CAPÍTULO 15

A REBIMBOCA DA PARAFUSETA

1 de Janeiro de 2023.


ACORDEI DE UM SONO demorado quando a tarde ia se prolongando, e as primeiras estrelas começavam a pintar o céu.

Eu fui largado como um saco de aveia ao lado de um lixo fedido, mas pelo menos eu estava vivo (ou talvez fosse a minha alma apenas saindo do corpo). Quando a minha visão perdeu a fugacidade, pude observar que Pat e Mateus estavam de pé, fuçando o banco traseiro de um carro azul. As portas estavam abertas, e o vidro da frente fora alvejado por cinco grandes projéteis.

Levantei-me aos tropeços e senti algo fisgar na minha perna. Pensei que tinha deslocado o joelho. Aproximei-me deles dois a passos lentos, mas nenhum me ouviu.

— Vocês me largaram... — disse eu, então percebi que minha garganta estava seca, e tive um espasmo de tosse demorado. Mateus virou a cabeça, e Pat sondou-me do outro lado, com um olhar distante, nada surpresa. — Vocês me largaram pra morrer ali naquele lixo?!

— Oi, Mercúrio — Pat respondeu. — Que bom que está bem. Não seja dramático.

— Tentamos acordar você — Mateus bateu uma mão na outra, limpando-se. Uma nuvem de pó encheu o ar. — Mas você sempre voltava a dormir. Achamos que era melhor deixar você acordar por si próprio. Está se sentindo melhor?

Instintivamente, eu levei minha mão até a nuca, onde percebi que estava doendo.

— Parece que me acertaram com um cano de aço bem na minha cabeça.

— Pelo menos foi na cabeça de cima — Mateus brincou, com um sorriso. Pat também riu e sondou-me pelo canto do olho. Avermelhei até as orelhas. — Pode acreditar, lá embaixo dói muito mais.

Tropecei quando tentei me aproximar, limpando as mãos na minha calça, sem necessidade alguma.

— O que vocês tão procurando? — eu perguntei, para mudar o rumo da conversa.

— A maldita chave do carro — Pat ficou ereta. — Ela tem que estar em algum lugar.

Desse carro? — eu apontei para o vidro todo esburacado.

— Não, Mercúrio — Pat respondeu daquele jeitinho dela. — Do seu carro.

— Mas eu não tenho carro nenhum!

Ela riu e contornou o veículo, vindo até mim e me dando um beijo rápido nos lábios.

— Não seja bobinho — Pat agarrou a minha mão. — Venha comigo. Quero mostrar uma coisa que eu e o Mateus achamos. Me diz a sua opinião.

Ela foi me puxando de maneira impaciente até um quartinho da escola. Percebi que, largado no pátio, havia dois corpos caídos: o de um homem, embaixo da sombra de um chorão, e o de uma mulher, logo abaixo da janela do banheiro. Particularmente este corpo estava terrível, e não me prestei a olhar muito a ele. Tinham explodido os miolos dela, e as moscas dominavam.

— O que foi que fizeram aqui? — eu perguntei.

— Uma benção de Deus — Pat respondeu. — Eles acabaram se alvejando, e no fim não sobrou ninguém.

— Que conveniente... para nós.

Chegamos ao quartinho. Era minúsculo, feito com tijolos à vista, e não tinha nenhuma janela. Possuía uma mesa em L no canto oposto à porta, onde se apoiava um computador amarelado que deveria rodar no máximo o Windows XP, uma caixa quadradona, com a tela perfurada por uma bala. Havia chapiscos de sangue por todo o canto, e uma confusão de folhas largadas no chão e pisoteadas. Livros estavam empilhados ao lado do computador: eu reconheci a lombada do Amabis e o Lehninger, mas os outros eram novos a mim. Pat aproximou-se de um desenho tridimensional feito por algum computador (por Deus, não pelo caixote amarelo, tenho certeza), e apontou ele a mim.

— O que você acha que é isso?

— Hummm — eu analisei as espiras verdes que se entrelaçavam. — É uma rebimboca, com certeza.

— Uma rebimboca? — Pat repetiu. — E o que é uma rebimboca?
— Uma rebimboca da parafuseta. É o termo que eu gosto de usar quando não faço ideia.

Pat não compartilhou do meu sorriso.

— É sério! — disse ela. — Eu vi que tem uns livros de biologia ali em cima da mesa, e esse desenho está bem no centro de tudo. Veja, eles enumeraram diversos pontos pela fita. ACH13, e coisas assim.

— Isso mesmo. Uma fita — eu apertei os olhos. — Sim, é isso. Essa é a estrutura tridimensional de uma proteína. Acredito, na verdade, que é uma estrutura quaternária. Tem mais de uma cadeia polipeptídica. Você vê como a fita se enovela? Isso acontece porque há pontes...

— Tudo bem, Mercúrio — ela me interrompeu — mas o que exatamente isso significa?

— Ora, sei lá! Pode significar qualquer coisa. O nosso corpo todo é cheio de proteínas. Proteínas que formam a nossa estrutura, proteínas que dão funcionamento às nossas células, proteínas que clivam outras proteínas...! Nós somos uma máquina protéica, Pat.

— Mas tem mais que isso, Mercúrio — Pat apressou-se a espalhar as folhas sobre a mesa, procurando as suas pistas. — Veja, aqui tem os nossos nomes, e uma sequência de letras e números estranhos. Eles estavam nos estudando!

Cocei a cabeça.

— Eita — eu disse. — Eu não consigo reconhecer essa sequência de letras e números, mas me parece algum indicativo de sequência genética, embora o padrão não seja esse. Alguma nomeação padronizada de genes, talvez? Isso é muito complexo para mim.

— E o que eles poderiam querer com as nossas proteínas?

Eu peguei a folha de papel que trazia o meu nome. Mercúrio. Letras e números e letras.

— Anticorpos são tipos de proteínas — eu falei por fim. — Quando somos infectados, produzimos anticorpos contra o que nos infectou. Talvez eles quisessem ver se tínhamos anticorpos contra esse novo vírus.

— Mas não é pra isso que o teste serve?!

— Sim, mas ao que parece, eles precisavam... eles queriam uma visão mais micro da coisa. E é isso aí que conseguiram — eu apontei para o desenho 3D na parede. — Não é incrível?

Escutei o restolhar de folhas, e os pelos da minha nuca se arrepiaram imediatamente. Mas era só o Mateus, tilintando um molho de chaves nas mãos.

— Achei — disse ele, chacoalhando-as. — O Mercúrio estava deitado em cima, acredita?

Pat olhou-me para mim como se eu tivesse culpa de tudo. Ergui os ombros.

— Vou levar essas coisas comigo — ela foi juntando os papéis da mesa e arrancou o desenho 3D da parede. — Pode ser útil. Acho que já está na hora de irmos. Pode ser que mais vagabundos voltem procurar a gente. Temos que dar o pé daqui.

Eu segui eles dois, olhando para os cantos.

— Hummm... irmos exatamente para onde?

Mateus virou-se na minha direção.

— Na fazenda dos meus pais. Eles tem algumas armas de fogo que podemos usar pra explodir os miolos daqueles filhas da puta.

Eu fiquei um pouco incomodado com a agressividade do Mateus. Olhei para Pat, buscando um centro de apoio, mas ela parecia estar igualmente imersa naquela história hollywoodiana. Fiz um aceno fraco com a cabeça.

— Ah... — eu disse. — que bacana — e fiquei pensando nas mil formas que eu teria de acertar um tiro diretamente no miolo do meu pé.

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