ah, o meu Saltador! O meu Saltador não foi embora! O meu Saltador tá aqui! O pai veio te buscar, Hopper. Sim, o pai tá aqui, e veio aqui pra salvar você.

E, quando levantou, pela primeira vez desde que eu o conheci, vi Mateus abrir um sorriso.


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